terça-feira, 27 de março de 2012

O retrato de Dorian Gray

Capítulo I Por todo o atelier pairava o aroma intenso das rosas equando a branda aragem estival corria por entre as árvores dojardim, entrava pela porta a fragrância carregada do lilás, ouainda o perfume delicado do espinheiro de floração rósea.Estendido no divã de bolsas de seda persas, a fumar, como eraseu costume, cigarro após cigarro, Lord Henry Wotton sóconseguia vislumbrar do seu canto as flores adocicadas e corde mel de um laburno, cujos ramos trémulos pareciam mal podersuportar o peso de beleza tão fulgurante. De vez em quando,através dos cortinados de tussor de seda que cobriam a enormejanela, via passarem velozes as sombras fantásticas das aves,que produziam como que um momentâneo efeito japonês, o que olevava a pensar naqueles pintores de Tóquio, de rostos cor dejade e pálidos, que, servindo-se de uma arte que énecessariamente imóvel, procuram transmitir a sensação derapidez e movimento. O zumbido lento das abelhas, que abriamcaminho por entre a relva crescida, ou voavam com monótonainsistência à volta das hastes douradas e poeirentas de umamadressilva desgarrada, parecia tornar o silêncio maisopressivo. Ao longe, os vagos ruídos de Londres soavam como obordão de um órgão longínquo. No centro do atelier, afixado a um cavalete vertical, estavao retrato em corpo inteiro de um jovem de beleza invulgar. Àsua frente, sentado a uma certa distância, estava o autor,Basil Hallward, cujo desaparecimento súbito, há alguns anos,havia provocado, na altura, grande alvoroço e dera origem àsmais surpreendentes conjecturas. Ao olhar a figura grácil, formosa, que com tanta perfeição 7registara através da sua arte, assomou-Lhe ao rosto um sorrisode prazer, que parecia aí querer demorar-se. Massobressaltou-se repentinamente e, fechando os olhos, colocouos dedos sobre as pálpebras, como se tentasse aprisionardentro do cérebro um sonho estranho do qual receava despertar. - É o seu melhor trabalho, Basil, o melhor que já fez -disse Lord Henry, languidamente. - Não pode deixar de o enviarà exposição de Grosvenor do ano que vem. A Academia édemasiado grande e demasiado popular. Todas as vezes que láfui, ou as pessoas eram tantas que não conseguia ver osquadros, o que era horrível, ou os quadros eram tantos que nãoconseguia ver as pessoas, o que era ainda mais horrível.Grosvenor é realmente o único local. - Não penso enviá-lo para lugar nenhum - respondeu ele,atirando a cabeça para trás, naquele seu jeito peculiar que,em Oxford, provocava o riso entre os amigos. - Não, não vouenviá-lo para lugar nenhum. Lord Henry arqueou as sobrancelhas e, estupefacto, olhoupara ele através das ténues espirais azuis de fumo que subiamem volutas caprichosas do seu cigarro saturado de ópio. - Para lugar nenhum? Mas, meu caro amigo, porquê? Tem algummotivo? Vocês, os pintores, são uns indivíduos estranhos!Fazem tudo para ganhar fama e, assim que a têm na mão, parecemquerer atirá-la fora. É um disparate, pois só há uma coisa nomundo pior do que falarem de nós: é que de nós ninguém fale.Um retrato como este colocá-lo-ia muito acima de todos osjovens de Inglaterra e faria muita inveja aos velhos, se é queos velhos são capazes de qualquer emoção. - Sei que vai rir-se de mim - respondeu ele -, mas de factonão posso expô-lo. Pus nele demasiado de mim mesmo. Lord Henry estendeu-se no divã e desatou a rir. - Eu bem sabia que você havia de rir. Mas seja como for, oque eu disse é a pura verdade. 8 - Demasiado de si mesmo!? Palavra de honra, Basil, não sabiaque era tão vaidoso. Na verdade, não consigo ver qualquersemelhança entre você, com esse rosto rude e enérgico, ocabelo escuríssimo, e este jovem Adónis, que parece feito demarfim e pétalas de rosa. Ora, meu caro Basil, ele é umNarciso, enquanto você... Bem, é certo que o meu caro amigotem um ar intelectual, e tudo o mais. Mas a beleza, averdadeira beleza, acaba onde começa a expressão intelectual.O intelecto é em si uma forma de exagero e destrói a harmoniade qualquer rosto. Assim que nos sentamos a pensar, ficamostodos nariz, todos testa, ou outra coisa horrenda. Veja esseshomens que triunfam em qualquer profissão intelectual. Sãocompletamente hediondos! Com excepção, evidentemente, doshomens da Igreja. Mas é que os da Igreja não pensam. Um bispocontinua a dizer aos oitenta anos aquilo que lhe mandaramdizer aos dezoito e, como consequência natural, ele mantém-sesempre uma pessoa encantadora. Esse seu jovem amigo tãomisterioso, cujo nome você nunca me revelou, mas cujo retratome deixa verdadeiramente fascinado, nunca pensa. Tenhoabsoluta certeza. É uma dessas criaturas belas, seminteligência, que devia estar sempre aqui no Inverno, quandonão temos flores para contemplar, e sempre aqui no Verão,quando necessitamos de algo que nos refresque a inteligência.Não se sinta lisonjeado, Basil, você não se parece nada comele. - Você não me compreende, Harry - respondeu o artista. - Écerto que não me pareço com ele. Sei isso perfeitamente. Aténem gostaria de parecer-me com ele. Encolhe os ombros? Estou adizer a verdade. Há em toda a superioridade física eintelectual uma certa fatalidade, aquela fatalidade que pareceperseguir ao longo da história os passos vacilantes dos reis.É preferível não sermos diferentes dos outros. Os feios e osestúpidos são os que mais ganham neste mundo. Podem ficardespreocupadamente embasbacados a olhar. Se não conhecem otriunfo, pelo menos também não conhecem a derrota. Vivem comotodos nós devíamos viver - impassíveis, indiferentes, 9e sem inquietações. Não trazem o mal a ninguém, nem o recebemde mãos alheias. A sua posição social e a sua fortuna, Harry,a minha inteligência, seja ela o que for, a minha arte, valhaela o que valer, a beleza de Dorian Gray... havemos todos desofrer por aquilo que os deuses nos concederam... sofrerterrivelmente. - Dorian Gray? É assim que ele se chama? - perguntou LordHenry, atravessando o atelier em direcção a Basil Hallward. - É. Mas não pretendia dizer-lho. - E por que não? - Bem... Não sei explicar. Quando gosto imenso de umapessoa, nunca digo a ninguém o seu nome. Seria como queentregar uma parte dela. Habituei-me a manter o segredo.Parece ser a única coisa que nos pode tornar a vida modernamisteriosa, ou maravilhosa. A coisa mais banal adquire encantosimplesmente quando não revelada. Quando me ausento da cidade,nunca digo aos da casa para onde vou. Perdia todo o prazer, seo fizesse. É um hábito tolo, confesso, mas, de certo modo,traz algum romantismo à nosa vida. Você deve achar tudo istoum disparate. - De modo nenhum - contestou Lord Henry -, de modo nenhum,meu caro. Você parece esquecer-se de que sou casado, e o únicoencanto do casamento é a necessidade absoluta de uma vida deengano recíproco. Nunca sei onde está a minha mulher, e elanunca sabe o que eu faço. Quando nos encontramos, o queacontece uma vez por outra quando jantamos fora ou visitamos oduque, contamos um ao outro as histórias mais absurdas, e como ar mais sério deste mundo. A minha mulher tem muito jeitopara isso, muito mais do que eu. Nunca confunde as datas, aopasso que eu confundo-as sempre. Mas se me apanha em falta,nunca protesta. Às vezes, eu bem gostaria que o fizesse, masela limita-se a rir de mim. - Detesto o modo como você fala da sua vida conjugal, 10 11Harry - observou Basil Hallward, caminhando em direcção àporta que dava para o jardim. - Considero-o um excelentemarido que se envergonha das suas boas qualidades. Você é umindivíduo extraordinário. Não prega a moral, contudo nãocomete más acções. Esse seu cinismo não é mais do que umapose. - A naturalidade não é mais do que uma pose, a pose maisirritante que conheço - exclamou, a rir, Lord Henry. E os dois jovens saíram juntos para o jardim e instalaram-senum comprido banco de bambu, à sombra de um matagal de altosloureiros. A luz do sol escorregava pelas folhas lustrosas. Narelva estremeciam os malmequeres brancos. Após breve silêncio, Lord Henry puxou do relógio. - Tenho de me ir embora, Basil - murmurou -, mas antes deir, quero que responda à pergunta que Lhe fiz há instantes. - Que pergunta? - volveu o pintor, de olhos fixos no chão. - Sabe muito bem qual é. - Não, não sei, Harry. - Então digo-lha já. Quero que me explique porque não querexpor o retrato de Dorian Gray. Quero saber o verdadeiromotivo. - Mas eu disse-lhe o verdadeiro motivo. - Não, não disse. O que me disse foi que havia neledemasiado de si mesmo. Ora, isso é uma grande infantilidade. - Harry - disse Basil Hallward, olhando-o cara a cara -,todo o retrato pintado com sentimento é um retrato do artista,e não do modelo. O modelo é apenas o acidente, o pretexto. Opintor não o revela a ele, o pintor é que se revela a si mesmona tela colorida. O motivo por que não exponho este quadro é omedo de que eu tenha revelado nele o segredo da minha alma. Lord Henry desatou a rir. - E que segredo é esse? - Vou contar-Lhe - disse Hallward, mas notava-se-lhe norosto uma certa perplexidade. 12 - Estou ansioso por saber - continuou o companheiro,olhando-o de relance. - Ora, Harry, há muito pouco que contar - respondeu o pintor-, e receio que você nem chegue a entender. Talvez nem cheguea acreditar. Lord Henry sorriu e, debruçando-se, arrancou da relva ummalmequer de pétalas rosadas e pôs-se a examiná-lo. - Tenho absoluta certeza de que vou entender - retorquiuele, olhando atentamente o pequeno disco dourado de penasbrancas -, e, no que respeita a acreditar, sou capaz deacreditar em qualquer coisa, contanto que seja absolutamenteinacreditável. O vento sacudiu das árvores algumas flores, e os pesadoslilases, com seus cachos de estrelas, balouçaram no arlânguido. Junto ao muro, uma cigarra cantava a sua estrídulacegarrega, e, como um fio azul, passou uma delicada libelinhalevada pelas asas esfumadas e transparentes. Lord Henry tinhaa sensação de ouvir o bater do coração de Basil Hallward einterrogou-se sobre o que iria acontecer. - A história é simplesmente esta - disse o pintor, passadoalgum tempo. - Há dois meses, fui a uma recepção em casa deLady Brandon. Você sabe que nós, pobres artistas, temos de nosmostrar, de vez em quando, à sociedade, para fazer lembrar aopúblico que não somos selvagens. Como você uma vez me disse,de fraque e laço branco qualquer pessoa, até um corretor daBolsa, pode ganhar a reputação de civilizado. Bem, uns dezminutos depois de ter estado a conversar com viúvas cheias detítulos de nobreza e nada discretas no trajar, e comacadémicos enfadonhos, apercebi-me subitamente de que estavaalguém a olhar para mim. Virei-me e vi Dorian Gray pelaprimeira vez. Cuando os nossos olhos se encontraram, senti queempalidecia. Apoderou-se de mim uma estranha sensação deterror. Sabia que tínha deparado com alguém de personalidadetão fascinante que, se eu o permitisse, iria absorver todo omeu ser, toda a minha alma, a minha própria arte. Não querianenhuma influência externa na minha vida. Você sabe bem, 13Harry, que sou, por temperamento, independente. Fui sempresenhor de mim mesmo, pelo menos sempre o fora até encontrarDorian Gray. Então... nem sei explicar-lhe o que se passou.Era como se alguma coisa me dissesse que me aproximava de umacrise terrível. Tinha a estranha sensação de que o destino mereservava intensas alegrias e intenso sofrimento. Fiqueiatemorizado e voltei-me para abandonar a sala. Não foi porrazões de consciência que o fiz: foi uma espécie de cobardia.Não me pertence, pois, o mérito desta tentativa de fuga. - A consciência e a cobardia são de facto a mesma coisa,Basil. A consciência é a marca comercial da firma. Mais nada. - Não acredito, Harry, e creio que você também não. Contudo,fosse qual fosse o motivo - orgulhoso como eu era, poderá tersido por orgulho -, consegui encaminhar-me para a porta. Mas,evidentemente, deparei com Lady Brandon. "Não pode deixar-nostão cedo, Mr. Hallward!",, gritou ela. Você conhece-Lhe aquelavoz particularmente esganiçada? - Conheço. Ela é em tudo como um pavão, excepto na beleza -disse Lord Henry, desfazendo o malmequer com os dedos longos enervosos. - Não púde ver-me livre dela. Apresentou-me a gente daRealeza, e a pessoas de estrelas e jarreteiras, e a damasidosas de tiaras gigantescas e narizes de papagaio. Referia-sea mim como o seu queridíssimo amigo. Tinha-a encontrado só umavez, mas cismou que havia de me tratar como uma celebridade.Creio que na altura um quadro meu obteve grande êxito, pelomenos chegou a ser muito falado nos jornais, o que, no séculoXIX, é a medida-padrão da imurtalidade... De repente,encontrei-me frente a frente com o jovem, cuja personalidademe perturbara de modo tão particular. Estávamos muito juntosum do outro, quase nos tocávamos. Os nossos olhos voltaram aencontrar-se. Sei que fui muito irreflectido ao pedir a LadyBrandon que me apresentasse a ele. Talvez não tenha sido assimtão irreflectido, afinal. Era uma coisa inevitável. 14Acabaríamos por falar um com o outro, mesmo sem apresentações.Tenho a certeza. Dorian chegou a dizer-mo mais tarde. Tambémele sentiu que estava predestinado que nos havíamos deconhecer. - E como descreveu Lady Brandon esse jovem admirável? -perguntou o amigo. - Sei que ela adora fazer uma brevebiografia de cada um dos seus convidados. Recordo uma ocasiãoem que me apresentou a um cavalheiro idoso, truculento, caravermelha e coberto de condecorações, então, com uma voz tãosibilante que deve ter sido perfeitamente audível para todasas pessoas presentes na sala, ela começou a segredar-me aoouvido, e num tom trágico, os pormenores mais assombrosos.Resolvi fugir. Gosto de ser eu a descobrir as pessoas. LadyBrandon, porém, trata os seus convidados exactamente como umleiloeiro trata a sua mercadoria. Ou os descreveminuciosamente, ou diz tudo acerca deles, excepto o quequeremos saber. - Pobre Lady Brandon! Está a ser muito severo com ela,Harry! - comentou Hallward, um pouco distraído. - Meu caro amigo, ela tentou abrir uma sala de recepções, eo que conseguiu foi abrir um restaurante. Como poderia sentiradmiração por ela? Mas, afinal, o que lhe disse de DorianGray? - Ah, coisas como "Rapaz encantador... eu e sua pobre mãeéramos absolutamente inseparáveis. Esqueci completamente o queele faz... parece-me que não faz nada... ah, sim, tocapiano... ou é violino, meu querido Mr. Gray?" Nem ele nem eupudemos deixar de rir, e ficámos logo amigos. - O riso não é nada um mau começo para uma amizade, e é delonge o seu melhor final - disse o jovem lorde, arrancandooutro malmequer. Hallward abanou a cabeça, discordando. - Você não sabe o que é a amizade, Harry - murmurou ele -,nem mesmo a inimizade. Você gosta de toda a gente, o quesignifica que todos Lhe são indiferentes. 15 - É muito injusto comigo! - exclamou Lord Henry, puxando ochapéu para trás e erguendo o olhar para as nuvenzinhas deverão que, como meada de seda branca já desfeita, flutuavampelo vazio azul-turquesa do céu. - Sim, tremendamente injusto.Eu estabeleço uma norma para diferenciar bem as pessoas.Escolho os amigos pela beleza, os conhecidos pelas qualidadesde carácter, e os inimigos pelas de inteligência. Todo ocuidado é pouco na escolha dos inimigos. Não tenho um únicoque seja estúpido. São todos homens de capacidade intelectuale, por conseguinte, todos me apreciam. Será isto vaidade?Talvez seja um pouco. - Talvez, Harry. Mas, segundo a sua classificação, eu devoser um simples conhecido. - Meu velho, você é muito mais do que um conhecido. - E muito menos do que um amigo. Uma espécie de irmão. - Ora, os irmãos! Os irmãos pouco me importam. O meu irmãomais velho nunca mais morre, enquanto os mais novos parecemnão fazer outra coisa. - Harry! - protestou Hallw ard, de semblante carregado. - Meu caro amigo, não estou a falar a sério. Mas não consigodeixar de detestar os meus parentes. Creio que se deve aofacto de nenhum de nós poder suportar ver nos outros ospróprios defeitos. Apoio inteirâmente a indignação que ademocracia inglesa manifesta contra aquilo a que chama osvícios das classes superiores. As grandes massas acham que aembriaguez, a estupidez e a imoralidade devem serexclusivamente propriedade sua, e que se algum de nós fazfigura de parvo é como se tivesse ido caçar na sua coutada.Quando o pobre do Southwark foi a tribunal por causa doprocesso de divórcio, a indignação dessa gente foi estrondosa.E, todavia, não me parece que dez por cento do proletariadoviva decentemente. - Não concordo com uma única palavra que acaba de proferire, além do mais, Harry, tenho a certeza de que nem você mesmoconcorda. 16 Lord Henry cofiou a barba castanha e, com a ponta da bengalade ébano ornamentada com borlas, bateu na biqueira da bota deverniz preto. - Você é tipicamente inglês, Basil! Já é a segunda vez quefaz semelhante observação. Se expomos uma ideia a um inglêsgenuíno, o que é sempre uma grande imprudência, nunca lheocorre pensar se a ideia é correcta ou errada. A única coisaque considera importante é saber se acreditamos na ideia pornós exposta. Ora o valor de uma ideia não tem nada que ver coma sinceridade da pessoa que a expressa. Na realidade, existemfortes probabilidades de que quanto mais insincero for ohomem, mais puramente intelectual é a ideia, visto que, nessascircunstâncias, ela não será colorida pelas suas necessidades,nem desejos, nem preconceitos. Contudo, não pretendo discutirconsigo política, sociologia ou metafísica. Gosto mais daspessoas do que dos princípios e, mais que tudo no mundo, gostode pessoas sem princípios. Mas, meu caro, conte-me mais coisasacerca de Mr. Dorian Gray. Com que frequência costuma vê-lo? - Todos os dias. Não podia sentir-me feliz se não o vissetodos os dias. Ele é-me absolutamente necessário. - Que extraordinário! Eu supunha que você não se interessavapor mais nada que não fosse a sua arte. - Agora é ele toda a minha arte - reconheceu o pintor,gravemente. - Às vezes penso, Harry, que há apenas duas erasrealmente importantes na história do mundo. A primeira é oaparecimento de um novo meio para a arte, e a segunda é oaparecimento de uma nova personalidade também para a arte. Oque foi para os venezianos a invenção da pintura a óleo, orosto de Antínoo para a escultura grega tardia, e o que seráum dia para mim o rosto de Dorian Gray. E não é apenas por serele o tema da minha pintura, e dos meus desenhos, e dos meusesboços. Evidentemente que fiz tudo isso. Mas, para mim, elesignifica muito mais do que um modelo. Isto não quer dizer queme sinta insatisfeito com o que fiz dele, ou que a sua belezaseja de tal ordem que a Arte não pode exprimi-la. 17Não há nada que a Arte não possa exprimir, e reconheço quetodo o trabalho que realizei desde que conheci Dorian Gray éum trabalho de qualidade, é a melhor obra da minha vida. Mas,é curioso que - será que você me vai compreender? - apersonalidade dele sugeriu-me uma forma inteiramente nova emarte, um estilo inteiramente novo. Vejo as coisas e pensonelas de maneira diferente. Posso agora recriar a vida de ummodo que me estava oculto. Um sonho da forma em dias depensamento., Quem disse isto? Não me recordo. Mas éprecisamente o que Dorian Gray tem sido para mim. A simplespresença física deste rapaz - para mim não passa de um rapaz,embora tenha mais de vinte anos -, a sua simples presençafísica... Ah, mas será que você compreende o que tudo istosignifica? Inconscientemente, ele define-me uma nova escola,uma escola que há-de conter toda a paixão do espíritoromântico, toda a perfeição do espírito grego. A harmonia daalma e do corpo... quão sublime é tudo isso: Loucos que somos,separámos o corpo e a alma, e inventámos um realismogrosseiro, uma idealidade vazia. Harry, se você ao menossoubesse o que Dorian Gray representa para mim! Lembra-sedaquela minha paisagem pela qual Agnes me ofereceu um preçoelevadíssimo, mas de que eu não quis separar-me? É uma dascoisas melhores que fiz. E sabe porquê? Porque enquanto apintava, Dorian Gray estava ao meu lado. Uma emanação subtilpassava dele para mim, e, pela primeira vez na vida, vi numbosque vulgar a magia que sempre procurei e que nuncaencontrara. - Mas, Basil, isso é extraordinário! Preciso de ver DorianGray. Hallward levantou-se do banco e começou a passear pelojardim. Passado algum tempo, aproximou-se. - Harry, Dorian Gray representa para mim unicamente ummotivo de arte. Você poderá não ver nele nada de especial. Euvejo tudo. A sua presença na minha obra não é menor quando nãose encontra nela a sua imagem. Como já afirmei, ele é umasugestão de um novo estilo. 18Descubro-o nas curvas de certas linhas, na beleza e nassubtilezas de certas cores. Nada mais. - E então por que não expõe o seu retrato? - Porque, involuntariamente, pus nele um pouco da expressãodesta singular idolatria mística, de que, evidentemente, nuncame interessou falar-lhe. Ele não sabe nada disto. Nem nuncasaberá. O público, porém, poderia descobrir, e eu não querodesnudar a minha alma à sua curiosidade grosseira. Nuncasujeitarei o meu coração a essa bisbilhotice microscópica. Hámuito de mim mesmo nesta obra, Harry... Demasiado! - Os poetas não são tão escrupulosos como você. Sabem que apaixão lhes é muito útil como tema publicável. Actualmente, umcoração destroçado faz aumentar o número de edições. - Odeio-os por isso mesmo - exclamou Hallward. - Um artistadeve criar coisas belas, mas sem que nelas ponha seja o quefor da sua vida pessoal. Vivemos numa época em que os homenstratam a arte como se devesse ser um género autobiográfico.Perdemos o sentido abstracto da beleza. Um dia hei-demostrá-la ao mundo, e, por isso, o mundo jamais verá o meuretrato de Dorian Gray. - Creio que você não tem razão, Basil. Mas não querodiscutir consigo. Só os intelectualmente perdidos é quediscutem. Diga-me, Dorian Gray gosta muito de si? O pintor ficou uns instantes a pensar. - Ele gosta de mim - respondeu, após uma pausa -, sei quegosta de mim. É claro que costumo lisonjeá-lo de uma maneirahorrível. Tenho um estranho prazer em dizer-lhe certas coisas,mesmo sabendo que vou arrepender-me de as ter dito. Em regra,ele é encantador comigo, e ficamos no estúdio a falar de mil euma coisas. Às vezes, porém, ele é terrivelmente irreflectidoe parece ter um enorme prazer em me fazer sofrer. E então,Harry, sinto que entreguei toda a minha alma a alguém que atrata como se fosse uma flor para colocar na lapela, umornamento para deleite da sua vaidade, um enfeite para um diade Verão. 19 - Os dias de Verão, Basil, tendem a alongar-se - murmurouLord Henry. - Talvez você se canse primeiro do que ele. Étriste pensar nisso, mas não há dúvida de que o Génio duramais que a Beleza. E isto explica o facto de nos esforçarmostanto para nos cultivarmos de modo tão exagerado. Na lutaferoz pela existência, queremos possuir algo de duradouro e,por isso, atafulhamos as nossas mentes de inutilidades efactos, na esperança absurda de conservar o nosso lugar. Ohomem bem informado faz parte do ideal moderno. E a mente dohomem bem informado é uma coisa horrível. Assemelha-se a umaloja de bricabraque, repleta de monos e pó, onde tudo estámarcado com um preço superior ao seu real valor. Mesmo assim,creio que você será o primeiro a cansar-se. Há-de chegar o diaem que, ao olhar o seu amigo, vai achá-lo com traços menoscorrectos, ou não vai gostar da tonalidade do rosto, ou dequalquer outra coisa. No seu íntimo, você irá censurá-loamargamente, e pensará muito a sério que ele teve consigo umcomportamento incorrecto. Quando ele voltar a aparecer-Lhe,irá recebê-lo com total frieza e indiferença. O que serálamentável, pois você passa a ser uma pessoa diferente. O queacaba de me contar é uma fantasia romântica - poderiachamar-se mesmo um romance de arte -, e o pior em qualqueraventura romântica é que ela nos deixa tão pouco românticos. - Não fale assim, Harry. Enquanto viver, serei dominado pelapersonalidade de Dorian Gray. Você não pode sentir o que eusinto. Você é muito inconstante. - Ah, meu caro Basil, é por isso mesmo que o posso sentir.Os que são fiéis conhecem apenas o lado trivial do amor, osinfiéis são precisamente aqueles que conhecem o seu ladotrágico. E Lord Henry acendeu um fósforo numa delicada caixa deprata, e começou a fumar um cigarro com um ar convencido esatisfeito, como se tivesse resumido o mundo numa frase. 20 Ouvia-se a chilreada dos pardais por entre o verde lacadodas folhas de hera, e as sombras azuladas das nuvensperseguiam-se umas às outras pelo relvado como andorinhas. Queaprazível estava o jardim! E como eram deliciosas as emoçõesdos outros! Pareciam-Lhe muito mais deliciosas do que asideias. A nossa alma e as paixões dos nossos amigos - eis ascoisas fascinantes da vida - Imaginava, intimamente divertido,o almoço fastidioso a que faltara, por ter ficado tanto tempocom Basil Hallward. Se tivesse ido a casa de sua tia, iria comcerteza encontrar Lord Hoodbody-, e toda a conversa teriaandado à volta de alimento para os pobres e da necessidade decasas-modelo. Cada classe teria pregado a importância dessasvirtudes, para a prática das quais não havia necessidade nassuas vidas. Os ricos teriam falado sobre o valor da poupança,e os ociosos teriam perorado com eloquência sobre a dignidadedo trabalho. Como era agradável ter-se livrado de tudo isso!Ao pensar em sua tia, aconteceu-lhe de súbito uma ideia, edirigiu-se a Hallward. - Meu prezado amigo, lembrei-me mesmo agora... - Lembrou-se de quê, Harry? - De onde ouvi o nome de Dorian Gray. - Onde foi? - perguntou Hallward, franzindo levemente assobrancelhas. - Não faça essa cara tão zangada, Basil. Foi em casa deminha tia, Lady Agatha. Ela contou-me que descobrira um jovemmaravilhoso que estava disposto a ajudá-la no East End, edisse que o nome dele era Dorian Gray. Mas devo dizer-Lhe queela nunca falou da sua beleza. As mulheres não apreciam abeleza... pelo menos, as mulheres boazinhas. O que ela medisse foi que ele era muito sério e de uma índole maravilhosa.E logo imaginei uma criatura de óculos e cabelo escorrido,horrivelmente sardento, e com pés enormes. Que pena não tersabido então que ele era o seu amigo. - Ainda bem que não soube, Harry. - Porquê? - Não quero que se encontrem. 21 - Não quer que eu me encontre com ele? - Não. - Mr. Dorian Gray- está no atelier - anunciou o mordomo,aparecendo no jardim. - Agora, terá mesmo de me apresentar - exclamou, rindo, LordHenry. O pintor voltou-se para o criado, que continuava à espera,pestanejando à luz do sol. - Peça a Mr. Gray o favor de esperar, Parker. Não voudemorar muito. O homem fez uma vénia e retirou-se. Então Basil Hallwardolhou para Lord Henry. - Dorian Gray é o meu mais querido amigo.1ém uma índolesimples e bela. O que a sua tia disse dele é absolutamentecorrecto. Não o estrague. Não tente influenciá-lo. A suainfluência sobre ele seria nociva. O mundo é vasto e temmuitas pessoas maravilhosas. Não me roube a única pessoa queempresta à minha arte o encanto que possui, a minha vida comoartista depende dele. Veja bem, Harry, confio em si. Falava muito devagar, como se arrancasse as palavras quase acontragosto. - Não diga disparates! - acudiu Lord Henry a sorrir, e,pegando-Lhe num braço, quase o arrastou para dentro de casa. Capítulo II Viram Dorian Gray assim que entraram. Estava sentado aopiano, de costas para eles, a virar as páginas de um volumedas Cenas da Floresta de Schumann. - Tem de me emprestar estas músicas, Basil - exclamou. -Quero estudá-las. São belíssimas. - Isso depende de como hoje vai posar, Dorian. - Ah, já estou cansado de posar e não quero um retrato decorpo inteiro - ripostou o rapaz, de um modo voluntarioso epetulante, voltando-se no banco do piano. Quando avistou LordHenry, um leve rubor cobriu-lhe as faces por um instante, elevantou-se de repente. - Perdão, Basil, não sabia que estava acompanhado. - É Lord Henry Wotton, Dorian, um velho amigo dos tempos deOxford. Ainda há pouco estava a dizer-lhe que você era umexcelente modelo, e agora acabou por estragar tudo. - Não estragou o meu prazer em conhecê-lo, Mr. Gray - disseLord Henry avançando e estendendo-Lhe a mão. - Minha tia temfalado muito de si. É um dos seus preferidos, mas, receio bem,também uma das suas vítimas. - De momento, estou na lista negra de Lady Agatha -respondeu Dorian, com um ar cómico de penitência. - Tinhaprometido ir com ela terça-feira passada a um clube emWhitechapel, e acabei por me esquecer completamente. Era paratermos tocado um dueto juntos - três, parece-me. Não sei o queela me vai dizer, e estou demasiado apreensivo para a irvisitar. - Ora, eu me encarregarei de que façam as pazes. Ela é-lhemuito dedicada. Também, não me parece que a sua falta tenhatido importância. Possivelmente a assistência pensou que eraum dueto. 23Ao piano, a tia Agatha faz barulho por dois. - Mas isso é muito desagradável para ela, e não muitoagradável para min - respondeu Dorian, rindo. Lord Henryolhou para ele. Era, sem dúvida, extraordinariamente formoso,com os lábios rubros de contornos bem delineados, o olharfranco de uns olhos azuis, o cabelo loiro e ondulado. Havia noseu rosto qualquer coisa que inspirava imediatamenteconfiança. Tinha toda a candura e toda a apaixonada pureza dajuventude. Sentia-se que não tinha sido maculado pela maldadedo mundo. Não era de admirar que Basil Hallward o adorassetanto! - É demasiado sedutor para se dedicar á filantropia, Mr.Gray... muito sedutor. Lord Henry atirou-se para cima do divã e abriu a cigarreira.O pintor tinha estado ocupado a misturar cores e a preparar ospincéis. Tinha um ar preocupado, e, quando ouviu a últimaobservação de Lord Henry, lançou-Lhe um olhar e hesitouligeiramente. - Harry, quero terminar hoje este quadro. - Acabou então pordizer-lhe. - Será muito indelicado da minha parte pedir-lheque se retire? Lord Henry sorriu e olhou para Dorian Gray. - Devo ir-me embora, Mr. Gray? - perguntou-lhe. - Oh, por favor não vá, Lord Henry! Vejo que Basil está numdos seus dias de mau humor, e não tenho paciência para oaturar quando está maldisposto. Além disso, gostaria que medissesse por que não devo dedicar-me à filantropia. - Não me parece que lho deva dizer, Mr. Gray. É um assuntotão monótono que seria necessário falar a sério. Mas decidi ficar, já que mo pediu. Basil, você não se importa,pois não? Já me tem dito muitas vezes que gosta que os seusmodelos tenham alguém com quem conversar. Hallward fez um esforço para se dominar. 24 - Se é essa a vontade de Dorian, claro que deve ficar. Oscaprichos de Dorian são leis para toda a gente, excepto paraele. Lord Henry pegou no chapéu e nas luvas. - Apesar de tanta insistência sua, Basil, não vou ficar.Prometi a um indivíduo que nos encontraríamos no Orleans.Adeus, Mr. Gray. Venha visitar-me uma tarde destas à CurzonStreet. Costumo estar em casa por volta das cinco horas. Masescreva a avisar-me. Teria muita pena de o não encontrar. - Basil - exclamou Dorian Gray -, se Lord Henry se vaiembora, eu também vou. Você emudece enquanto pinta. Alémdisso, é tremendamente monótono estar de pé, num estrado, eainda a tentar fazer um ar bem-disposto. Peça-Lhe que fique.Insisto que o faça. - Fique, Harry. É um favor que faz a Dorian e a mim - disseHallward, fixando atentamente o retrato. - É verdade, nuncafalo enquanto trabalho, e nem sequer ouço o que me dizem, oque deve causar um tédio terrível aos meus infelizes modelos.Peço-Lhe que fique. - E o homem que está à minha espera no Orleans? O pintor riu-se. - Não me parece que isso vá causar qualquer problema. Tornea sentar-se, Harry. E você, Dorian, suba para o estrado e vejase fica imóvel, mas não preste atenção ao que Lord Henrydisser. É que ele exerce uma influência muito nociva em todosos seus amigos, com a única excepção da minha pessoa. Dorian Gray subiu para o estrado, com o ar de um jovemmártir grego, e fez um leve trejeito de desagrado a LordHenry, por quem sentia já grande inclinação. Ele era tãodiferente de Basil. Os dois faziam um contraste encantador. Etinha uma voz tão bonita. - É verdade que a sua influência é assim tão má, Lord Henry?- perguntou-lhe, alguns momentos depois. - Tão má como dizBasil? - Uma boa influência é coisa que não existe, Mr. Gray. 25 Toda a influência é imoral, imoral sob o ponto de vistacientífico. - Porquê? - Porque exercer a nossa influência sobre alguém é darmos aprópria alma. Esse alguém deixa de pensar com os pensamentosque Lhe são inerentes, ou de se inflamar com as suas própriaspaixões. As suas virtudes não lhe são reais. Os seus pecados -se é que os pecados existem - são emprestados. Tal pessoapassa a ser o eco da música de outrem, o actor de um papel quenão foi escrito para si. O objectivo da vida é o nossodesenvolvimento pessoal. Compreender perfeitamente a nossanatureza - é para isso que estamos cá neste mundo. Hoje aspessoas temem-se a si próprias. Esqueceram o mais nobre detodos os deveres: o dever que cada um tem para consigo mesmo.É certo que não deixam de ser caritativos. Dão de comer aosque têm fome e vestem os pobres. Mas as suas almas andamfamintas e nuas. A coragem desapareceu da nossa raça. Outalvez nunca a tivéssemos tido. O temor da sociedade, que é abase da moral, o temor de Deus, que é o segredo da religião -eis as duas coisas que nos governam. E, contudo... - Volte a cabeça um pouco mais para a direita, Dorian, sejaum rapaz bem comportado - disse o pintor, absorvido pelo seutrabalho e apercebendo-se apenas de que surgira no rosto dojovem uma expressão que nunca lhe vira antes. - E, contudo - continuou Lord Henry na sua voz Grave emusical, e fazendo um gracioso gesto com a mão, tãocaracterístico, mesmo já nos tempos de Eton -, se um homemdevesse viver a sua vida em toda a plenitude, dar forma atodos os sentimentos, expressão a todos os pensamentos,realidade a todos os sonhos, creio que o mundo ganharia umnovo impulso de alegria que nos levaria a esquecer todos osmales do medievalismo e a regressar ao ideal helénico. Talvezmesmo a algo mais refinado e mais rico que o ideal helénico.Mas o mais ousado de todos nós teme-se a si mesmo. O selvagemmutilado que nós somos sobrevive tragicamente na auto-rejeiçãoque frustra as nossas vidas. 26 27Somos punidos pelas nossas rejeições. Todo o impulso queesforçadamente asfixiamos fica a fermentar no nosso espírito,e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e mais não precisa, poisa acção é um processo de purificação. E nada fica, a não ser alembrança de um prazer, ou o luxo de um pesar. Ceder a umatentação é a única maneira de nos libertarmos dela. Se lheresistimos, a alma enlanguesce, adoece com as saudades de tudoo que a si mesma proíbe, e de desejo por tudo o que as suasleis monstruosas converteram em monstruosidad e ilegalidade.Diz-se que as grandes realizações deste mundo ocorrem nocérebro. É também no cérebro, e só aí, que ocorrem os grandeserros do mundo. E até o senhor, Mr. Gray, que se encontra naflor da juventude, viveu paixões que o atemorizaram, tevepensamentos que o apavoraram e, quer acordado, quer a dormir,teve sonhos tais, que a sua simples lembrança, fariam corar devergonha... - Não continue, por favor! - balbuciou Dorian Gray -,Sinto-me confuso. Nem sei que dizer. Há decerto uma respostaadequada, eu é que a não consigo encontrar. Não diga nada.Deixe-me pensar Ou, mais exactamente, deixe-me tentar nãopensar. Durante cerca de dez minutos, permaneceu imóvel, os lábiosentreabertos e um brilho estranho no olhar. Tinha uma vagapercepção de que dentro de si actuavam influênciasinteiramente novas. E, todavia, pareciam ter surgido de dentrode si mesmo. As poucas palavras que o amigo de Basil lhedirigira - palavras proferidas por acaso, sem dúvida, eintencionalmente paradoxais - tinham feito vibrar uma cordasecreta, até então nunca tocada, que sentia agora latejar aoritmo de inexplicáveis pulsações. Também a música o perturbava assim, e muitas vezes o tinhaemocionado. Mas a música não recorria às palavras. Criava emnós, não um novo mundo, mas sim outro caos. As palavras,simples palavras... como podiam ser terríveis! Como eramnítidas, e vívidas, e cruéis! Não conseguíamos fugir-lhes. E,no entanto, quanta magia subtil possuíam! Pareciam capazes dedar forma plástica a coisas informes e de possuir músicaprópria tão suave como a da viola e do alaúde. Meras palavras!Haveria alguma coisa tão real como as palavras? Haviam ocorrido coisas durante a sua meninice que, nessetempo, não entendera. Compreendia-as agora. A vida surgia-lhe,de repente, com um colorido flamejante. Tinha a sensação deter caminhado sobre o fogo. Por que não soubera antes? Com o seu sorriso subtil, Lord Henry ficou a observá-lo. Elesabia qual o exacto momento psicológico em que deviapermanecer calado. Sentia um interesse enorme. Ficousurpreendido com a súbita impressão que as suas palavrashaviam provocado, e, recordando um livro que lera aosdezasseis anos e que lhe desvendara muitas coisas que antesignorava, interrogava-se se Dorian Gray estaria passando porexperiência semelhante. Limitara-se a atirar uma seta para oar. Teria atingido o alvo? Que rapaz tão fascinante! Hallward continuava a pintar, com aquele seu estilo ousado emagnífico, que possuía verdadeiro requinte e perfeitadelicadeza, e que, pelo menos em arte, só provém da forçainterior. Nem se apercebeu do silêncio que se fizera. - Sinto-me cansado de estar de pé, Basil - exclamou DorianGray, de repente. - Preciso de ir sentar-me um pouco lá forano jardim. O ar aqui dentro está sufocante. - Desculpe, meu amigo. Quando estou a pintar, não consigopensar em mais nada. É que você nunca posou tão bem, esteveperfeitamente imóvel. Captei o efeito que pretendia: os lábiosentreabertos e o brilho do olhar. Não sei o que Harry Lheesteve a dizer, só sei que lhe provocou essa expressãomaravilhosa no rosto. Provavelmente esteve a dirigir-lheelogios. Mas não acredite em nenhuma das suas palavras. - Pode ter a certeza de que ele não me fez elogios. Talvezseja por isso que não acredito em nada do que me disse. 28 - Sabe perfeitamente que acredita em tudo o que Lhe disse -interveio Lord Henry, fitando-o com o olhar lânguido esonhador. - Acompanho-o ao jardim. Está um calor horríveldentro do estúdio. Dê-nos qualquer coisa gelada para beber,Basil, uma coisa que tenha morangos. - Com certeza, Harry. Toque a campainha, e quando Parkeraparecer transmitir-lhe-ei o seu pedido. Tenho que trabalhareste fundo, por isso só irei ter convosco mais logo. Não meretenha Dorian muito tempo. Nunca esteve em tão boa forma parapintar como hoje. Esta vai ser a minha obra-prima. Ela já é aminha obra-prima assim como está. Lord Henry foi para o jardim. Encontrou Dorian Gray com orosto mergulhado nos grandes cachos frescos de lilases,absorvendo-lhes febrilmente o perfume como se fosse vinho.Aproximou-se dele e pousoú-lhe a mão no ombro. - Faz muito bem em fazer isso - murmurou. - Só os sentidospodem curar a alma, assim como só a alma pode curar ossentidos. O rapaz sobressaltou-se e recuou. Estava de cabeçadescoberta, e as folhas tinham-lhe despenteado os anéisrebeldes do cabelo, enleando-Lhe as madeixas douradas. Tinhaum olhar assustado, como o daquelas pessoas que são acordadasde repente. As narinas, de linhas delicadas, fremiam, e umnervo oculto fazia tremer os lábios rubros. - É verdade - continuou Lord Henry -, esse é um dos grandessegredos da vida: curar a alma através dos sentidos, e ossentidos através da alma. O senhor, Mr. Gray, é uma maravilhada criação. Sabe mais do que julga que sabe, mas também sabemenos do que quer saber. Dorian Gray, de semblant carregado, voltou a cabeça para ooutro lado. Não podia deixar de gostar do homem alto e grácilque estava junto de si. Despertavam-lhe interesse o rostoromântico cor de azeitona e a sua expressão fatigada. Haviaalgo na voz Grave e lânguida que era extraordinariamentefascinante. Até as mãos, brancas e frias como flores, possuíamum estranho encanto. Quando falava, moviam-se como música, 29e pareciam ter uma linguagem própria. Mas tinha medo dele etinha vergonha de ter medo. Por que havia de ter sido umdesconhecido a revelar-lhe o seu próprio íntimo? Já se tinhampassado meses desde que conhecera Basil Hallward, contudo aamizade entre eles não o tinha modificado em nada. E, logoassim, de súbito, deparou com uma pessoa que parecia ter-lhedesvendado o mistério da vida. E o que havia a recear? Não eranenhum rapazinho, nem uma menina... Era absurdo sentir medo. - Sentemo-nos à sombra - sugeriu Lord Henry. - Parker játrouxe as bebidas, e se o senhor permanecer mais tempo sobeste sol escaldante, vai ficar com a pele estragada, e,depois, Basil não voltará a pintar o seu retrato. Na verdade,não se deveria deixar queimar pelo sol. Não lhe ficaria nadabem. - E que importância tem isso? - exclamou Dorian Gray, a rir,sentando-se num banco ao fundo do jardim. - Devia ter muita importância para si, Mr. Gray. - Porquê? - Porque tem uma juventude deslumbrante, e a juventude é aúnica coisa que vale a pena ter. - Não penso assim, Lord Henry. - Pois não, não pensa assim agora. Um dia, quando for velho,enrugado e feio, quando o pensamento lhe tiver sulcado afronte de rugas, e a paixão, com suas chamas medonhas, lhetiver crestado os lábios, sentirá então uma impressãoterrível. Agora, aonde quer que vá, consegue seduzir todas aspessoas. Mas será sempre assim? Tem um rosto de belezadeslumbrante, Mr. Gray. Não precisa de fazer esse ar tãocontrariado. É verdade. E a Beleza é uma forma de Génio, sendomesmo superior ao génio, pois não necessita de ser explicada.Ela faz parte dos grandes elementos do universo, como a luz dosol, a Primavera, ou o reflexo nas águas nocturnas, dessaconcha de prata a que chamamos lua. Não pode ser contestada.Tem o direito divino de um soberano. Transforma em príncipesos que a possuem. Sorri? 30Ah, quando a tiver perdido, deixará de sorrir... Por vezes,ouve-se dizer que a Beleza é apenas superficial. Talvez seja.Mas, ao menos, não é tão superficial como o Pensamento.Considero a Beleza a maravilha das maravilhas. Só os fúteisnão julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo éo visível, e não o invisível. Sim, Mr. Gray, os deusesforam-lhe favoráveis. Mas os deuses dão agora, para tirardepois. O senhor tem tão-somente alguns anos para poder vivera vida em real plenitude. Quando a mocidade se for, com elairá a sua beleza, e, então, cedo descobrirá que não lherestaram êxitos, ou terá que se contentar com os êxitosinsignificantes, que a lembrança do passado tornará maisamargos do que às derrotas. À medida que os meses vãominguando, eles vão-no aproximando de algo terrível. O tempotem ciúmes de si, e faz guerra à primavera dos seus anos.Então, ficará com a pele macilenta, as faces encovadas e oolhar mortiço. Irá sofrer tormentos... Ah! Tome plenaconsciência da sua juventude enquanto a possuir. Não esbanje oouro dos seus dias a dar ouvidos a gente maçadora que tentaaproveitar o fracasso irremediável, nem perca o seu tempo comos ignorantes, os medíocres e os boçais. São esses osobjectivos doentios, os falsos ideais dos nossos dias. Viva,viva a vida maravilhosa que existe em si! Não desperdicenenhuma oportunidade, procure sempre novas sensações. Nãotenha medo de nada... Um novo Hedonismo - eis o que faz faltaao nosso século. O senhor podia ser o seu símbolo vivo. Comessa sua personalidade, não existe nada que não possa fazer. Omundo pertence-Lhe por um determinado tempo... No mesmoinstante em que o conheci, Mr. Gray, vi que o senhor não tinhaconsciência da sua verdadeira natureza, nem do que poderiaser. Havia em si tantas coisas que me fascinaram, que acheique devia falar-lhe de si. Pensei que seria muito trágico sese fosse perder. É que é tão breve o tempo de duração da suamocidade... tão breve. As vulgares flores silvestres fenecem,mas voltam a florir. Este laburno estará tão amarelo em Junhodo ano que vem como está agora. 31No espaço de um mês, a clematite ficará coberta de estrelascor de púrpura, e, ano após ano, a noite verde das suas folhasvai segurar as mesmas estrelas avermelhadas. Mas nós nuncarecuperamos a nossa mocidade. O pulsar de alegria, que em silateja aos vinte anos, perde o vigor. Os nossos membrostornam-se débeis, os sentidos definham. Vamos degenerando aténos transformarmos em fantoches hediondos, perseguidos pelalembrança das paixões que tanto temíamos, e das requintadastentações a que não tínhamos coragem de ceder. Ah,juventude... juventude! Não há absolutamente mais nada nomundo senão a juventude. Com olhar de espanto, e cheio de dúvidas, Dorian Gray ouviaatentamente. Deixou cair no chão de cascalho a haste de lilásque segurava. Uma abelha peluda aproximou-se dela e andouzumbindo à sua volta por uns instantes. Depois, começou atrepar pelo maciço oval de minúsculas flores estreladas.Dorian observava-a, com aquele estranho interesse que fazemospor tomar pelas coisas triviais, quando coisas de maiorimportância nos causam medo, ou quando somos agitados por umanova emoção que não sabemos definir, ou quando o nosso cérebroé subitamente assediado por um pensamento terrível que nosexorta a rendermo-nos. Pouco depois, a abelha voou para longe.Viu-a rastejar para o interior da campânula irisada de umatrepadeira. A flor pareceu estremecer e, logo, começou abalouçar suavemente. O pintor apareceu de súbito à porta do estúdio, fazendo-lhesrepetidos gestos com a mão para eles entrarem. Olharam um parao outro e sorriram. - Estou à espera - gritou ele. - Entrem já. A luz agora estáóptima. Não se esqueçam de trazer as bebidas. Levantaram-se e caminharam juntos. Duas borboletas verdes ebrancas esvoaçaram rente a eles, e, na pereira ao canto dojardim, um tordo começou a cantar. - Suponho que está contente por me ter conhecido, Mr. Gray -disse Lord Henry, olhando para ele. 32 - Sim, agora estou contente. Será que estarei para sempre? - Sempre! Que palavra horrível! Faz-me arrepios ouvi-la. Asmulheres é que gostam muito de a usar. Conseguem destruir umromance de amor quando procuram fazê-lo durar para sempre.Além disso, é também uma palavra sem sentido. A únicadiferença entre um capricho e uma paixão para toda a vida éque o capricho dura um pouco mais. Ao entrarem no estúdio, Dorian Gray pousou a mão no braço deLord Henry. - Nesse caso, que a nossa amizade seja um capricho -murmurou ele, corando pela sua ousadia, a seguir, subiu para oestrado e retomou a sua pose. Lord Henry deixou-se cair num cadeirão de verga e quedou-sea observá-lo. O ruído provocado pelo roçar do pincel na telaera o único som a quebrar o silêncio, salvo quando, por vezes,Hallward recuava um pouco para poder apreciar o seu trabalho auma certa distância. Nos raios oblíquos que entravam pelaporta aberta dançava uma poalha dourada. O aroma carregado dasrosas parecia pairar por sobre todas as coisas. Cerca de um quarto de hora depois, Hallward interrompeu apintura e fitou longamente Dorian Gray. Depois, olhou tambémdemoradamente o quadro, mordiscando a extremidade de um dosseus enormes pincéis e franzindo as sobrancelhas. - Acabei - exclamou, por fim. E, curvando-se, escreveu o seunome em grandes letras a vermelhão no canto esquerdo da tela. Lord Henry aproximou-se e examinou o retrato. Era, de facto,uma obra de arte maravilhosa. A semelhança com o original erade igual modo extraordinária. - Meu querido amigo, as minhas mais calorosas felicitações -disse ele. - É o mais belo retrato dos tempos modernos. Venhaver, Mr. Gray. O jovem estremeceu, como se tivesse despertado de um sonho. 33 - Está realmente acabado? - murmurou, ao descer do estrado. - Completamente - respondeu o pintor. - E você posoufantasticamente. Estou-lhe muitíssimo grato. - Isso deve-se inteiramente a mim - interveio Lord Henry. -Não é assim, Mr. Gray? Dorian não respondeu. Passou distraidamente diante do quadroe virou-se de frente para ele. Quando o viu, recuou e, pormomentos, o rosto ruborizou-se-lhe de satisfação. Assomou-lheaos olhos uma expressão de júbilo, como se se tivessereconhecido pela primeira vez. Continuava imóvel emaravilhado, apercebendo-se vagamente de que Hallward estava afalar com ele, mas sem apreender o significado das palavras. Asensação da sua própria beleza surgiu-lhe como uma revelação.Nunca a sentira antes. Os elogios de Hallward pareceram-lhesempre amáveis exageros provenientes da amizade que os unia.Escutara-os, rira-se deles e, depois, esquecera-os. Nuncahaviam exercido nele qualquer influência. Depois, apareceraLord Henry Wotton com o seu estranho discurso panegírico sobrea juventude e o prenúncio terrível da sua brevidade. Issoperturbara-o então, e agora, ao encarar o reflexo da suabeleza, toda a realidade da descrição acudiu-lhe subitamenteao espírito. De facto, havia de chegar o dia em que o rostoficaria enrugado e mirrado, os olhos baços e sem cor, e agraciosidade das suas formas destruída e deformada. O vermelhovivo dos lábios desapareceria, e também o tom dourado docabelo. A vida que teve, que Lhe criar a alma havia dedesfigurar-Lhe o corpo. Iria tornar-se horrendo, hediondo egrosseiro. Ao pensar nisso, uma dolorosa angústia, acutilante como umafaca, fez vibrar cada fibra delicada do seu ser. O azul dosolhos passou a cor de ametista, e cobria-o uma névoa delágrimas. Tinha a sensação de que uma mão de gelo lhe pousarano coração. - Não gosta do retrato? - exclamou Hallward, por fim, umpouco melindrado com o silêncio do rapaz, sem compreender osignificado desse silêncio. 34 - É claro que gosta - acudiu Lord Henry. - Quem não gostaria? É uma das coisas mais importantes da arte moderna.Dou por ele tudo o que me pedir, seja qual for o preço. Tem deser meu. - Mas ele não me pertence, Harry. - De quem é, então? - De Dorian, evidentemente - respondeu o pintor. - Eis um homem de sorte! - Que tristeza! - murmurou Dorian Gray, continuando a fitaro retrato. - Que tristeza! Vou ficar velho, e horrível, emedonho. Mas este retrato permanecerá eternamente jovem.Precisamente como neste dia de Junho. Se pudesse dar-se oinverso! Ser eu eternamente jovem e o retrato envelhecer!Daria tudo para que isso acontecesse! Tudo o que há no mundo!Daria a própria alma! - Um acordo desses não Lhe conviria nada, Basil - exclamouLord Henry, rindo. - Seria uma desgraça para o seu trabalho. - Eu opor-me-ia veementemente, Harry - disse Hallward. Dorian Gray voltou-se e olhou para ele. - Acredito que o faria, Basil. Você gosta mais da sua artedo que dos amigos. Para si, não passo de uma figura de bronzeverde. Ou nem tanto. O pintor arregalava os olhos de espanto. Aquele modo defalar não tinha nada a ver com Dorian. O que teria acontecido?Ele parecia tão irritado. Tinha a cara afogueada e as facesescaldantes. - Sim - continuou ele -, para si, valho menos do que o seuHermes de marfim, ou o seu Fauno de prata. Deles vai gostarsempre. E de mim, por quanto tempo irá gostar? Até aparecer aminha primeira ruga, suponho. Agora, sei que quando se perde abeleza, seja ela qual for, perde-se tudo. Isso foi o que o seuquadro me ensinou. Lord Henry Wotton tem toda a razão. Ajuventude é a única coisa que vale a pena ter. Quando euverificar que estou a envelhecer, suicido-me. 35 Hallward empalideceu e agarrou-lhe a mão. - Dorian! Dorian! - gritou ele -, não fale assim. Nunca tiveum amigo como você, nem nunca terei. Não tem ciúmes de coisasmateriais, pois não? Você é muito mais belo do que qualquerdessas coisas! - Tenho ciúmes de tudo em que a beleza não morre. Tenhociúmes do meu retrato que você pintou. Por que há-de eleconservar o que eu tenho de perder? Cada momento que passarouba-me algo, e dá-o a ele. Ah, se acontecesse ao contrário!Se o retrato pudesse mudar, e pudesse eu ser sempre como souagora! Por que é que você o pintou? Um dia ele vaidesdenhar-me... desdenhar-me terrivelmente. Os olhos arrasaram-se de lágrimas escaldantes, retirou a mãoviolentamente e, atirando-se para cima do divã, enterrou acara nas almofadas, como se estivesse a rezar. - Isto é obra sua, Harry - disse o pintor, amargamente. Lord Henry encolheu os ombros. - Este é que é o verdadeiro Dorian Gray. É só isso. - Não. Não é. - Se não é, que tenho eu a ver com isso? - Você devia ter saído quando lhe pedi - sussurrou ele. - Eu fiquei quando você mo pediu - foi a resposta de LordHenry. - Harry, não posso começar a discutir ao mesmo tempo com osmeus dois melhores amigos, mas de vocês dois, foi você que mefez odiar a mais bela obra de arte que já fiz, e voudestruí-la. O que é senão apenas um pedaço de tela e cor? Nãovou deixar que se venha interpor nas nossas três vidas eestragá-las. Dorian Gray levantou a sua cabeça loira da almofada e, derosto pálido e os olhos com vestígios de lágrimas, olhou parao pintor, enquanto este se dirigia para a mesa de apoio, quese encontrava por baixo da alta janela de cortinas. Que faziaele ali? Os seus dedos vasculhavam por entre a confusão detubos de estanho e pincéis secos, à procura de alguma coisa. 36Lá estava ela, a comprida espátula com a sua lâmina fina deaço maleável. Finalmente, encontrara-a. Iria rasgar a tela. Abafando um soluço, o rapaz levantou-se de um salto, e,correndo para Hallward, arrancou-lhe da mão a espátula earremessou-a para o fundo do atelier. - Não, Basil, não! - gritou ele. - Seria um crime! - Fico satisfeito por, finalmente, você apreciar a minhaobra, Dorian - disse o pintor, friamente, depois de se refazerda surpresa. - Nunca pensei que fosse apreciá-la. - Apreciá-la? Estou apaixonado por ela, Basil. Faz parte demim mesmo. Sinto-o. - Bem, assim que estiver seco, será envernizado, eemoldurado, e enviado para sua casa. Depois poderá fazer comele o que quiser. E, atravessando a sala, tocou a campainha para o chá. - Vai tomar chá, por certo, Dorian? E você também, Harry? Ouopõe objecções a prazeres tão simples? - Adoro prazeres simples - respondeu Lord Henry. - São oúltimo refúgio dos complicados. Mas não gosto de cenas, a nãoser no palco. Que indivíduos tão absurdos vocês os dois! Quemseria que definiu o homem como um animal racional! Foi adefinição mais prematura que já se fez. O homem é muitascoisas, mas não é racional. Apesar de tudo, ainda bem que onão é, embora desejasse que vocês não discutissem por causa doquadro. Seria muito melhor que você me deixasse ficar com ele,Basil. É que este rapaz pateta não o quer, ao passo que euquero-o mesmo. - Se você deixar que alguém, sem ser eu, fique com ele,Basil, nunca lhe perdoarei! - exclamou Dorian Gray. - E nãopermito que me chamem pateta. - Você sabe que o quadro lhe pertence, Dorian. Eu dei-lhoantes de ele existir. - O senhor sabe muito bem que foi bastante pateta, Mr. Gray,e que, na realidade, não se opõe a que lhe lembrem que éextremamente jovem. - Devia ter-me oposto vivamente esta manhã, Lord Henry. 37 - Ora esta manhã! O senhor começou a viver a partir dessaaltura. Bateram à porta, e o mordomo entrou com um tabuleirocompleto para o chá e pousou-o sobre uma pequena mesajaponesa. Ouviu-se um tilintar de chávenas e pires e o silvode uma canelada chaleira georgiana. Um criado trouxe duastravessas de porcelana em forma de globo. Dorian Grayaproximou-se e serviu o chá. Os dois homens dirigiram-seindolentemente para a mesa e espreitaram o que havia por baixodas tampas. - Vamos esta noite ao teatro - alvitrou Lord Henry. - Há,certamente, alguma coisa em cena em qualquer lado. Prometijantar em casa do White, mas trata-se apenas de um velhoamigo, por isso posso mandar-Lhe um telegrama a dizer queestou doente, ou que não posso ir por motivo de um compromissoposterior. Penso que seria uma desculpa bastante simpática:teria toda a surpresa da sinceridade. - É uma maçada tão grande ter que vestir roupa de cerimónia- murmurou Hallward. - E, depois de as vestirmos, ficamos tãohorríveis. - De facto - respondeu Lord Henry, com ar sonhador -, ovestuário do século XIX é detestável. É tão sombrio, tãodeprimente. O pecado é o único elemento realmente colorido queficou na vida moderna. - Você não devia falar assim na presença de Dorian, Harry. - Na presença de qual? Aquele Dorian que nos está a servir ochá, ou o do quadro? - Na presença de qualquer deles. - Gostaria de ir ao teatro com o senhor, Lord Henry - disseo rapaz. - Então venha, e você vem também, Basil, não vem? - Na verdade, não posso ir. É melhor não ir. Tenho muitotrabalho a fazer. - Bem, então vamos só nós os dois, Mr. Gray. - Gostaria imenso. 38 O pintor procurou dominar-se, e, de chávena na mão,dirigiu-se para o retrato. - E eu vou ficar com o verdadeiro Dorian - disse ele, comtristeza. - Esse é o verdadeiro Dorian? - exclamou o original doretrato, encaminhando-se para ele. - Sou realmente assim? - É. Você é exactamente assim. - Maravilhoso, Basil! - Pelo menos, parece-se com ele na aparência. Mas este nuncase modificará - disse Hallward, suspirando. - E isso já éalguma coisa. - Que importância exagerada se dá à fidelidade! - exclamouLord Henry. - Ora, mesmo no amor, é simplesmente uma questãoda fisiologia. Não tem nada a ver com a nossa própria vontade.Os jovens querem ser fiéis, e não o são, os velhos querem serinfiéis, e não o conseguem. E está tudo dito. - Não vá ao teatro esta noite, Dorian - pediu-lhe Hallward.- Fique e jante comigo. - Não posso, Basil. - Porquê? - Porque prometi a Lord Henry Wotton que iria com ele. - Ele não irá gostar mais de você só por cumprir aspromessas. Ele mesmo nunca cumpre as que faz. Peço-Lhe que nãová. Dorian Gray riu-se e fez que não com a cabeça. - Suplico-lhe. O rapaz hesitou e olhou em direcção a Lord Henry, que, dolugar onde se encontrava, junto à mesa de chá, observava-os,com um sorriso divertido. - Tenho de me ir embora, Basil - respondeu ele. - Muito bem - disse Hallward, depois foi colocar a suachávena no tabuleiro. - Já é tarde, e, como você tem que mudarde roupa, seria melhor não perder tempo. Adeus, Harry. Adeus,Dorian. Venha ver-me em breve. Venha amanhã. 39 - Com certeza. - Não se vai esquecer? - Não, claro que não - exclamou Dorian. - E.. você, Harry! - Diga, Basil. - Lembre-se do que Lhe pedi, quando estávamos esta manhã nojardim. - Já me esqueci. - Olhe que confio em si. - Quem me dera poder confiar em mim mesmo - disse LordHenry, rindo. - Vamos, Mr. Gray, o meu cabriolé está lá fora,e posso deixá-lo em casa. Adeus, Basil. Foi uma tarde muitointeressante. Logo que a porta se fechou quando eles saíram, o pintoratirou-se para um sofá, e uma expressão sofrida surgiu-lhe norosto. Capítulo III Às doze e trinta do dia seguinte, Lord Henry Wotton foide Curzon Street até Albany visitar o tio, Lord Fermor, umsolteirão jovial, ainda que de modos um tanto rudes, a quem omundo à sua volta chamava egoísta porque dele não recebianenhum benefício especial, mas que era considerado generosopela alta sociedade, pois dava de comer às pessoas que odivertiam. O pai tinha sido embaixador em Madrid quandoIsabella era jovem, e não se pensava em Prim, mas tinha-seafastado do serviço diplomático num caprichoso momento deenfado por Lhe não terem oferecido a Embaixada de Paris, umlugar a que, em sua opinião, tinha pleno direito, por razõesde nascimento, indolência, o inglês perfeito dos seusdespachos e a sua paixão desregrada pelo prazer. O filho, quefora secretário do pai, tinha-se demitido juntamente com o seusuperior, considerada na altura uma atitude tola, e,conseguindo alguns meses mais tarde o título, lançara-se noestudo sério da grande arte aristocrática de não fazerabsolutamente nada. Tinha duas grandes moradias na cidade, maspreferia viver em quartos alugados, visto que causava menosconfusão, e tomava as refeições no seu clube. Dedicava algumaatenção à gestão das suas minas de carvão nos condados doMidland, justificando-se por este vestígio de indústria combase na única vantagem de ter carvão: possibilitava a umcavalheiro a decência de queimar lenha na sua própria lareira.Na política era conservador, excepto quando os Conservadoresestavam no poder, período em que os insultava por serem umbando de radicais. Era um herói para o seu criado de quarto,que o intimidava, e um terror para a maioria dos seusparentes, a quem ele intimidava, por sua vez. Ele só poderiaser um produto de Inglaterra, e dizia sempre que o país seestava a arruinar. Os seus princípios eram antiquados, mashavia muito a dizer dos seus preconceitos. Quando Lord Henry entrou na sala, encontrou o tio enfiadonum grosseiro casaco de caça, sentado a fumar um charuto e aresmungar enquanto lia o Times. - Então, Harry - perguntou o velhote -, o que te traz por cátão cedo? Pensava que vocês, dândis, nunca se levantavam antesdas duas horas, e não eram visíveis antes das cinco. - Puro afecto familiar, posso assegurar-lhe, tio George.Preciso de uma coisa de si. - Dinheiro, suponho - disse Lord Fermor, torcendo o nariz. -Bem, senta-te e diz-me o que queres. Hoje em dia, os jovensimaginam que o dinheiro é tudo. - É verdade - murmurou Lord Henry endireitando a botoeira doseu casaco -, e quando envelhecem sabem que o é. Mas, não é dedinheiro que eu preciso. Só as pessoas que pagam as suascontas é que o precisam, tio George, e eu nunca pago asminhas. O crédito é o capital de um filho mais novo que vivesedutoramente dele. Além disso, eu faço negócios com oscomerciantes de Dartmoor, e, por consequência, eles nunca meincomodam. Do que eu preciso é de informações, não deinformações úteis, evidentemente, mas sim de informaçõesinúteis. - Pois bem, posso dar-te qualquer informação que se encontreem qualquer Livro-Azul(1) inglês, Harry, ainda que essesindivíduos escrevam, hoje em dia, uma série de disparates.Quando eu estava no serviço diplomático, as coisas estavammuito melhor, Mas ouço dizer que os admitem agora por meio deum exame. O que é que se pode esperar? Os exames, meu caro,são uma pura farsa do princípio ao fim. Se o indivíduo égentleman, tem sabedoria que chegue, *1. Livro onde se encontram registados os nomes dos membrosda alta sociedade. (N. da T.) 42se não for um gentleman, saiba o que souber é mau para ele. - Mr. Dorian Gray não faz parte dos livros azuis, tio George- disse Lord Henry, com o seu ar lânguido. - Mr. Dorian Gray? Quem é ele? - perguntou Lord Fermor,franzindo as suas fartas sobrancelhas brancas. - É isso mesmo que venho saber, tio George. Ou antes, seiquem ele é. É o neto do último Lord Kelso. A mãe era umaDevereux - Lady Margaret Devereux. Queria que falasse da mãedele. Como era ela? Com quem casou? O senhor conheceu quasetoda a gente do seu tempo, por isso pode tê-la conhecido. Demomento, estou muito interessado por Mr. Gray. Acabo de oconhecer. - Neto de Kelso! - repetiu, como um eco, o velho. - Neto deKelso!... Mas claro... conheci a mãe dele intimamente. Creioque assisti ao seu baptizado. Era uma rapariga de belezaextraordinária, Margaret Devereux, e deixou todos os homensdesvairados, quando fugiu com um jovem sem vintém,simplesmente um zé-ninguém, meu caro, um subalterno de umregimento de infantaria, ou qualquer coisa desse género. Comcerteza. Lembro-me de tudo como se tivesse acontecido ontem. Opobre diabo morreu num duelo em Spa, uns meses a seguir aocasamento. Correu uma história desagradável acerca disso.Dizia-se que Kelso contratou um miserável aventureiro, umbelga abrutalhado, para insultar o genro em público, pagou-lhepara o fazer, meu caro, pagou-lhe, e que o tal indivíduo otrespassou como a um passarinho. A coisa foi abafada, mas,senhores, depois Kelso passou a comer sozinho no clube durantealgum tempo. Trouxe a filha de volta com ele, segundo mecontaram, mas ela deixou de lhe falar. Foi um caso muitograve. A rapariga também morreu depois, morreu no espaço de umano. Mas deixou um filho, não é assim? Tinha-me esquecidodisso. Como é o rapaz?. Se for como a mãe, deve ser umindivíduo bem parecido. - E muito bem parecido -- confirmou Lord Henry. - Espero que ele tenha arrecadado uma boa herança, 43- continuou o velho. - Ele devia ter uma boa maquia à suaespera, se é que Kelso deixou as disposições adequadas. A mãetambém tinha dinheiro. Todos os bens Selby ficaram para elaatravés do avô. O avô odiava Kelso, considerando-o um cão demá raça. Mas ele também o era. Uma vez veio a Madrid quando euainda lá estava. Meu Deus, como ele me fez passar por umavergonha. A rainha costumava perguntar-me pelo aristocratainglês que discutia sempre os preços das corridas com oscocheiros. Não falavam de outra coisa. Durante um mês, não meatrevi a pôr os pés na Corte. Espero bem que ele tenha tratadoo neto melhor do que tratou os cocheiros. - Não sei - respondeu Lord Henry. - Imagino que o rapaz vivecom desafogo. Ainda não atingiu a maioridade. Sei que Selbylhe pertence. Foi ele que mo disse. E... a mãe era muitobonita? - Margaret Devereux era uma das criaturas mais lindas que jávi, Harry. Mas por que cargas de água foi ela fazer o quefez?! Nunca cheguei a perceber. Ela podia ter casado com quemquisesse. Carlington era louco por ela. Mas ela era umaromântica, como todas as mulheres daquela família. Os homensnão valiam nada, mas, senhores, as mulheres eram maravilhosas.Carlington ajoelhava-se-lhe aos pés. Ela própria mo confessou.Ela ria-se dele, e, contudo, não havia rapariga em Londres quenesse tempo não andasse atrás dele. E a propósito decasamentos disparatados, Harry, que farsa é essa, que o teupai me conta, de Dartmoor querer casar com uma americana?Então as raparigas inglesas não Lhe servem? - Sabe, tio George, agora é moda casar com americanas. - Pois eu, Harry, apoio as mulheres inglesas contra todo omundo - disse Lord Fermor, batendo com o punho na mesa. - Todos apostam nas americanas. - Mas não vai durar muito, segundo me disseram - resmungou otio. - Um noivado prolongado fatiga-as, mas elas são muito boasna corrida de obstáculos. Elas apanham as coisas a voar. Nãome parece que Dartmoor tenha sorte. 44 - Quem é a família dela? - resmungou o velhote. - Ela temalguma? Lord Henry abanou a cabeça negativamente. - As raparigas americanas são tão hábeis a esconder os paiscomo o são as mulheres inglesas a encobrir o seu passado -disse ele, levantando-se para sair. - Eles devem dedicar-se ao negócio de carne de porcoembalada, não achas? - Espero bem que sim, tio George, para bem de Dartmoor.Disseram-me que o negócio de carne de porco embalada é aprofissão mais lucrativa da América, a seguir à política. - E ela é bonita? - Comporta-se como se o fosse. De resto, é como faz amaioria das mulheres americanas. Esse é o segredo do seuencanto. - Porque é que estas mulheres americanas não ficam por lá noseu país? Andam sempre a dizer-nos que é o Paraíso dasmulheres. - E é. Esse é o motivo porque, tal como Eva, estão demasiadoansiosas por sair de lá - disse Lord Henry. - Adeus, tioGeorge. Vou chegar atrasado ao almoço, se ficar mais tempo.Obrigado por me ter prestado as informações que eu queria.Gosto sempre de saber tudo dos meus novos amigos, e nadaacerca dos velhos. - Onde vais almoçar, Harry? - Em casa da tia Agatha. Fiz-me convidado, a mim e a Mr.Gray. Ele é o seu protégé mais recente. - Hum! Harry, diz à tua tia Agatha que não me mace mais comos seus pedidos de beneficência. Estou farto deles. Ora a boada mulher pensa que não tenho mais nada que fazer, senãopreencher cheques para as suas loucas excentricidades. - Está bem, tio George, eu digo-lhe, mas não fará nenhumefeito. As pessoas filantrópicas perdem todo o sentido dehumanidade. É a sua característica especial. O velhote emitiu um grunhido de aprovação, e tocou acampainha para chamar o criado. 45Lord Henry foi ter a Burlington Street passando pela baixaarcada, e dirigiu os seus passos em direcção a BerkeleySquare. Então, era essa a história da ascendência de Dorian Gray.Apesar de Lhe ter sido contada de maneira tão crua,causara-lhe uma certa perturbação, por sugerir um estranhoromance de amor quase moderno. Uma mulher bela que arriscatudo por uma louca paixão. Umas semanas delirantes defelicidade bruscamente interrompida por um crime hediondo etraiçoeiro. Meses de tormento silenciado, e, depois, umacriança nascida no meio do sofrimento. A mãe arrebatada pelamorte, o rapaz à mercê da solidão e da tirania de um homemvelho e insensível. Era, de facto, um passado interessante.Definia o rapaz, tornando-o, por assim dizer, mais perfeito.Por detrás da coisa mais delicada, havia sempre alguma coisade trágico. Os mundos tinham de sofrer as dores de parto, paraque pudesse nascer a flor mais insignificante... E queencantador ele tinha sido ao jantar da noite anterior, quando,de olhar assustado e lábios entreabertos de prazer e medo, setinha sentado à sua frente no clube, as sombras avermelhadasdas velas dando um rosa mais rico ao despertar do espanto noseu rosto. Conversar com ele era como tocar um violinoprimoroso. Ele respondia a cada toque e vibração do arco... Oexercício da influência era, simultaneamente, terrível efascinante. Não havia outra actividade que se lheassemelhasse. Projectar a nossa alma em alguém de figuragraciosa e deixá-la demorar-se aí por um momento, ouvir osnossos pontos de vista intelectuais soarem-nos como um eco,com toda a música dada pela paixão e a juventude, transmitir onosso temperamento a outra pessoa como se fosse um fluidosubtil ou um estranho perfume - tudo isso transmitiaverdadeiro júbilo, talvez a alegria mais gratificante paranós, quando nos encontramos numa época tão limitada e vulgar,uma época grosseiramente carnal nos seus prazeres egrosseiramente banal nos seus objectivos... Era também umrapaz maravilhoso, este que, por um acaso tão extraordinário,ele encontrara no atelier do Basil, ou, de qualquer modo, 46poderia vir a transformar-se num tipo maravilhoso. Possuía agraça e a pureza impoluta da infância, e a beleza igual à queos antigos mármores gregos nos guardaram. Não havia nada quenão se pudesse fazer dele. Podia ser transformado em Titã ouem brinquedo. Que pena que essa beleza estivesse destinada afenecer!... E Basil? Que interessante era, sob um ponto devista psicológico! A nova forma de arte, o modo renovado deolhar para a vida, estranhamente sugeridos pela simplespresença física de alguém que nem disso tinha consciência, oespírito silencioso, que habitava o bosque sombrio e caminhavainvisível em pleno campo, revelava-se, de súbito, como um.aDríade, e sem receio, porque na alma de quem o procurava tinhadespertado essa visão maravilhosa à qual unicamente sãoreveladas as coisas deslumbrantes, as simples formas e modelosdas coisas a tornarem-se, por assim dizer, refinadas eganhando uma espécie de valor simbólico, como se elas mesmasfossem modelos de outra forma mais perfeita, cuja sombra elastornavam reais. Que estranho era tudo isso! Ele lembrava-se dealgo semelhante na história. Não foi Platão, esse artista dopensamento, quem primeiro o analisara? Não foi Buonarotti queo esculpira nos mármores coloridos de uma sequência de soneto?Mas, no nosso século, era estranho... Sim, ele tentaria serpara Dorian Gray, sem que disso se apercebesse, o que o rapazera para o pintor que tinha dado forma ao retratoextraordinário. Procuraria dominá-lo. Na verdade, já em parteo fizera. Tornaria seu esse espírito fantástico. Havia umcerto fascínio neste filho do Amor e da Morte. Deteve-se, de repente, e olhou para as casas. Viu que tinhadeixado para trás, a alguma distância, a casa de sua tia, e,sorrindo para si mesmo, retrocedeu. Quando entrou no vestíbuloum pouco sombrio, o mordomo anunciou-lhe que já todos tinhamentrado na sala para almoçar. Entregou a um dos lacaios ochapéu e a bengala, e passou à sala de jantar. - Atrasado como sempre, Harry - exclamou a tia, abanando acabeça num gesto de reprovação. 47 Ele inventou uma desculpa fácil e, depois de ter ocupado olugar vago ao lado dela, olhou à sua volta para ver quemestava lá. Dorian acenou-lhe timidamente lá do extremo damesa, ao mesmo tempo que lhe subia ao rosto um rubor deprazer. À sua frente encontrava-se a duquesa de Harley, umasenhora de admirável índole generosa e de bom temperamento,muito querida de todos os que a conheciam, e possuindo aquelasamplas proporções arquitecturais que, em mulheres que não sãoduquesas, os historiadores contemporâneos designam porcorpulência. Ao lado dela, à sua direita, estava Sir ThomasBurdon, um membro radical do Parlamento, que, na vida pública,seguia o seu líder, e, na vida privada, seguia os melhorescozinheiros, jantando com os Conservadores, e pensando com osLiberais, de acordo com uma regra de prudência muitoconhecida. O lugar à esquerda da duquesa era ocupado por Mr.Erskine de Treadley, um cavalheiro idoso, de cultura e encantoconsideráveis, que, porém, adquirira desagradáveis hábitos desilêncio, pois que, como ele explicara uma vez a Lady Agatha,já dissera tudo que tinha a dizer antes dos seus trinta anos.Ao lado dele estava Mrs. Vandeleur, uma das mais velhas amigasde sua tia, uma verdadeira santa entre as mulheres, mas tãohorrivelmente desmazelada no vestir, que lhe fazia lembrar umdaqueles livros de cânticos com a encadernação em mau estado.Felizmente para ele, do outro lado dela, encontrava-se LordFaudel, um inteligentíssimo medíocre de meia idade, tão calvocomo um relatório ministerial da Câmara dos Comuns, e com quemela conversava, daquela maneira intensamente fervorosa que é oúnico erro imperdoável - como ele próprio uma vez notara - emque caem todas as pessoas verdadeiramente boazinhas, e a quenenhuma delas consegue escapar. - Estamos a falar do pobre Dartmoor, Lord Henry - observou aduquesa, do outro lado da mesa, com um simpático aceno decabeça para ele. - Acha que ele irá mesmo casar com essa jovemtão fascinante? 48 - Eu creio que ela decidiu pedi-lo em casamento, duquesa. - Que horror! - exclamou Lady Agatha. - Realmente deviahaver a intervenção de alguém. - Eu soube de fonte seguríssima que o pai dela tem umarmazém de produtos secos americanos - disse Sir ThomasBurdon, com um ar de superioridade. - O meu tio já sugeriu que se tratava de carne de porcoembalada, Sir Thomas. - Produtos secos! O que são produtos secos americanos? -perguntou a duquesa, levantando as suas mãos enormes em sinalde espanto, e acentuando o verbo. - Romances americanos - respondeu Lord Henry, servindo-se deum pouco de codorniz. A duquesa ficou confusa. - Não lhe dê importância, minha querida - segredou LadyAgatha. - Ele nunca fala a sério. - Quando se descobriu a América - disse o membro radical,começando a fornecer alguns factos fastidiosos. Como todas aspessoas que tentam esgotar um assunto, ele esgotava os seusouvintes. A duquesa suspirou e exerceu o seu privilégio de poderinterromper. - Oxalá nunca tivesse sido descoberta! - exclamou. - Naverdade, as nossas meninas não têm, hoje, sorte nenhuma. É umaenorme injustiça. - Talvez que, no fim de contas, a América nunca tenha sidodescoberta - acrescentou Mr. Erskine. - Eu diria mesmo quetinha sido detectada. - Oh! Mas eu vi alguns exemplares dos seus habitantes -respondeu a duquesa, de um modo vago. - Devo confessar que amaioria é extremamente bonita. E também vestem bem. Mandam virtodos os seus vestidos de Paris. Quem me dera poder dar-me aoluxo de fazer o mesmo. - Dizem que, quando morrem, os americanos bons vão paraParis - casquinou Sir Thomas, que tinha um vasto guarda-roupade peças de refugo da casa Humour. 49 - Ah, vão? E para onde vão os americanos maus quando morrem?- quis saber a duquesa. - Vão para a América - murmurou Lord Henry. Sir Thomas carregou o sobrolho. - Parece-me que o seu sobrinho tem preconceitosrelativamente a esse grande país - disse ele a Lady Agatha. -Viajei por toda a América, em automóveis providenciados pelosdirectores que, em assuntos desta natureza, são de uma extremaurbanidade. Posso garantir que visitá-la é um acto educativo. - Mas precisamos mesmo de visitar Chicago para noseducarmos? - perguntou Mr. Erskine, melancolicamente. - Não mesinto capaz de uma viagem dessas. Sir Thomas esboçou um gesto com a mão. - Mr. Erskine de Treadley tem o mundo na sua estante. Nós,os homens práticos, gostamos de ver as coisas, e não de leracerca delas. Os Americanos são um povo extremamenteinteressante. São extraordinariamente sensatos. Creio que é asua característica específica. Repito, Mr. Erskine, um povoextraordinariamente sensato. Tenho a certeza de que não existefalta de sensatez entre os Americanos. - Que horror! - exclamou Lord Henry. - Consigo suportar aforça bruta, mas a sensatez bruta é absolutamente intolerável.Há uma certa deslealdade na sua utilização. Aplica o golpeabaixo do intelecto. - Não o entendo - retorquiu Sir Thomas, um pouco corado. - Mas eu entendo, Lord Henry - murmurou Mr. Erskine, com umsorriso. - Os paradoxos são muito correctos à sua maneira... -replicou o baronete. - Aquilo era um paradoxo? - perguntou Mr. Erskine. - Não mepareceu. Talvez fosse. Bem, a maneira dos paradoxos é amaneira de chegar à verdade. Para testar a Realidade é precisovê-la a fazer equilíbrio. Quando as verdades se tornamacrobatas é que podemos avaliá-las. 50 51 - Valha-me Deus! - disse Lady Agatha -, como vocêsargumentam! Estou convencida de que nunca irei perceber de queé que vocês estão a falar. Oh, Harry, estou muito aborrecidacontigo. Porque tentaste convencer o nosso simpático Mr.Dorian Gray a desistir do East End? Garanto-te que ele seriaindispensável. Eles adorariam ouvi-lo tocar. - Eu quero que ele toque para mim - exclamou Lord Henry, asorrir; percorreu a mesa com o olhar, e encontrou a respostano entusiasmo de outros olhos. - Mas, em Whitechapel são tão infelizes - continuou LadyAgatha. - Eu sou capaz de ter simpatia por tudo, excepto pelosofrimento - disse Lord Henry, encolhendo os ombros. - Nãoconsigo condoer-me. É demasiado feio, demasiado horrível,demasiado confrangedor. Há um sentimento terrivelmente mórbidona moderna simpatia pela dor. Nós devíamos simpatizar com acor, a beleza, a alegria da vida. Quanto menos se falar daschagas da vida, melhor. - E, contudo, o East End é um problema muito importante -fez notar Sir Thomas, com um grave aceno de cabeça. - Absolutamente - respondeu o jovem lorde. - É também oproblema da escravatura, que tentamos resolver divertindo osescravos. O político olhou para ele intensamente. - Que transformações propõe então? - perguntou. Lord Henry riu-se. - Não desejo mudar nada em Inglaterra, excepto o tempo -respondeu ele. - Satisfaz-me bastante a reflexão filosófica.Mas, como o século xIx abriu falência devido a um excesso dedispêndio com a simpatia, eu sugeria que recorrêssemos àCiência para nos organizar. A vantagem das emoções é a de nosextraviar, e a vantagem da Ciência é a de não ter emoções. - Mas nós temos responsabilidades tão graves - arriscou Mrs.Vandeleur, timidamente. - Terrivelmente graves - repetiu, como um eco, Lady Agatha. Lord Henry dirigiu um olhar para Mr. Erskine. - A Humanidade leva-se a si própria demasiado a sério. Esseé o pecado original do mundo. Se o homem da caverna tivesseaprendido a rir, a História teria sido diferente. - O senhor, realmente, deu-me ânimo - interveio a duquesa,com gorjeios na voz. - Tive sempre uma certa sensação de culpaquando vinha ver a sua querida tia, pois não me interessaabsolutamente nada o East End. Futuramente, poderei olhá-la defrente sem corar. - Um certo rubor fica muito bem, duquesa - observou LordHenry. - Só quando somos jovens - retorquiu ela. - Quando umasenhora de idade como eu fica corada é mau sinal. Ai, LordHenry, se me pudesse dizer como ficar jovem outra vez. Ele ficou a pensar por uns instantes. - Consegue lembrar-se de algum erro grave que tenha cometidonos seus tempos de juventude, duquesa? - perguntou-Lhe ele,olhando-a do outro lado da mesa. - Muitos, receio bem - exclamou ela. - Então cometa-os outra vez - disse ele, gravemente. - Parase voltar à juventude, basta que se repitam as mesmasloucuras. - Que teoria deliciosa! - exclamou ela. - Tenho de pô-la emprática. - Que perigosa teoria! - foram as palavras saídas dos lábiosestreitamente apertados de Sir Thomas. Lady Agatha abanou a cabeça, mas não pôde deixar de sesentir divertida. Mr. Erskine escutava atentamente. - Sim - continuou Lord Henry -, esse é um dos grandessegredos da vida. Actualmente, grande parte das pessoas morrede uma espécie de senso comum arrepiante, e, quando édemasiado tarde, chega à conclusão de que as únicas coisas deque nunca nos arrependemos são os nossos erros. Houve uma gargalhada geral à volta da mesa. Ele brincava com a ideia, e tornava-se intencional,atirava-a ao ar e transformava-a, deixava-a escapar-se, 52e tornava a apanhá-la, dava-lhe iridescências de fantasia easas de paradoxo. O louvor da loucura, à medida que elecontinuava, ascendia à altura de uma filosofia, e a própriaFilosofia rejuvenescia: apreendendo a música louca do Prazer eusando, como se podia imaginar, o seu manto manchado de vinhoe a grinalda de hera, dançava como uma bacante pelas colinasda vida e zombava do lento Sileno, por se encontrar sóbrio. Osfactos fugiam à frente dela como criaturas silvestresassustadas. Os seus alvos pés calcavam a enorme prensa, juntoda qual se encontra sentado o sábio Omar, até que o sumo deuva efervescente subia, rodeando os seus membros nus em roxasondas borbulhantes, ou transbordava em espuma vermelha oslados inclinados e gotejantes da dorna. Era um improvisoextraordinário. Ele sentia que os olhos de Dorian Gray ofitavam, e a percepção de que entre os que o ouviam haviaalguém cujo temperamento desejava fascinar parecia transmitírsubtileza ao seu espírito e emprestar cor à sua imaginação.Ele foi brilhante, fantástico, irresponsável. O seu fascínioarrebatava os que o escutavam, e estes seguiam-noincondicionalmente, rindo às gargalhadas. Dorian Gray nuncadesviou o olhar, antes parecia enfeitiçado, com sorrisosbrincando nos seus lábios e um espanto grave nos olhosescurecidos. Por fim, usando libré, à moda da época, a Realeza entrou nasala na pessoa de um criado a anunciar à duquesa que acarruagem a esperava. Ela torceu as mãos, fingindo-sedesesperada. - Que maçada! - exclamou. - Tenho de partir. Tenho quepassar pelo clube para levar o meu marido a uma reuniãoabsurda nas Williss Rooms, a que ele vai presidir. Se meatrasar, de certeza que vai ficar furioso e eu não poderiaenfrentar uma cena com esta touca. É demasiado frágil. Umapalavra brusca acabaria com ela. Tenho mesmo de me retirar,querida Agatha. Adeus, Lord Henry, o senhor é encantador, ehorrivelmente desmoralizante. Francamente, não sei que dizersobre as suas opiniões. Tem que vir jantar connosco uma noitedestas. Pode ser terça-feira? Não tem compromissos paraterça-feira? 53 - Por si, duquesa, eu abandonaria qualquer pessoa -respondeu Lord Henry, com uma vénia. - Ah! É muito simpático, e também muito errado, da sua parte- exclamou ela -, veja lá não falte. E saiu impetuosamente da sala, seguida de Lady Agatha e deoutras senhoras. Quando Lord Henry se voltara a sentar, Mr. Erskine deixou oseu lugar do outro lado da mesa e, sentando-se numa cadeiraperto dele, colocou-lhe a mão no braço. - O senhor fala como nos livros - disse ele. - Porque nãoescreve um também? - Gosto demasiado de os ler para me preocupar emescrevê-los, Mr. Erskine. É certo que gostaria de escrever umromance, um romance que fosse tão belo como um tapete persa, eigualmente irreal. Porém, não há em Inglaterra um públicoliterato, apenas se lêem jornais, devocionários eenciclopédias. De todos os povos do mundo, os Ingleses são osque possuem em menor grau o sentido da beleza da literatura. - Temo que tenha razão - respondeu Mr. Erskine. - Até eucheguei a ter ambições literárias, mas há muito tempo quedesisti. E agora, meu caro e jovem amigo - se é que me permitetratá-lo assim -, posso perguntar-lhe se falava a sério,quando nos disse tudo aquilo ao almoço? - Esqueci tudo o que disse - respondeu Lord Henry, sorrindo.- Foi assim tão desagradável? - Mesmo muito. Na verdade, considero o senhor extremamenteperigoso. E se alguma coisa acontecer à nossa querida duquesa,acusá-lo-emos todos de ser o principal responsável. Mas o queeu gostaria era de conversar consigo acerca da vida. A geraçãoa que pertenci era enfadonha. Um dia destes, quando estiverfarto de Londres, venha até Treadley, e, então, explicar-me-áa sua filosofia do prazer, enquanto provamos um Borgonhaexcelente que tenho a sorte de possuir. 54 - Será um prazer. Uma visita a Treadley seria um grandeprivilégio, visto ir encontrar um óptimo anfitrião e umaóptima biblioteca. - E que ficaria completa com a sua presença - retorquiu oancião, com uma vénia de cortesia. - E agora tenho dedespedir-me da senhora sua tia. Tenho encontro marcado noAteneu. É a hora de adormecermos lá. - Todos vós, Mr. Erskine? - Somos quarenta, em quarenta poltronas. Estamo-nos atreinar para uma Academia Inglesa de Letras. Lord Henry desatou a rir e levantou-se. - Eu vou até ao Parque - exclamou. Ao transpor a porta, Dorian Gray tocou-lhe no braço. - Permita-me que vá consigo - murmurou. - Mas eu supunha que o senhor tinha prometido a BasilHallward ir visitá-lo - respondeu-lhe Lord Henry. - Prefiro ir consigo. Sinto que tenho de ir consigo.Permita-mo, por favor. E promete conversar comigo todo otempo? Não há ninguém que fale de maneira tão assombrosa comoo senhor. - Ah, por hoje já falei o suficiente - comentou Lord Henry,a sorrir. - Agora tudo o que desejo é contemplar a vida. Podevir contemplá-la comigo, se quiser. Capítulo IV Uma tarde, passado um mês, estava Dorian Gray recostadonuma sumptuosa poltrona, na pequena biblioteca da casa de LordHenry, em Mayfair. Era, no seu estilo, uma sala encantadora,com altos lambris de carvalho cor de azeitona, friso creme,tecto de estuque lavrado e alcatifa de feltro cor de tijolojuncada de tapetes persas de seda franjados. Sobre uma pequenamesa de pau-cetim, estava uma estatueta de Clodion e umexemplar de Les Cent Nouvelles, encadernada para Margarida deValois por Clovis Eve e ornamentada com as margaridas douradasque a rainha adoptara como sua divisa. Umas jarras azuis deporcelana e umas túlipas ornamentavam o rebordo da chaminé, e,através das pequenas vidraças da janela, coava-se a luz cor dedamasco de um dia de Verão londrino. Lord Henry ainda não tinha chegado. Normalmente, atrasava-sesempre, tendo por princípio que a pontualidade é o ladrão dotempo. Por isso o rapaz estava um pouco aborrecido, enquantoos seus dedos distraídos folheavam uma edição primorosamenteilustrada de Manon Lescaut, que encontrara numa das estantes.A monotonia do tiquetaque metódico do relógio Luís XIVincomodava-o. Por uma ou duas vezes pensou em ir-se embora. Finalmente ouviu passos, e a porta abriu-se. - Tão atrasado, Harry! - murmurou. - Não foi o Harry quem chegou, Mr. Gray - respondeu uma vozaguda. Ele olhou rapidamente de relance, e levantou-se. - Peço perdão. Pensava... - Pensava que era o meu marido. É apenas a sua esposa. 56Permita-me que seja eu mesma a apresentar-me. Já o conheçomuito bem pelas fotografias. Creio que o meu marido tem umasdezassete. - Dezassete, não, Lady Henry! - Então, serão dezoito. E vi o senhor na companhia dele, umanoite destas na Ópera. Ela ria nervosamente enquanto falava, e observava-o com unsolhos vagos cor de miosótis. Era uma mulher estranha, cujosvestidos pareciam ter sido inventados num momento de fúria, eusados em dia de vendaval. Habitualmente estava apaixonada poralguém, mas, como as suas paixões nunca eram retribuídas,mantinha todas as suas ilusões. Esforçava-se por ter umaspecto original, e só conseguia ter um ar desalinhado.Chamava-se Victoria, e tinha uma rematada mania de frequentara igreja. - Foi no Lohengrin, não foi, Lady Henry? - Foi, foi no nosso querido Lohengrin. Não há ninguém quegoste mais da música de Wagner do que eu. É tão ruidosa quepodemos conversar todo o tempo sem que ninguém nos oiça. É umagrande vantagem. Não acha, Mr. Gray? Dos seus lábios finos irrompia o mesmo riso nervoso emstaccato, e os seus dedos começaram a brincar com uma compridafaca de tartaruga. Dorian sorriu e abanou a cabeça. - Não me parece, Lady Henry. Nunca converso durante amúsica, pelo menos quando é boa música. Se a música for má,então é nosso dever abafá-la com a nossa conversa. - Ah, essa é uma das opiniões do Harry, não é assim, Mr.Gray? Costumo ouvir as opiniões dele pela boca dos amigos. Sóassim é que fico a conhecê-las. Mas não deve pensar que nãogosto de boa música. Adoro-a, mas tenho medo dela. Torna-meexcessivamente romântica. Tenho tido uma enorme adoração porpianistas - às vezes, por dois ao mesmo tempo, disse-me oHarry. Não sei o que têm de especial. Talvez por seremestrangeiros. Todos eles o são, não é verdade? Mesmo os quenasceram em Inglaterra ficam estrangeirados passado algumtempo, não ficam? 57Isso só revela talento da parte deles, e é também umahomenagem à Arte. Torna-a muito cosmopolita, não acha? Ah,nunca esteve em nenhuma das minhas recepções, pois não, Mr.Gray? Tem de aparecer. Não posso gastar dinheiro em orquídeas,mas não olho a despesas com estrangeiros. Dão um ar tãopitoresco aos nossos salões. Ah! O Harry já chegou! Harry, vimà sua procura para lhe fazer uma pergunta sobre qualquer coisaque já esqueci, e encontrei Mr. Gray. Tivemos uma conversamuito agradável sobre música. Temos exactamente as mesmasideias. Não, creio que as nossas ideias são completamentediferentes. Mas foi agradabilíssimo. Ainda bem que oencontrei. - Folgo muito em saber, meu amor, mesmo muito - comentouLord Henry, erguendo as sobrancelhas escuras em forma decrescente e olhando para os dois com um sorriso divertido. -Peço desculpa por chegar atrasado, Dorian. Fui ver seconseguia um pedaço de brocado antigo em Wardour Street, etive que regatear horas e horas. Actualmente, as pessoas sabemo preço de tudo e não sabem o valor de coisa nenhuma. - Tenho de me ir embora - exclamou Lady Henry, interrompendoum silêncio incómodo com o seu súbito riso apalermado. -Prometi passear de carro com a duquesa. Adeus, Mr. Gray.Adeus, Harry. Suponho que jantas fora. Eu também. Talvez teencontre em casa de Lady Thornbury. - É provável, querida - disse Lord Henry, fechando a portadepois de ela, qual ave do paraíso que tivesse passado a noiteà chuva, ter saído rapidamente da sala, deixando atrás de sium leve aroma de frangipana. Depois ele acendeu um cigarro erefastelou-se no sofá. - Nunca case com uma mulher de cabelo cor de palha, Dorian -disse, após umas fumaças. - Porquê, Harry? - Porque são tão sentimentais. - Mas eu gosto de pessoas sentimentais. 58 - É melhor nunca se casar, Dorian. Os homens casam-se porcansaço, as mulheres, por curiosidade, e uns e outros ficamdecepcionados. - Não é provável que eu me case, Henry. Estou demasiadoapaixonado. Esse é um dos seus aforismos. Estou a pô-lo emprática, como faço com tudo o que você diz. - Por quem está apaixonado? - perguntou Lord Henry, após umapausa. - Por uma actriz - respondeu Dorian Gray, corando. - Para estreia, não é nada original - disse Lord Henry,encolhendo os ombros. - Se a conhecesse não diria isso, Harry. - Quem é ela? - Chama-se Sibyl Vane. - Nunca ouvi falar dela. - Nem ninguém. Mas um dia as pessoas hão-de ouvir falardela. Ela é um génio. - Meu caro, não há mulher alguma que seja um génio. Asmulheres pertencem ao sexo de ornamento. Nunca têm nada paradizer, mas dizem-no de uma maneira encantadora. As mulheresrepresentam o triunfo da matéria sobre o espírito, ao passoque os homens representam o triunfo do espírito sobre a moral. - Harry, como é possível que fale assim? - Meu caro Dorian, é rigorosamente verdade. Presentemente,dedico-me a analisar as mulheres, por isso é natural quesaiba. O assunto não é tão confuso como eu pensei que fosse.Acabo de descobrir que, basicamente, há apenas duas espéciesde mulheres: as simples e as pintadas. As mulheres simples sãomuito úteis. Se quisermos obter reputação de respeitabilidade,levamo-las simplesmente a cear. As outras mulheres sãoencantadoras. Cometem, porém, um erro. Pintam-se para tentarparecer jovens. As nossas avós pintavam-se a fim de tentarconversar com brilhantismo. Rouge e esprit costumavam andarjuntos. Tudo isso acabou já. Assim que consegue parecer dezanos mais nova do que a própria filha, uma mulher ficatotalmente satisfeita. Relativamente a conversação, 59há unicamente cinco mulheres em Londres com quem vale a penaconversar, e duas delas não podem ser admitidas na sociedadede boas maneiras. Mas, fale-me do seu génio. Há quanto tempo aconhece? - Ah! As suas teorias assustam-me, Harry. - Não dê importância. Há quanto tempo a conhece? - Há aproximadamente três semanas. - E onde é que a conheceu? - Eu conto, Harry. Mas você tem que ser um pouco indulgente.No fim de contas, isto nunca teria acontecido se eu não otivesse encontrado. Foi você que fez nascer dentro de mim umdesejo desenfreado de conhecer todas as coisas da vida. Depoisde o ter encontrado, e durante vários dias, parecia que haviaalgo a latejar nas minhas veias. Quando deambulava peloParque, ou caminhava até Piccadilly, costumava olhar paratodas as pessoas que passavam e apoderava-se de mim uma loucacuriosidade de saber como eram as suas vidas. Umasfascinavam-me. Outras enchiam-me de terror. Pairava no ar umveneno subtil. Eu sentia paixão pelas sensações... Ora umanoite, por volta das sete horas, resolvi sair em busca de umaaventura. Sentia que esta nossa Londres cinzenta e monstruosa,com suas miríades de pessoas, os seus sórdidos pecadores, e osseus gloriosos pecados - como você uma vez fraseou -, deviater alguma coisa reservada para mim. Imaginei milhares decoisas. A simples ideia de perigo provocava em mim umasensação deliciosa. Lembrei-me do que você me havia ditonaquela noite maravilhosa em que jantámos juntos pela primeiravez: procurar a verdade é o verdadeiro segredo da vida. Nãosei do que estava à espera, mas encaminhei-me ao acaso para azona oriental, perdendo-me pouco depois num labirinto de ruasimundas e praças escuras e sem relva. Deviam ser umas oitohoras e trinta quando passei por um teatrinho ridículo,iluminado pelo clarão de enormes bicos de gás e exibindo unscartazes de mau gosto. Um judeu repelente, com o colete maisespantoso que já vi em toda a minha vida, estava à entrada afumar um cigarro abominável. 61O cabelo tínha uns pequenos caracóis oleosos, e mesmo aocentro da camisa imunda luzia um enorme diamante. "Quer umcamarote, senhor?", perguntou ele quando me viu, tirando ochapéu com um gesto de servilismo exagerado. Mas, Harry, havianele qualquer coisa que me divertia. Era tal qual um monstro.Vai rir-se de mim, eu sei, mas entrei mesmo e paguei um guinéupor um camarote de proscénio. Ainda hoje não consigo descobriro motivo por que o fiz. Porém, se o não tivesse feito, meucaro Harry, se não tivesse... teria perdido a maior aventuraamorosa da minha vida. Bem vejo que está a rir-se. Não sejahorrível! - Não estou a rir-me, Dorian, isto é, não estou a rir-me devocê. Você não deveria ter dito a maior aventura amorosa dasua vida, mas sim a primeira aventura amorosa da sua vida.Você será sempre amado e estará sempre apaixonado pelo amor.Uma grande passion é privilégio dos que não têm nada quefazer. É o único hábito das classes ociosas de um país. Nãotenha medo. Há coisas extraordinárias à sua espera. Isto éapenas o começo. - Julga-me assim tão frívolo? - exclamou Dorian Gray muitoirritado. - Não, julgo-o muito profundo. - O que quer dizer com isso? - Meu caro rapaz, pessoas frívolas são aquelas que amam sóuma vez na vida. Àquilo a que chamam lealdade e fidelidade,chamo eu letargia do hábito ou falta de imaginação (1). Afidelidade está para a vida emocional como a coerência estápara a vida do intelecto, quer dizer, uma simples confissão defracassos. A fidelidade! Preciso de a analisar um dia destes.Existe nela a paixão pela posse. Há muitas coisas queatiraríamos fora se não receássemos que os outros as pudessemapanhar. Mas não quero interrompê-lo. Continue a sua história. *1. Palavras e expressões em francês, latim, italiano...encontram-se no texto original inglês. (N. da T.) 61 - Bem, fiquei sentado num horrível camarotezinho privado etinha mesmo à minha frente um vulgar pano de boca. Espreiteipela cortina e inspeccionei a sala. Era uma coisa de maugosto, com cupidos e cornucópias, mais parecendo um bolo denoiva de terceira categoria. A galeria e a plateia estavambastante completas, mas as duas filas de poltronas encardidasestavam totalmente vazias e nem sei se haveria uma pessoanaquilo que suponho chamar-se primeiro balcão. Andavam umasmulheres a vender laranjas e gasosas, e havia um elevadoconsumo de amendoins. - Deve ter sido exactamente como na época florescente dodrama britânico. - Precisamente, mas também muito deprimente. Começava ainterrogar-me o que havia eu de fazer quando vi o programa.Que peça acha que era, Harry? - Talvez O Idiota ou Pateta mas Inocente. Os nossos pais éque costumavam apreciar esse género de peça, creio eu. Quantomais anos vivo, Dorian, mais vivamente sinto que o que era bompara os nossos pais não é bom para nós. Em arte, bem como empolítica, les grands pères ont toujors tort. - A peça era bastante boa para nós, Harry. Era Romeu eJulieta. Devo confessar que me mortificou bastante a ideia dever Shakespeare representado numa baiuca. Mesmo assim, sentia,de certo modo, algum interesse. Seja como for, resolvi esperarpelo primeiro acto. A orquestra era péssima, regida por umjovem hebreu que se encontrava sentado a um piano tãodesafinado que estive para fugir dali, mas finalmente o panode boca subiu e a peça começou. Romeu era um cavalheiro idosoe corpulento, de sobrancelhas escurecidas com rolha queimada,uma voz enrouquecida e trágica, e roliço como um barril decerveja. A figura de Mercúcio não era melhor. Era representadopor um comediante de baixo coturno, que intercalava piadas desua autoria e que tinha o melhor relacionamento com a plateia.Eram ambos tão grotescos como o cenário, que parecia ter saídode uma barraca de feira. Ah! Mas Julieta! 62Imagine, Harry, uma menina que talvez não tivesse aindadezassete anos, o rosto lindo como uma flor, uma pequena cabeça gregade longas tranças castanhas, os olhos, fontes violáceas depaixão, e os lábios, duas pétalas de rosa. Era o ser maisformoso que jamais havia visto na minha vida. Você disse-meuma vez que era insensível ao patético, mas que a beleza podiaprovocar-lhe as lágrimas. Pois eu, Harry, mal conseguia veresta menina através da névoa de lágrimas que me arrasaram osolhos. E tinha uma voz como nunca ouvi. Era muito grave, a princípio, de sons profundos emelodiosos, que pareciam cair um a um no nosso ouvido. Depoistornava-se um pouco mais alta e soava como uma flauta ou umlongínquo oboé. Na cena do jardim, tinha o êxtase trémulo queouvimos quando a madrugada vai chegar e os rouxinóis cantam.Havia, depois, momentos em que possuía a paixão desvairada dasvioletas. Você sabe bem como uma voz nos pode perturbar. A suavoz e a voz de Sibyl Vane, nunca as esquecerei. Quando fechoos olhos, oiço-as e cada uma delas diz-me algo diferente. Nãosei qual das duas hei-de seguir. Por que não haveria deamá-la? É que eu amo-a, Harry. Ela é tudo para mim na vida.Vou vê-la representar todas as noites. Uma noite ela éRosalinda e na noite seguinte é Imogénia. Assisti à sua mortenum sombrio túmulo italiano, sugando o veneno dos lábios doamante. Vi-a vagueando pela floresta de Arden, disfarçada delindo rapazinho de calças justas, gibão e uma boina gracica.Ela enlouqueceu e chegou à presença de um rei criminoso, edeu-lhe arruda para se enfeitar, e ervas amargas para provar.Ela foi inocente, e as negras mãos do ciúme estrangularam-lhea garganta frágil como um junco. Vi-a em todas as épocas evestida à moda de cada época. As mulheres vulgares nuncaapelam para a nossa imaginação. Ficam limitadas ao seu tempo.Nenhum encanto as transfigura. Conhecemos-Lhes as mentalidades com a mesma facilidade comque conhecemos as suas toucas. Acabamos sempre pordescobrir-lhas. Não possuem mistério algum. De manhã montam acavalo no Parque, e à tarde tagarelam à hora do chá. 63Têm sorrisos estereotipados e maneiras ditadas pela moda. Sãototalmente previsíveis. Mas uma actriz,como é diferente! Harry! Por que não me disse que a únicacoisa que merece ser amada é uma actriz? - Porque amei tantas, Dorian. - Ah, estou a ver, pessoas horrendas que pintam o cabelo e acara. - Não deprecie o cabelo pintado e as caras pintadas.Têm por vezes um encanto extraordinário - disse Lord Henry. - Agora estou arrependido por Lhe ter contado tudo acerca deSibyl Vane. - Você não podia deixar de me contar, Dorian. Durante toda asua vida contar-me-á tudo o que fizer. - Sim, Harry, creio que tem razão. Não consigo deixar de lhecontar tudo. Você exerce em mim uma estranha influência. Sepor acaso eu cometesse um crime, viria logo confessar-lho.Você compreender-me-ia. - As pessoas como você - obstinados raios de sol desta vida- não cometem crimes, Dorian. Mas, apesar de tudo,agradeço-lhe o elogio. E agora conte-me. seja amável epasse-me os fósforos, obrigado. conte-me quais são exactamenteas suas relações com Sibyl Vane? Dorian Gray pôs-se de pé num salto, as faces afogueadas e osolhos chamejantes. - Harry! Sibyl Vane é sagrada! - As coisas sagradas são as únicas em que vale a pena tocar,Dorian - disse Lord Henry, com uma estranha entoação patéticana voz. - Mas por que fica tão melindrado? Suponho que um diaela há-de pertencer-lhe. Quando uma pessoa se apaixona, começasempre por se enganar a si mesma e acaba sempre por enganaroutras pessoas.A isso o mundo chama um caso de amor. Ao menos, conhece-a? - Claro que a conheço. Na primeira noite em que estive noteatro, o tal judeu horrendo veio ter comigo ao camarote, 64depois do espectáculo, oferecendo-se para me levar até aosbastidores e apresentar-ma. Fiquei indignado e disse-lhe queJulieta morrera havia muitos séculos, e que o seu corpo jazianum túmulo de mármore em Verona. Pelo ar perplexo e atónitocom que me olhou, devia ter pensado que eu bebera champanhe amais, ou coisa parecida. - Não me surpreende nada. - Depois perguntou-me se eu escrevia para os jornais.Respondi-Lhe que nem sequer os leio. Pareceu ter ficadoextremamente decepcionado, e confidenciou-me que todos oscríticos de teatro estavam conluiados contra ele e que todoseles se deixavam comprar - Não me surpreendia nada que nissoele tivesse razão.Mas, por outro lado, a julgar pelo seu aspecto, grande partedeles não devem sair muito caros. - Bem, talvez pensasse que eles viviam acima dos seusrecursos - observou Dorian a rir. - Ora àquela hora, porém,estavam a apagar as luzes do teatro, e eu tive que sair.Então ele quis que eu experimentasse uns charutos que merecomendava veementemente. Recusei. Na noite seguinte,como é evidente, voltei lá. Quando me viu, fez-me uma grandevénia e asseverou-me que eu era um generoso patrono das artes.Embora fosse um repulsivo brutamontes,tinha uma paixão extraordinária por Shakespeare. Uma vez,contou-me, com um ar orgulhoso, que as cinco falências quesofrera se deviam inteiramente ao Bardo - era assim que eleinsistia em chamar-lhe. Ele pensava que isso Lhe podia dar umacerta distinção. - E dava mesmo, meu caro Dorian, uma grande distinção. Quasetodas as pessoas que abrem falência investiram fortemente naprosa da vida. Ser levado à ruína pela poesia é uma honra. Masquando é que falou com Miss Sibyl Vane pela primeira vez? - Na terceira noite. Ela tinha representado o papel deRosalinda. Não resisti e fui vê-la. Eu tinha-Lhe atiradoalgumas flores para o palco, e ela olhou para mim, pelo menos,imaginei que sim. Quanto ao velho judeu, continuava ainsistir. Pareceu-me decidido a levar-me até aos bastidores, 65e, então, consenti. Não acha curioso que eu não tivessequerido conhecê-la? - Não, não acho. - E porquê, meu caro Harry? - Dir-lho-ei noutra ocasião. Agora quero saber tudo sobre arapariga. - Sibyl? Ah! Ela era tão tímida e tão meiga. Há nela aindamuito de criança. Os olhos escancararam-se de espanto quandoLhe disse o que pensava da sua actuação, e não parecia terconsciência da sua força. Creio que estávamos os dois bastantenervosos. O velho judeu, de sorriso alvar, ficou à porta docamarim poeirento, fazendo discursos floreados acerca de nós,enquanto nós ficámos a olhar um para o outro como duascrianças. Ele teimava em chamar-me My Lord,por isso tive que garantir a Sibyl que eu não era nada disso.Ela disse-me muito simplesmente: "O senhor parece-se mais comum príncipe. Devo chamar-lhe Príncipe Encantado"? - Palavra de honra, Dorian, Miss Sibyl sabe elogiar. - Você não a compreende, Harry. Ela considerava-me apenasuma personagem de uma peça. Ela não sabe nada da vida. Vivecom a mãe, uma mulher cansada e débil, que, na primeira noite,fez de Lady Capuleto, vestindo um roupão escarlate, e que temo ar de ter tido uma vida mais próspera. - Conheço esse ar. Deprime-me - murmurou Lord Henry, olhandopara os seus anéis. - O judeu quis contar-me a história da vida dela, mas eudisse-lhe que não estava interessado. - Fez muito bem. Há sempre qualquer coisa extremamentemesquinha na tragédia das outras pessoas. - Só a Sibyl me interessa. Que me importam as suas origens?Da cabeça aos pés, ela é absoluta e inteiramente divina. Vouvê-la actuar sem falhar uma noite, e ela é sempre maismaravilhosa noite após noite. - Creio que é esse o motivo por que deixou de jantar comigo.Pensei que você devia andar envolvido em alguma aventuraespecial. E anda, só que não é exactamente o que eu esperava. 66 67 - Mas meu caro Harry, jantamos, tocamus juntos todos osdias, e fui com você à Ópera várias vezes - disse Dorian,arregalando de espanto os seus olhos azuis. - Você chega sempre tardíssimo. - Bem, não posso deixar de ir ver a Sibyl actuar - exclamouele -, nem que seja apenas um único acto. Estou ávido da suapresença, e quando penso na alma maravilhosa que se ocultanaquela figurinha de marfim, sinto admiração e respeito. - Esta noite pode jantar comigo, Dorian, não pode? - Esta noite ela faz de Imogénia - respondeu ele, abanando acabeça -, e amanhã à noite vai representar Julieta. - E quando é que ela é Sibyl Vane? - Nunca. - Dou-lhe os meus parabéns. - Você é horrível! Saiba que ela reúne em si todas asgrandes heroínas do mundo. É mais do que uma pessoa.Você ri-se? Pois digo-Lhe que ela tem génio. Amo-a e tenho delevá-la a amar-me. Você, que conhece todos os segredos davida, diga-me como hei-de enfeitiçar Sibyl Vane para que ela.me ame! Quero que Romeu tenha ciúmes de mim.Quero que todos os amantes mortos do mundo ouçam o nosso risoe fiquem tristes. Quero que um sopro da nossa paixão remexaessas cinzas até ganharem consciência e quedesperte as suas cinzâs para a dor. Meu Deus, Harry, como eu aadoro! Ele percorria a sala, de um lado para o outro, enquantofalava. Manchas rosáceas esbraseavam-lhe febrilmente as faces.Estava excessivamente excitado. Lord Henry observava-o com uma subtil sensação de prazer.Que diferente era agora do rapaz tímido e assustado queencontrara no atelier de Basil Hallward. O seu serdesabrochara como uma flor, em florescências de chamaescarlate. A Alma conseguira sair do seu esconderijo secreto,e o Desejo viera ao seu encontro. - E o que é que sugere: - disse, por fin, Lord Henry. - Quero que você e o Basil venham uma noite comigo vê-larepresentar. Não tenho o mínimo receio do resultado. Decerteza que vocês irão reconhecer o seu génio. Depois temos dearrancá-la às mãos do judeu. Ela tem com ele um contrato detrês anos - pelo menos, de dois anos e oito meses - a partirde agora. Terei que pagar ao homem qualquer coisa, por certo.Quando tudo estiver resolvido, alugo um teatro do West End ehá-de ser conhecida como merece. Há-de arrebatar o público talcomo me arrebatou a mim. - Isso seria impossível, meu menino! - Há-de, sim! Ela possui mais do que arte, um consumadoinstinto artístico, tem também personalidade, e você disse-merepetidas vezes que são as personalidades, e não osprincípios, que fazem mover os nossos tempos. - Pois bem, em que noite vamos? - Deixe-me ver. Hoje é terça-feira. Marcamos para amanhã.Amanhã ela representa o papel de Julieta. - Combinado. No Bristol às oito horas, eu trago o Basil. - Às oito não, Harry, por favor. Às seis e meia. Temos deestar lá antes de subir o pano. Têm de vê-la no primeiro acto,que é quando ela se encontra com o Romeu. - Às seis e meia! Nem pensar! É como ir tomar chá, ou ler umromance inglês. Tem de ser às sete. Nenhum cavaLheiro jantaantes das sete. Você ainda vai estar com o Basil até lá? Ouquer que eu Lhe escreva? - O querido Basil! Há uma semana que não o vejo. Tenho-meportado horrivelmente com ele, tanto mais que me mandou o meuretrato com uma moldura maravilhosa especialmente concebidapor ele, e, posto que sinta alguns ciúmes do retrato por serexactamente um mês mais novo do que eu, devo confessar que meencanta. É talvez preferível que você lhe escreva. Não queroestar a sós com ele.Diz coisas que me aborrecem. Costuma dar-me bons conselhos. - As pessoas - comentou Lord Henry, sorrindo -- gostam muitode se desfazer daquilo de que mais precisam.A isso costumo chamar generosidade levada ao extremo. 68 - Mas o Basil é o melhor dos indivíduos, ainda que tenha umpouco de filistino. Descobri isso depois de o ter conhecido asi, Harry. - O Basil, meu menino, põe na sua obra tudo o que há defascinante dentro dele. Como consequência só lhe restaram paraa vida os seus preconceitos, e princípios, e senso comum. Osúnicos artistas de personalidade encantadora que conheci sãomaus artistas. Os bons artistas existem simplesmente em tudo oque criam e, por conseguinte, são completamente falhos deinteresse em tudo o que são. Um grande poeta, um poeta queseja realmente extraordinário, é a menos poética de todas ascriaturas. Contudo, os poetas menores são absolutamentefascinantes. Quanto mais medíocres são os seus versos, maispitorescos parecem. O sinples facto de ter publicado um livrode sonetos de segunda ordem faz de um homem uma pessoaextraordinariamente irresistível. Ele vive a poesia que nãoconsegue escrever. Os outros escrevem a poesía que não ousamrealizar. - Será mesmo assim, Harry? - perguntou Dorian Gray,pondo no lenço um pouco de perfume de um grande frasco comtampa de ouro que estava em cima da mesa. - Deve ser, se évocê que o diz. E agora vou-me embora. Imogénia está à ninhaespera. Não se esqueça do dia de amanhã.Adeus. Quando ele saiu da sala, Lord Henry baixou as suas pesadaspálpebras e começou a meditar. Não havia, certamente, muitaspessoas que lhe tivessem despertado tamanho interesse comoDorian Gray, e, contudo, a exagerada adoração que o rapazsentia por outra pessoa não lhe causava a mínima angústia ouciúme. Causava-lhe mesmo satisfação e fazia dele um objecto deestudo mais interessante. Os métodos das ciências naturaistinham-no atraído sempre, mas o vulgar assunto dessas ciênciasrepresentara-se-Lhe como trivial e sem importância. Por isso,começara por dissecar-se a si mesmo, e acabara por dissecar osoutros. A vida humana é que lhe parecia ser a única coisa quevalia a pena investigar. Não havia mais nada de valor que selhe comparasse. 69Era certo que, quando se observava a vida no seu singularcadinho de dor e de prazer, não era possível proteger o rostocom uma máscara de vidro, nem impedir que as emanaçõessulfurosas afectassem o cérebro, toldando a imaginação comfantasias monstruosas e sonhos disformes. Havia venenos tãosubtis que para conhecer as suas propriedades era precisoadoecer, experimentando-os.Havia doenças tão invulgares que tinha que se passar por elaspara se compreender a sua natureza. E, porém, a recompensarecebida era enorme! Como o mundo se tornava maravilhoso aosnossos olhos! Observar a lógica rigorosa e singular da paixãoe a vida colorida e emocional do intelecto, atentar nos pontosem que se encontravam e se separavam, no ponto de concórdia eno de discórdia... que prazer havia em tudo isso! Nãoimportava o custo que havia que pagar! Nunca era demasiadoelevado o preço de qualquer sensação. Ele tinha consciência de que - e, só de pensar nisso, osolhos de um castanho ágata brilhavam de prazer - fora devido adeterminadas palavras suas, palavras musícais e proferidas comuma expressão musical, que a alma de Dorian Gray se votara aessa rapariga inocente, que adorava com reverência. Em largamedida, o rapaz era uma criação sua. Tornara-o precoce. Foi umbom resultado. As pessoas vulgares aguardavam que a vida lhesrevelasse os seus segredos, mas eram poucos, só os eleitos,aqueles a quem. os mistérios da vida se revelavam antes de selevantar o véu.Às vezes isso acontecia por efeito da arte, e principalmenteda arte literária, que tinha uma relação imediata com aspaixões e o intelecto. Todavia, por vezes, uma personalidadecomplexa surgia e assumia o labor da arte, passava a ser,de certo modo, uma verdadeira obra de arte, possuindo a Vidaas suas esmeradas obras-primas, tal como a poesia, ou aescultura, ou a pintura o possuem. O rapaz era, na verdade, permaturo. Ele fazia a sua coLheitaenquanto era ainda Primavera. Nele pulsava a paixão dajuventude. mas estava a tornar-se consciente de si próprio. 70 71Era maravilhoso observá-lo. A beleza do seu rosto e a da suaalma faziam dele um ser admirável. Não importava como tudoacabava, ou estava destinado a acabar. Ele assemelhava-se auma dessas graciosas figuras de um cortejo alegórico ou de umapeça, cujas alegrias parecem afastadas de nós, mas cujastristezas emocionam o nosso sentido de beleza e as chagas sãocomo rosas vermelhas. A alma e o corpo, o corpo e a alma - que mistério tinham!Havia sensualidade na alma e o corpo tinha momentos deespiritualidade. Os sentidos podiam aperfeiçoar-se, e ointelecto podia degradar-se. Quem podia dizer onde terminava oimpulso carnal, ou começava o impulso espiritual? Como eramtriviais as definições arbitrárias de vulgares psicólogos! E,porém, como era difícil decidir entre as pretensões dasdiversas escolas! Seria a alma uma sombra sentada na casa dopecado? Ou estaria realmente o corpo dentro da alma, comopensava Giordano Bruno? A separação entre o espírito e amatéria constituía um mistério, e a união do espírito com amatéria era também um mistério. Ele começou a interrogar-se se poderíamos alguma vez fazerda psicologia uma ciência tão absoluta que cada pequenaprimavera da vida nos seria revelada. Nós, por assim dizer,nunca nos entendíamos a nós mesmos e raramente compreendíamosos outros. A experiência não tinha valor ético algum. Erasimplesmente o nome que os homens davam aos seus próprioserros. Em regra, os moralistas tinham-na considerado um modode advertência, tinham reivindicado para ela uma certaeficácia ética na formação do carácter, tinham-na elogiadocomo uma coisa que nos ensinava o que devíamos seguir e nosmostrava o que devíamos evitar. Mas a experiência não tinhaforça motriz. Era uma causa tão pouco activa como a própriaconsciência.Na realidade, apenas demonstrava que o nosso futuro seriaigual ao nosso passado, e que o pecado, que cometeramos apenasuma vez e com relutância, seria cometido muitas vezes e comprazer. Era bem evidente para ele que o método experimental era oúnico método através do qual se podia chegar a uma análisecientífica das paixões, e era certo que Dorian Gray era umobjecto de estudo à sua medida e parecia prometer resultadosricos e frutificantes. A sua súbita paixão por Sibyl Vane eraum fenómeno psicológico com interesse a não desprezar. Eraindubitável que a curiosidade dera um grande contributo, acuriosidade e o desejo de experimentar novas sensações nãoera, porém, uma paixão simples, mas antes uma paixão muitocomplexa. O que nela havia de instinto puramente sensual daadolescência transformara-se, devido à actividade daimaginação, em algo que ao próprio jovem parecia muitodistante dos sentidos, e era tanto mais perigoso por essemesmo motivo. As paixões que mais violentamente nostiranizavam eram aquelas acerca de cujas origens nos iludíamosa nós mesmos. As nossas razões mais inconsistentes eramaquelas de cuja natureza tínhamos consciência. Aconteciafrequentemente que, quando julgávamos fazer experiências emoutras pessoas, estávamos, de facto, a fazer experiências emnós próprios. Enquanto Lord Henry especulava sobre estas questões,ouviu-se bater à porta e o seu criado de quarto entrou efez-lhe lembrar que eram horas de mudar de fato para o jantar.Levantou-se e olhou para fora para a rua. O sol poente tinhachapeado de ouro escarlate as janelas dos andares superioresdas casas em frente. As vidraças brilhavam incandescentes comochapas de metal em brasa. O céu parecia uma rosa a esmaecer.Ele lembrou-se da fogosa vida juvenil do seu amigo einterrogava-se como iria tudo terminar. Quando chegou a casa, eram aproximadamente doze horas etrinta, viu um telegrama em cima da mesa do vestíbulo. Aoabri-lo, viu que era de Dorian Gray. O telegrama informava-ode que ele estava noivo de Sibyl Vane. Capítulo V - Mãe, Mãe, estou tão feliz! - murmurou a raparigamergulhando o rosto no regaço da mulher gasta e cansada que,de costas para a luz ofuscante e incómoda, estava sentada naúnica poltrona da acanhada sala de estar. - Estou tão feliz! -repetiu ela -, e a mãe também devia sentir-se feliz! Mrs. Vane retraiu-se e colocou as mãos franzinas eembranquecidas com bismuto sobre a cabeça da filha. - Feliz! - repetiu como um eco. - Só estou feliz, Sibyl,quando te vejo representar. Não deves pensar em mais nadasenão na tua arte de representar. Mr. Isaacs tem sido muitobom para nós e nós devemos-lhe dinheiro. A rapariga levantou os olhos para a mãe e fez um trejeito deamuo. - Dinheiro, mãe? - exclamou ela -, que importância tem odinheiro? O amor vale mais do que o dinheiro. - Mr. Isaacs adiantou-nos cinquenta libras para pagarmos asnossas dívidas e comprar um fato decente para o James. Não tedeves esquecer disso, Sibyl. Cinquenta libras é uma quantiamuito elevada. Mr. Isaacs tem sido extremamente atencioso. - Ele não é um senhor, mãe, e detesto a maneira como elefala comigo - disse a rapariga, levantando-se e aproximando-seda janela. - Não sei como poderíamos aguentar sem ele - respondeu amulher mais velha, com voz lamuriosa. Sibyl Vane atirou a cabeça para trás e desatou a rir. - Não precisamos mais dele, mãe. Agora é o Príncip Encantadoque orienta a nossa vida. - Fez uma pausa. Uma rosaagitava-lhe o sangue e coloria-Lhe as faces. A respiraçãoofegante apartava os seus lábios de pétalas. Estavam trémulos.Um vento sul de paixão tomou-a impetuosamente e agitou aspregas delicadas do vestido. - Eu amo-o - disse apenas. - Que tolinha! Que tolinha! - foi a resposta papagueada pelamãe. O movimento dos dedos retorcidos e cobertos de jóiasfalsas tornavam as suas palavras grotescas. A rapariga riu-se novamente. A voz tinha a alegria de umpássaro engaiolado. Os oLhos captavam a melodia eirradiavam-na como um eco, depois fechavam-se por um momento,como que a esconder o seu segredo. Quando se abriram tinhapassado por eles a névoa de um sonho. A sensatez, de lábios apertados, instalada na poltronapuída, falava para ela, sugeria prudência, fazia citaçõesdaquele livro da cobardia cujo autor macaqueia o nome do bomsenso. Mas ela a nada atendia. Era livre no seu cárcere depaixão. O seu príncipe, o Príncipe Encantado, estava consigo.Recorrera à memória para o reconstituir. Dissera à sua almaque o procurasse e ela trouxera-lho de volta. O beijo delevoltava a queimar-lhe a boca. O seu hálito afagava-lhe aspálpebras. Então a Sensatez modificou a sua estratégia e faloude espionagem e descoberta. Este jovem talvez fosse rico.Sendo assim, devia pensar-se no casamento. As ondas da astúciainteresseira desfaziam-se contra as conchas dos ouvidos dajovem. As setas da malícia passavam por ela sem lhe tocar. Viao movimento dos lábios apertados, e sorria. Subitamente,sentiu necessidade de falar. O silêncio palavrosoperturbava-a. - Mãe, mãe - exclamou -, por que me ama ele tanto? Euconheço as razões do meu amor. Amo-o porque ele é como opróprio amor deve ser. Mas o que vê ele em mim? Eu não soudigna dele. E, contudo, não sei dizer porquê, emborasentindo-me tão abaixo dele, não me sinto inferior. Sinto-meorgulhosa, terrivelmente orgulhosa. A mãe amava o meu pai comoeu amo o Príncipe Encantado? 74 A mulher mais velha empalideceu sob a camada grosseira de póque lhe revestia as faces, e os lábios ressequidoscrisparam-se num espasmo de dor. Sibyl correu para ela,abraçou-a e beijou-a. - Perdão, mãe, sei que lhe é doloroso falar do pai. Mas issoatormenta-a, é porque o amava. tanto. Não fique tão triste.Sou tão feliz hoje como a mãe o era há vinte anos.Ah! Quero ser feliz para sempre! - Minha filha, és muito nova ainda para pensar em teapaixonares. Além disso, que sabes tu deste rapaz? Nem sequersabes o seu nome. Tudo isto é muito inoportuno, e,realmente, agora que o James vai para a Austrália, e eu tenhotanto em que pensar, devo dizer-te que devias mostrar maisconsideração. No entanto, como eu dizia há pouco, se ele forrico... - Ah! Mãe, mãe, quero ser feliz! Mrs. Vane olhou para ela e, com um daqueles postiços gestosteatrais que tantas vezes se tornam uma segunda natureza de umactor de palco, apertou-a nos braços. Nesse momento, a portaabriu-se e entrou na sala um rapaz de áspero cabelo castanho.Era uma figura atarracada, de mãos e pés enormes, e demovimentos um tanto desajeitados. Não tinha a classerequintada da irmã. Seria difícil adivinhar que os unia umarelação de parentesco tão chegada. Mrs. Vane fitou-o eacentuou o sorriso. Mentalmente, elevava o filho à dignidadede um público. Tinha a certeza de que o rapaz era atraente. - Bem podias guardar alguns dos teus beijos para mim,Sibyl - disse o rapaz, com um resmungo carinhoso. - Ah, mas tu não gostas que te beijem, Jim - exclamou ela. -És um urso insuportável. - E correu a abraçá-lo. James Vane olhou para o rosto da irmã com ternura. - Quero que saias comigo a passear, Sibyl. Creio que jamaisvoltarei a ver esta Londres horríVel. Tenho a certeza de quenem vou querer. - Meu filho, não digas coisas tão desagradáveis - murmurouMrs. Vane, que, suspirando, pegou num vestido de mau gostopara usar em cena e começou a remendá-lo. 75Estava um pouco decepcionada por não ter feito parte do grupo.Teria realçado o pitoresco teatral da cena. - Por que não, mãe? É o que penso. - Tu desgostas-me, meu filho. Tenho fé em que hás-de voltarda Austrália muito rico. Creio que não existe nenhum tipo devida social nas colónias, nada a que se possa chamar vidasocial, nesse caso, quando tiveres feito fortuna devesregressar e ser alguém em Londres. - Vida social! - resmungou o rapaz. - Não quero saber nadadisso. Gostaria de ter algum dinheiro para tirar a mãe e aSibyl desse palco. Odeio-o! - Ai, Jim - disse, rindo, Sibyl -, não sejas antipático! Masé mesmo verdade que vais dar um passeio comigo? Que bom! E euque receava que te fosses despedir de alguns amigos teus, comoo Tom Hardy, que te deu aquele cachimbo medonho, ou o NedLangton, que zomba de ti por o usares. És muito querido por mededicares a tua última tarde. Aonde havemos de ir? Vamos aoParque. - Pareço um maltrapilho - respondeu ele, com ar carrancudo.- O Parque é frequentado só por gente que veste bem. - Que disparate, Jim - murmurou ela, afagando-Lhe a manga docasaco. Ele hesitou por um instante. - Está bem - disse, por fim -, mas não leves muito tempo avestir-te. A irmã saiu da sala a dançar. Ouviram-na a cantar quandosubia as escadas a correr. Ouviram-se depois os seus passinhosmiúdos no andar de cima. Ele percorreu a sala umas duas ou três vezes. Depoisdirigiu-se à figura que continuava sentada em silêncio. - Mãe, tenho tudo pronto? - perguntou. - Tudo pronto, James - respondeu a mãe, continuando com osolhos postos no trabalho que estava a fazer. Durante osúltimos meses, sentira-se pouco à vontade quando estava a sóscom este seu filho severo e carrancudo. 76 77A sua índole secretamente mesquinha perturbava-se quando o seuolhar se cruzava com o dele. Costumava interrogar-se se elesuspeitaria de alguma coisa. O silêncio tornava-se-lheintolerável, pois ele não fez mais nenhuma observação. Entãocomeçou a lamuriar-se. As mulheres defendem-se atacando, assimcomo atacam recorrendo a estranhas e súbitas capitulações. - Espero, James, que fiques satisfeito com a tua vida no mar- disse ela. - Não te esqueças de que a escolha foi... tua.Podias ter entrado para o cartório de um advogado. Osadvogados são uma classe muito respeitável, e os que vivem naprovíncia costumam jantar com as melhores famílias. - Odeio cartórios e amanuenses - replicou ele. - Mas temtoda a razão. Fui eu que escolhi o meu modo de vida.Tudo o que lhe peço é que olhe pela Sibyl. Não deixe que lheaconteça mal algum. Ouve, mãe? Olhe bem por ela. - Que maneira tão estranha de falares comigo, James.Claro que olho pela Sibyl. - Soube que há um cavalheiro que vem todas as noites aoteatro e vai falar com ela ao camarim. Acha isso bem? O que éque me diz? - Tu falas de coisas que não entendes, James. Nestaprofissão, estamos habituadas a receber muitas atenções quenos são gratificantes. Até comigo acontecia oferecerem-memuitos ramos de flores de uma só vez. Isso era no tempo em queo teatro era realmente apreciado. Quanto à Sibyl,de momento não sei se a sua ligação é a sério ou não. Mas nãohá dúvida de que o jovem em questão é um perfeito cavalheiro.É sempre delicadíssimo comigo. Além disso, tem aspecto de serrico, e as flores que oferece são um espanto. - Mesmo assim, nem sabe o nome dele - disse o rapaz,asperamente. - Não, não sei - respondeu a mãe, com uma expressãotranquila no rosto. - Ele ainda não revelou o seu verdadeironome. Acho isso tão romântico da parte dele. Provavelmentepertence à aristocracia. James Vane procurou dominar-se. - Ollhe pela Sibyl, mãe - exclamou ele. -- Olhe bem por ela. - Meu filho, não me aflijas tanto. Tenho sempre um cuidadomuito especial com a Sibyl. Evidentemente que, se estecavalheiro for rico, não há motivo para que ela não façacontrato de casamento com ele. Tenho fé que ele seja daaristocracia. Tem todo o aspecto disso, tenho que reconhecer.Seria um casamento magnífico para a Sibyl. Fariam um parencantador. A beleza dele é realmente notável, toda a genterepara nela. O rapaz disse qualquer coisa entredentes e tamborilou novidro da janela ínn os seus dedos grossos. Precisamente quandose voltava para dizer alguma coisa, a porta abriu-se e Sibylentrou a correr. - Estão os dois com um ar tão sério! -- exclamou. - O queaconteceu? - Nada - respondeu o irmão. - Parece-me que às vezes épreciso estar-se sério. Adeus, mãe, vou jantar às cinco horas.Está tudo emalado, excepto as minhas camisas, por isso nãoprecisa de se incomodar. - Adeus, meu filho - respondeu, inclinando a cabeça numgesto de contida altivez. Estava extremamente contrariada com u tom que o filhoadoptara com ela, e notara no seu olhar uma expressão que Lhecausara medo. - Um beijo, mãe - pediu a rapariga. E os seus lábios de flortocaram ao de leve na face mirrada, dando-Lhe um pouco decalor. - Minha filha! Minha filha! - exclamou Mrs. Vane, erguendo oolhar para o tecto à procura de um imaginário público dagaleria. - Vamos, Sibyl -- disse o irmão, com impaciência. Detestavaos modos teatrais da mãe. Saíram os dois ao encontro de um dia de sol inconstante ebatido pelo vento, e desceram a sombria Euston Road.Os transeuntes olhavam admirados para o jovem de ar taciturnoe apressado que vestindo roupas grosseiras e mal feitas, 78era acompanhado por uma rapariga tão graciosa e de aspecto tãodistinto. Parecia um rude jardineiro a passear uma rosa. De vez em quando, Jim franzia o sobrolho quando vislumbravao olhar de curiosidade de algum desconhecido.Ele tinha aquela aversão de ser olhado que aparece tarde naspessoas de génio e que permanece sempre na gente comum. Sibyl,porém, não tinha noção alguma do efeito que causava. O amorque sentia estremecia no riso dos seus lábios. Pensava noPríncipe Encantado e, só por nele poder pensar, não falavadele, mas falava entusiasticamente do navio em que Jim iapartir, do ouro que ele ia de certeza encontrar, damaravilhosa herdeira que havia de salvar das mãos de cruéissalteadores de camisas vermelhas. Não havia de ser sempremarinheiro, ou comissário de bordo, ou lá o que era. Ah! Issoé que não. A vida de um marinheiro era terrível. Imagine-se!Ficar engaiolado num navio horrível, e as ondas, de dorsoenrolado e com um ruído cavo, a quererem entrar, e um ventotenebroso a derrubar os mastros e rasgando as velas em longastiras sibilantes! Ele devia desembarcar em Melbourne,despedir-se educadamente do capitão e partir de imediato paraas minas de ouro. Em menos de uma semana havia de encontraruma enorme pepita de ouro puro, a maior que alguma vez foradescoberta, e trazê-la até á costa num vagão escoltado porseis guardas montados. Os salteadores haviam de os atacar trêsvezes, e seriam derrotados e chacinados. Não! Ele não havia deir para as minas de ouro. Eram lugares horrendos onde oshomens se embriagavam e disparavam uns contra os outros nosbares e diziam palavrões. Ele havia de ser um simpáticocriador de gado, e uma tardinha, ao voltar a cavalo para casa,havia de ver a formosa herdeira a ser raptada por um ladrãomontando um cavalo preto, e que ele havia de perseguir,salvando-a. Claro que ela se apaixonaria por ele, e ele porela, e haviam de casar, e de regressar, e viver numa enormecasa em Londres. Havia coisas maravilhosas que o futuro Lhereservava. Mas era preciso que ele fosse muito bom, 79e não perdesse a paciência, nem gastasse o dinheiro à toa. Elaera apenas um ano mais velha do que ele, mas sabia da vidatanto ou mais do que ele. Ele que não se esquecesse também deLhe escrever todos os dias em que havia correio,e de rezar todas as noites antes de se deitar. Deus era muitobom e protegê-lo-ia. Ela também rezaria por ele e daqui aalguns anos regressaria muito rico e feliz. O rapaz ia ouvindo, de mau humor, as suas palavras e não lhedava resposta alguma. Sentia-se muito infeliz por deixar opaís. No entanto, não era só por isso que ele se sentia abatido etaciturno. Por muito inexperiente que fosse, tinha ainda umanoção precisa do perigo que Sibyl corria. Esse jovem dândi quelhe fazia a corte não devia ter boas intenções em relação aela. Era um cavalheiro, e por isso odiava-o, odiava-o devido aum curioso instinto de raça que ele não sabia explicar, e que,por esse mesmo motivo, mais prevalecia dentro de si.Apercebia-se também da mesquinhez e vaidade do carácter damãe, e via aí um perigo ilimitado para Sibyl e para afelicidade de Sibyl. As crianças começam por amar os pais, àmedida que crescem tornam-se seus juízes,perdoam-lhes, às vezes. Mas a mãe! Tinha na ideia uma coisa para lhe perguntar,uma coisa em que havia cismado durante muitos meses desilêncio. Uma frase ocasional que ouvira no teatro, um certosarcasmo em segredo que lhe chegara aos ouvidos, numa noite emque esperava junto à porta de acesso ao palco, tinhamdesencadeado uma série de pensamentos medonhos.Lembrava-se disso como se lhe tivessem chicoteado o rosto. Assobrancelhas franziram-se num sulco profundo e,com uma contracção dolorosa, mordeu o lábio inferior. - Não estás a ouvir uma única palavra do que estou a dizer,Jim - exclamou Sibyl -, e eu a arquitectar os planos maisfantásticos para o teu futuro. Diz qualquer coisa. - O que queres que eu diga? - Ora, que vais ser bom rapaz e não nos vais esquecer -rrespondeu, sorrindo-lhe. 80 81 O irmão encolheu os ombros. - É mais provável que tu te esqueças de mim do que eu de ti,Sibyl. Ela corou. - O que queres dizer com isso, Jim? - perguntou. - Pelo que ouvi, tens um novo amigo. Quem é? Por que não mefalaste dele? Ele não tem boas intenções a teu respeito. - Cala-te, Jim! - exclamou a irmã. - Não deves dizer nadacontra ele. Eu amo-o. - Ora, tu nem sequer sabes o seu nome - respondeu o rapaz. -Quem é ele? Tenho o direito de saber. - Chama-se Príncipe Encantado. Não gostas do nome? Seu tolo!Não devias esquecê-lo. Bastava só que o visses para o acharesa pessoa mais maravilhosa de todo o mundo.Um dia hás-de encontrá-lo, quando regressares da Austrália.Irás gostar muito dele. Todos gostam dele. E eu... amo-o.Quem me dera que pudesses vir ao teatro esta noite. Ele vaiestar lá e eu vou fazer de Julieta. Oh! Nem imaginas como vourepresentar! Imagina, Jim, estar apaixonada e fazer deJulieta! Saber que ele está ali! Representar para Lhe darprazer! Receio poder vir a assustar a companhia, assustar oufasciná-los. Estar apaixonado é ir para além de si mesmo.O coitado do horrível Mr. Isaacs há-de gritar aos frequentadores do seu bar que sou um génio. Tem-me apregoado como umdogma, esta noite irá anunciar-me como uma revelação. Sintoque será assim. E tudo isto por causa dele, só ele, o PríncipeEncantado, o meu apaixonado encantador, o deus dos meus dons.Mas ao lado dele sou pobre. Pobre? Que importa isso? Quando apobreza entra pela porta, entra o amor pela janela. Os nossosprovérbios precisam de ser revistos. Foram feitos no Inverno eagora é Verão, e a Primavera parece-me uma verdadeira dança deflores em céus azuis. - Mas ele é um senhor - disse o rapaz, com ar carrancudo. - Um príncipe! - exclamou ela, com voz musical. - Que queresmais? - Ele pretende dominar-te. - Estremeço só de pensar em ser livre. - Quero que tenhas cautela. - Vê-lo é adorá-lo, conhecê-lo é nele confiar. - Sibyl, tu estás louca por ele. Ela riu-se e pegou-lhe no braço. - Meu querido Jim velhinho, falas como se tivesses cem anos.Um dia também tu te hás-de apaixonar. Então saberás o que é.Não faças esse ar tão rabujento. Certamente que deves estarcontente ao pensar que, embora vás partir para tão longe, medeixas mais feliz do que nunca. A vida tem sido dura para nósambos, terrivelmente dura e difícil.Mas agora será diferente. Tu vais para um novo mundo, e eudescobri um outro. Olha, temos aqui duas cadeiras, sentemo-nosa ver passar as pessoas elegantes. Puxaram as cadeiras para o meio de multídão de mirones. Oscanteiros de túlipas do outro lado da rua flamejavam comovibrantes anéis de fogo. Um pó branco, que parecia uma trémulanuvem de rizoma de lírio, pairava no ar ofegante. Osguarda-sóis de cores vivas dançavam subindo e baixando comoborboletas gigantes. Ela conseguiu que o irmão falasse de si, das suas esperançase perspectivas. Ele falava devagar e com esforço.Passavam as palavras um para o outro como jogadores a passaremfichas quando jogam. Sibyl sentia-se oprimida.Não conseguia comunicar a sua alegria. Só encontrava eco nobreve sorriso que fazia levantar os cantos daquela bocatristonha. Após uns instantes ficou silenciosa. De repentevislumbrou um cabelo dourado e uns lábios sorridentes quando Dorian Gray passou com duas senhoras numa carruagemaberta. E ela levantou-se de um salto. - Ali vai ele! - exclamou. - Quem? - perguntou Jim Vane. - O Príncipe Encantado - respondeu ela, procurando a vitóriacom os olhos. Ele deu um salto e agarrou-Lhe o braço com violência. 82 83 - Indica-mo. Qual é? Tenho de o ver! - exclamou, mas nessemesmo momento interpôs-se a carruagem do duque de Berwick e,quando deixou o espaço livre, já a outra carruagem tinhadesaparecido do Parque. - Desapareceu - murmurou Sibyl com tristeza. - Gostava que otivesses visto. - Também eu, pois, tão certo como Deus estar no céu,se ele te fizer algum mal eu mato-o. Ela olhou-o horrorizada. Ele repetiu as mesmas palavras.Cortavam o ar como uma adaga. As pessoas à volta começaram aolhar embasbacadas. Uma senhora que estava perto dela abafouum sorriso. - Vamos embora, Jim, vamos embora - segredou ela.Ele seguiu-a com um ar obstinado, enquanto ela abria caminhoatravés da multidão. Sentia-se satisfeito com o que tinhadito. Quando chegaram ao pé da estátua de Aquiles ela vultou-se.Havia compaixão nos seus olhos que se tornava em riso noslábios. Abanou a cabeça, com um ar de reprovação. - Tu és tolinho, Jim, completamente tolinho, um rapazmal-humorado, é o que és. Como podes dizer coisas tãohorríveis? Não sabes do que estás a falar. És simplesmenteciumento e mau. Ah! Só desejo que te apaixones. O amor tornaas pessoas boas, e o que disseste foi grave. - Tenho dezasseis anos - retorquiu ele -, e sei o que devofazer. A mãe não te presta grande auxílio. Ela não sabe cuidarde ti. Quem me dera agora não ter de ir para a Austrália.Tenho uma grande vontade de livrar-me disto tudo. E fá-lo-ia,se o meu contrato não estivesse assinado. - Vá lá, não sejas tão sisudo, Jim. Pareces um dos heróisdaqueles melodramas idiotas que a mãe tanto gostava derepresentar. Não vou discutir contigo. Eu vi-o, e vê-lo é asuprema felicidade. Não vamos discutir. Sei que nunca fariasmal a alguém que eu amasse, pois não? - Não, se tu o amares, creio - foi a resposta macambúzia. - Amá-lo-ei para sempre! - exclamou ela. - E ele? - Também para sempre! - É melhor que o faça. Ela afastou-se dele. Depois riu-se e pegou-Lhe no braço.Ele não passava de um rapazinho. Em Marble Arch fizeram parar uma diligência, que os deixouperto da sua modesta casa na Euston Road. Passava das cinco datarde, e Sibyl precisava de repousar durante algumas horasantes da sua actuação. Jim insistiu com ela.Disse ainda que preferia despedir-se quando a mãe nãoestivesse presente. Ela ia de certeza fazer uma cena e eledetestava todo o tipo de cenas. Despediram-se mesmo no quarto de Sibyl. O rapaz tinha ocoração carregado de ciúme, e ainda de um ódio feroz ehomicida pelo desconhecido que Lhe parecia haver-seintrometido entre ele e a irmã. No entanto, quando ela lheenlaçou o pescoço com os braços e, com os dedos, lhe afagou ocabelo, enterneceu-se e beijou-a com verdadeiro afecto.Havia lágrimas nos seus olhos quando desceu as escadas. Em baixo, a mãe aguardava-o. Resmungou pela sua falta depontualidade, quando ele vinha a entrar Sem lhe dar qualquerresposta, sentou-se à mesa para comer a parca refeição. Asmoscas zuniam à volta da mesa e trepavam pela toalha manchada.Através do estrépito das diligências e do chocalhar dosfiacres, ouvia a voz monótona a devorar-lhe cada minuto quelhe restava. Algum tempo depois, arredou o prato e mergulhou a cabeçaentre as mãos. Sentia que tinha o direito de saber.Deviam-Lho ter contado antes, se era o que ele suspeitava.Paralisada pelo medo, a mãe quedava-se a observá-lo. Aspalavras tombavam-Lhe maquinalmente dos lábios. Torcia entreos dedos um lenço de renda já esfarrapado. Quando o relógiobateu as seis, ele levantou-se e encaminhou-se para a porta.Depois, retrocedeu e olhou para ela. Os olhares de amboscruzaram-se. No dela, ele viu um desesperado pedido decompaixão, que o enfureceu. - Mãe, tenho uma coisa para lhe perguntar - disse ele. 84 Os olhos dela erravam distraidamente pela sala. Não Lherespondeu. - Diga-me a verdade. Tenho o direito de saber. A mãe eracasada com o meu pai? Ela soltu um profundo suspiro... (Era um suspiro de alívio.O terrível momento, o momento que noite e dia, semanas emeses, tanto temera, chegara por fim, e, todavia, não sesentia apavorada. Até certo ponto, foi mesmo uma decepção. Apergunta, feita cruamente e sem rodeios, merecia uma respostadirecta. A situação não fora gradualmente preparada. Foiabrupta. Fazia-lhe lembrar um mau ensaio. - Não - respondeu, surpreendendo-se com a crua simplicidadeda vida. - O meu pai era então um miserável? - indignou-se o rapaz,cerrando os punhos. Ela fez um gesto negativo com a cabeça. - Eu sabia que não era um homem livre. Amávamo-nos muito. Senão tivesse morrido, teria assegurado o nosso futuro. Nãofales contra ele, meu filho. Era teu pai e era um senhor. Eraaté de famílias importantes. Uma imprecação irrompeu da boca do rapaz. - Não é comigo que me preocupo - exclamou. - Mas não deixe aSibyl... Quem está apaixonado por ela é um senhor, ou que dizque o é, não é assim? E também de famílías muito importantes,creio. por um instante, a mulher foi tomada por uma sensaçãoabominável de humilhação. Deixou pender a cabeça. Enxugou osolhos com mãos trémulas. - A Sibyl tem mãe - murmurou -, eu não tinha. O rapaz comoveu-se. Aproximou-se dela e, inclinando-se,abraçou-a. - Perdoe-me por tê-la feito sofrer ao perguntar-lhe pelo meupai - disse -, mas não podia deixar de o fazer. Agora tenho departir. Adeus. Não se esqueça de que fica apenas com uma filhapara cuidar, e pode crer que se esse homem fizer mal à minhairmã, hei-de encontrá-lo, persegui-lo e abatê-lo como um cão.Juro que o faço. 85 A exagerada insensatez da ameaça, o gesto apaixonado que aacompanhou, a loucura melodramática das palavras tornaram avida mais intensa aos olhos da mãe. Era o seu ambiente.Respirou mais livremente e, pela primeira vez, em muitosmeses, sentiu verdadeira admiração pelo filho. Gostaria que acena continuasse no mesmo nível emocional, mas o filhointerrompeu-a abruptamente. Havia malas a transportar eagasalhos a procurar. O criado da pensão entrava e saía numagrande azáfama. Havia ainda a discutir o preço com o cocheiro.O momento perdeu-se em detaLhes triviais. Foi com um renovadosentimento de decepção que ela acenou da janela com o lenço derendas, quando o filho se afastava. Tinha noção de que setinha desperdiçado uma grande oportunidade. Consolava-secontando a Sibyl como a sua vida passaria a ser solitária,agora que só tinha uma filha para cuidar. Lembrava-se dafrase. Agradara-Lhe. Não mencionou a ameaça. Foi expressa comvivacidade e dramatismo. Tinha a sensação de que todos haviamde rir dela um dia. Capítulo VI - Já ouviu a novidad, Basil? - perguntou Lord Henry,nesse fim de tarde, quando Hallward era acompanhado até àpequena sala privada do Bristol, onde a mesa para o jantartinha sido posta para três pessoas. - Não, Harry - respondeu o artista, entregando o chapéu e ocasaco ao criado, que se curvava numa vénia. - O que é? Nadade política, espero bem. Não me interessa. Quase que não seencontra um único indivíduo na Câmara dos Comuns que valha apena pintar, ainda que muitos deles precisassem de um pequenodisfarce. - Dorian Gray está noivo e vai casar - respondeu Lord Henry,observando-o enquanto falava. Hallward sobressaltou-se, depois carregou os sobrolhos. - O Dorian vai casar! - exclamou ele. - Impossível! - É inteiramente verdade. - Com quem? - Com uma pequena actriz qualquer. - Não posso acreditar. O Dorian é muito sensato. - O Dorian é demasiado sensato para não cometer loucuras devez em quando, meu caro Basil. - Não se pode dizer que o casamento seja uma coisa que sefaz de vez em quando, Harry. - Excepto na América - retorquiu Lord Henry languidamente. -Mas eu não disse que ele estava casado. Disse que estavanoivo. Há uma grande diferença. Recordo-me nitidamente deestar casado, mas não me lembro nada de estar noivo. Soulevado a pensar que nunca estive noivo. - Mas pense nas origens do Dorian, e a sua posição social ea sua fortuna. Seria absurdo que ele casasse com alguém denível inferior. - Se quiser levá-lo a casar com esta rapariga, vá dizer-lheisso, Basil. De certeza que o fará então. Sempre que um homemcomete um disparate, fá-lo sempre pela mais nobre das causas. - Espero que ela seja boa rapariga, Harry. Não quero ver oDorian ligado a uma criatura desprezível, que viesse aaviltar-lhe a índole e arruinar-lhe a inteligência. - Oh, ela é mais do que boa, é bela - murmurou Lord Henry,bebericando um vermute com bíter de laranja. - O Dorian dizque ela é lindíssima, e ele não se costuma enganar com coisasdeste género. O retrato dele que você fez estimulou o seuapreço pela aparência das outras pessoas.Tem produzido esse efeito excelente, entre outros. Devemosvê-la Esta noite, se o rapaz não se tiver esquecido do queficou combinado. - Fala a sério? - Muito a sério, Basil. Sentir-me-ia incomodado só de pensarque deveria estar mais a sério do que estou neste momento. - Mas você aprova, Harry? - perguntou o pintor, andando deum lado para o outro, e tentando dominar-se. - É impossívelque você aprove. Isso é alguma paixoneta idiota. - Eu agora nunca aprovo nem reprovo nada. É uma atitudeabsurda que se toma em relação à vida. Não fomos postos nestemundo para divulgar os nossos preconceitos morais. Nuncapresto atenção ao que dizem as pessoas vulgares, e nuncainterfiro no que fazem as pessoas encantadoras. Se ficarfascinado por determinada personalidade, ela encantar-me-ásempre, seja qual for o modo de expressão que tomar. DorianGray apaixona-se por uma bela rapariga que faz de Julieta epede-a em casamento. E por que não? Se casasse com Messalina,ele não seria menos interessant. Você sabe que não sou umdefensor do casamento. A verdadeira desvantagem do casamento éo facto de tornar as pessoas tão altruístas. E as pessoasaltruístas são desenxabidas. Falta-lhes personalidade. 88Há, porém certos temperamentos que se tornam mais complexoscom o casamento. Conservam o seu egoísmo, e acrescentam-lhemuitos outros egos. São obrigados a ter mais do que uma vida.Tornam-se mais sumamente organizados, e ser sumamenteorganizado é, a meu ver, o desígnio da existência do homem.Além disso, toda a experiência tem valor e, digam o quedisserem do casamento, ele é seguramente uma experiência.Espero que Dorian Gray- faça desta rapariga sua esposa, aadore apaixonadamente durante seis meses e depois fiquesubitamente fascinado por mais alguém. Ele seria um objecto deestudo fascinante. - Você não acredita numa única palavra do que acaba dedizer, Harry; sabe bem que não. Se a vida de Dorian Gray fossearruinada, ninguém se sentiria mais penalizado do que você.Você é muito melhor do que finge ser. Lord -enry riu-se. - Gostamos de pensar tão bem dos outros porque temos medo denós mesmos. A base do optimismo é simplesmente o terror.Consideramo-nos generosos porque atribuímos ao nossosemelhante o mérito de possuir aquelas virtudes que poderãovir a beneficiar-nos. Tecemos louvores ao banqueiro a fim depodermos sacar a descoberto, e encontramos boas qualidades noassaltante, na esperança de que ele poupe as nossasalgibeiras. Acredito em tudo o que disse. Sinto o maiordesprezo pelo optimismo. Quanto a uma vida arruinada, só o éaquela cujo desenvolvimento é interrompido. Se se quiserestragar o temperamento de alguém, basta reformá-lo. Quanto aocasamento, isso seria um disparate, evidentemente. Mas existemoutros e mais interessantes laços entre homens e mulheres. Porcerto que os encorajarei. Têm o atractivo de estar na moda.Mas veja, o Dorian acaba de chegar. Ele pode informá-lo melhordo que eu. - Meu caro Harry, meu caro Basil, devem felicitar-me! -disse o rapaz, tirando a capa de abas forradas de cetim ecumprimentando os amigos, apertando-lhes a mão. - Nunca estivetão feliz. Claro que foi repentino, mas todas as coisasrealmente agradáveis o são. E, no entanto, parece-me ser aúnica coisa de que andei à procura toda a minha vida. 89 Estava corado de excitação e alegria e extremamente bonito. - Espero que você seja sempre muito felíz, Dorian - disseHallward -, mas não lhe perdoo não me ter comunicado o seunoivado. Comunicou-o a HarrY. - E eu não lhe perdoo por ter chegado atrasado para o jantar- interrompeu Lord Henry, colocando a mão no ombro do rapaz, esorrindo enquanto falava. - Venham,sentemo-nos para saber como é a comida do novo chefe decozinha, e então você vai contar-nos como tudo aconteceu. - De facto não há muito que contar - exclamou Dorian,quando se sentaram à pequena mesa redonda. - Aconteceusimplesmente isto. Depois de o ter deixado ontem à noite,Harry, mudei de roupa, jantei no pequeno restaurante italianoda Rupert Street que você me indicou e fui para o teatro àsoito horas. A Sibyl fazia de Rosalinda. Claro que o cenárioera horrível, e Orlando, absurdo. Ah! Mas Sibyl! Haviam de ater visto! Quando apareceu nas suas roupas de rapazinho era deum encanto extraordinário. Trazia um gibão de veludo cor demusgo com mangas cor de canela, meias estreitas castanhas comligas, uma graciosa boina verde com uma pena de falcão pregadacom uma jóia, e uma capa de capuz forrada de um vermelho mate.Nunca me parecera tão requintada. Tinha toda a graça delicadadaquela estatueta de terracota que você tem no estúdio, Basil.O cabelo emoldurava-lhe o rosto como folhas escuras em voltade uma rosa pálida. Quanto à sua actuação... bem,vão ter ocasião de vê-la esta noite. É simplesmente umaartista nata. Sentado naquele sórdido camarote, senti-metotalmente arrebatado. Esqueci-me que estava em Londres e noséculo XIX. Sentia-me longe com a minha amada, numa florestaque nenhum homem jamais vira. Quando o espectáculo terminou,fui ao camarim falar com ela. Quando estávamos sentados osdois, surgiu de repente nos seus olhos uma expressão que nuncavira antes. Os meus lábios aproximaram-se dos seus.Beijámo-nos. Não sei descrever--lhes o que senti nessemomento. Era como se toda a minha vida se tivesse reduzido aum perfeito ponto de alegria cor-de-rosa. 90Toda ela estremecia e tremia como um narciso branco. Depoispôs-se de joelhos e beijou-me as mãos. Eu sinto que não deviacontar-vos tudo isto, mas não posso evitá-lo.Evidentemente que o nosso noivado é um segredo absoluto. Elanem sequer contou à própria mãe. Não sei o que os meus tutoresirão dizer. Lord Radley vai com certeza ficar furioso. Não meimporto. Já não falta um ano para eu atingir a maioridade. eentão posso fazer o que eu quiser. Fiz bem Basil, nãoconcorda, em ir buscar o meu amor à poesia e encontrar umaesposa nas peças de Shakespeare? Os lábios que Shakespeareensinou a falar murmuraram-me o seu segredo ao ouvido. Osbraços de Rosalinda abraçaram-me, e eu beijei Julieta na boca. - Sim, Dorian, suponho que fizeste bem - disse Hallward,lentamente. - Você viu-a hoje? - perguntou Lord Henry. Dorian Gray negou com movimento de cabeça. - Deixei-a na floresta de Arden, e vou encontrá-la num pomarde Verona. Lord Henry bebericou o seu champanhe de um modo pensativo. - Em que momento exacto mencionou a palavra casamento,Dorian? E o que respondeu ela? É provável que você se tenhaesquecido completamente. - Meu caro Harry, eu não considerei isto como uma transacçãocomercial e não fiz nenhuma proposta formal de casamento.Disse-lhe que a amava, e ela respondeu que não era digna deser minha esposa. Que não era digna! Ora, o mundo inteirocomparado com ela não tem valor algum. - As mulheres são espantosamente práticas - murmurou LordHenry -, muito mais práticas do que nós. Em situações dessegénero nós esquecemo-nos frequentemente de falar em casamento,mas elas fazem-nos lembrar. Hallward pousou a mão no braço dele. 91 - Não continue, Harry. O Dorian ficou ofendido. Ele não écomo os outros homens. Nunca faria ninguém infeliz. Tem umaíndole demasiado delicada. Lord Henry olhou do outro lado da mesa. - O Dorian nunca se ofende comigo - respondeu. - Fiz apergunta pela razão mais plausível, pela única razão que,na verdade, nos desculpa por fazer uma pergunta: simplescuriosidade. Eu tenho uma teoria, segundo a qual são sempre asmulheres a proporem-nos casamento e não nós a propor casamentoàs mulheres. Com excepção, claro, na vida da classe média. Mastambém as classes médias não são modernas. Dorian Gray riu-se, atirando a cabeça para trás. - Você é inteiramente incorrigível, Harry, mas não meimporto. É impossível ficar zangado consigo. Quando vir SibylVane, você sentirá que o homem que a ultrajasse seria umafera, sem coração. Não posso compreender como é que alguémpode querer humilhar o ser que ama. Eu amo Sibyl Vane. Querocolocá-la sobre um pedestal de ouro e ver o mundo venerar amulher que me pertence. O que é o casamento? Um votoirrevogável. É por isso que você fala dele com escárnio. Ah!Não faça zombaria... É um voto irrevogável que eu querocumprir. Sou fiel porque ela confia em mim, sou bom porque elaacredita em mim. Quando estou com ela, lamento tudo o que vocême ensinou. Torno-me diferente daquele que você conheceu.Modifiquei-me, e o simples toque da mão de Sibyl Vane faz-meesquecer de você e de todas as suas erradas, e fascinantes,e venenosas, e deliciosas teorias. - E que são? - perguntou Lord Henry, servindo-se de um poucode salada. - Ora, as suas teorias da vida, e as suas teorias do amor,e as suas teorias do prazer. Em suma, todas as suas teorias,Harry. - O prazer é a única coisa que merece ter uma teoria -respondeu, com a sua voz lenta e melodiosa. - Mas receio nãopoder reivindicar a minha teoria como pertença minha. Elapertence à Natureza e não a mim. 92 93 O prazer é o teste da Natureza, o seu sinal de aprovação.Quando somos felizes somos sempre bons, mas quando somos bonsnem sempre somos felizes. - Ah, mas o que entende você por bons? - exclamou BasilHallward. - Sim - repetiu Dorian como um eco, recostando-se na cadeirae olhando para Lord Henry, por cima dos pesados ramos de írisde lábios púrpura que estavam no centro da mesa -, o queentende você por bons, Harry? - Ser bom é estar de harmonia consigo mesmo - retorquiu ele,tocando no pé delicado do cálice com os seus dedos pálidos efinos. - O conflito é ser obrigado a estar de harmonia com osoutros. O que é importante é a nossa própria vida. Quanto àsvidas dos nossos semelhantes, se desejarmos ser moralistas oupuritanos, podemos alardear as nossas opiniões morais sobreelas, mas elas não nos dizem respeito. Além disso, oindividualismo tem realmente um objectivo mais elevado. Amoralidade moderna consiste em aceitar o modelo da própriaépoca. Considero que uma forma da mais grosseira imoralidade éo facto de qualquer homem de cultura aceitar o modelo da suaépoca. - Mas, certamente, se se vive simplesmente para si mesmo,Harry, paga-se um preço terrível por isso, ou não? -- sugeriuo pintor. - Sim, hoje em dia cobram-nos em excesso por tudo.A meu ver, a verdadeira tragédia dos pobres é a de não poderemdar-se ao luxo de coisa nenhuma senão a auto-recusa. Ospecados belos, como as coisas belas, são privilégio dos ricos. - Há outros processos de pagamentos além do dinheiro. - Que processos, Basil? - Ora, imagino que com o remorso, com o sofrimento,com... bem, com a consciência da degradação. lord Henry encolheu os ombros. - Meu bom amigo, a arte medieval é fascinante, mas asemoções medievais são obsoletas. Podem ser usadas em ficção.evidentemente. Mas, nesse caso, as únicas coisas que podemusar-se em ficção são as que de facto deixaram de ser usadas.Pode crer que um homem civilizado jamais lamenta o prazer, eque um homem incivilizado jamais sabe o que é o prazer. - Eu sei o que é o prazer - afirmou Dorian Gray.- É adorar alguém. - Sempre é melhor do que ser adorado - respondeu ele,brincando com algumas peças de fruta. - Ser adorado é umamaçada. As mulheres tratam-nos exactamente como a Humanidadetrata os seus deuses. Veneram-nos, e depois andam sempre aimportunar-nos com pedidos. - Eu diria antes que tudo o que nos pedem já nos foi dadoprimeiro por elas - murmurou o rapaz, gravemente -, Elas geramem nós o amor. Têm, pois, o direito de o pedir de volta. - É absolutamente verdade, Dorian - concordou Hallward. - Não há nada que seja a verdade absoluta - contestou LordHenry. - Isto é - interrompeu Dorian. - Você tem de admitir,Harry, que as mulheres dão aos homens o verdadeiro ouro dassuas vidas. - É possível - comentou ele, com um suspiro -, mas quereminvariavelmente... a sua restituição em trocos miudinhos. Éisso que se torna preocupante. As mulheres,como dizia, com espírito, um francês, inspiram-nos o desejo derealizar obras-primas, e impedem-nos sempre de as executar. - Harry, como você é horrível! Nem sei por que gosto tantode si. - Há-de gostar sempre de mim, Dorian - replicou ele.- Querem tomar café, meus amigos? - Criado, sirva-nos café, eum bom champanhe, e traga-nos cigarros. Não, cigarros não,ainda tenho alguns. Basil, não posso permitir que fumecharutos. Tem de fumar um cigarro. Um cigarro é o modeloperfeito de um prazer perfeito. É delicioso e deixa-nosinsatisfeitos. Que mais podemos desejar? Como estava a dizer, 94Dorian, você há-de gostar sempre de mim.Represento para si todos os pecados que nunca teve coragem decometer. - Não diga disparates, Harry! - exclamou o rapaz acendendo um cigarro na chama de um dragão de prata quesoprava fogo, e que o criado tinha pousado em cima da mesa. -Vamos para o teatro. Quando Sibyl aparecer no palco, você teráum novo ideal de vida. Ela representará para si algo que nuncaconheceu. - Já conheci tudo - disse Lord Henry, com um olhar fatigado- e estou sempre pronto para uma nova emoção.- Mas suponho que, pelo menos para mim, isso não existe.Mesmo assim, pode ser que a sua admirável rapariga me façavibrar. Adoro teatro. É muito mais real do que a vida.Vamos, então. Dorian, você vem comigo. Lamento muito,Basil, mas só há lugar para dois na berlinda. Você vai ter queseguir-nos de fiacre. Levantaram-se e vestiram os casacos, bebendo o café de pé. Opintor estava silencioso e preocupado. Dominava-o uma certamelancolia. Este casamento era-lhe insuportável,e, no entanto, parecia-lhe preferível a muitas outras coisasque poderiam ter acontecido. Uns minutos depois, passaram aoandar inferior. Hallward seguiu sozinho, como fora combinado,e via as luzes brilhantes da pequena berlinda que ia à suafrente. Apoderou-se dele uma estranha sensação de perda.Sentia que Dorian Gray nunca voltaria a ser para si tudo o quehavia sido no passado. A vida interpusera-se entre eles. Osolhos toldaram-se-lhe, e via como numa névoa as ruasmovimentadas e iluminadas.Quando o fiacre parou ao chegar ao teatro, tinha a impressãode ter envelhecido. Capítulo VII Por qualquer razão, a casa estava cheia nessa noite, e ogordo empresário judeu recebeu-os à porta, exibindo um sorrisotrémulo e untuoso de orelha a orelha. Acompanhou-os aocamarote com exagerada humildade, gesticulando com as mãosgordas e cobertas de jóias, e falando muito alto. Dorian Grayabominou-o mais do que nunca.Era como se tivesse vindo à procura de Miranda e tivesseencontrado Caliban. Lord Henry, pelo contrário, gostoubastante dele. Pelo menos, assim o manifestou: insistiu emapertar-lhe a mão, asseverando-lhe que tinha orgulho emconhecer um homem que descobrira um verdadeiro génio e que searruinara por um poeta. Hallward distraía-se a observar aspessoas da plateia. O calor era sufocante, e um sol abrasadordardejava como dália gigante de pétalas de fogo. Os jovens dagaleria superior tinham despido os casacos e os coletes etinham-nos pendurado ao lado. Falavam uns para os outros deuma ponta à outra do teatro e comiam laranjas, que repartiamcom as raparigas espalhafatosas a seu lado sentadas. Algumasmulheres, de vozes estridentes e dissonantes, riam na plateia.Do bufete chegava o ruído das rolhas a saltarem das garrafas. - Que estranho lugar para uma deusa! - observou Lord Henry. - Foi aqui, sim! - respondeu Dorian Gray. - Foi aqui que aencontrei, e ela é um ser divino acima de todo o ser vivente.Quando está a representar esquecemo-nos de tudo. Estas pessoasvulgares, grosseiras, de rostos rudes e gestos abrutalhados,transformam-se radicalmente, quando ela está em cena. Ficam aolhar atentamente e em silêncio. Ela fá-los rir e chorar a seubel-prazer. Ela põe-nos tão sensíveis como um violino. 96Dá-lhes espiritualidade, e sentimos que são tão humanos comonós. - Tão humanos como nós! Espero bem que não! - exclamou LordHenry, que passava os olhos pelos ocupantes da galeriasuperior através dos seus binóculos de teatro. - Não dê importância ao que ele diz, Dorian - disse opintor. - Eu sei o que você quer dizer e acredito nestarapariga. Qualquer pessoa que você ame deve ser maraviLhosa, equalquer rapariga que cause em si o efeito que descreve deveser requintada e nobre. Espiritualizar a sua época é algo quevale a pena fazer. Se esta rapariga consegue transmitir umaalma aos que têm vivido privados de uma alma, se conseguecriar o sentido da beleza em pessoas de vidas sórdidas eexecráveis, se consegue extirpar-lhes o egoísmo eprovocar-lhes lágrimas pelo sofrimento alheio,ela é digna da sua veneração, digna da veneração de todo omundo. É um casamento perfeito. A princípio eu não pensavaassim, mas agora aceito-o. Os deuses criaram Sibyl Vane parasi. Sem ela, você estaria incompleto. - Obrigado, Basil - respondeu Dorian Gray, apertando-lhe amão. - Sabia que havia de me compreender. O Harry é tão cínicoque me apavora. Olha, chegou a orquestra. É péssima, mas sótoca durante cerca de cinco minutos. Depois o pano sobe, evereis a rapariga a quem vou dar toda a minha vida, a quem deitudo o que há de bom em mim. Um quarto de hora depois, por entre o estrondo dos aplausos,Sibyl Vane deu entrada no palco. Sim, era de facto linda, umadas criaturas mais bonitas que jamais vira,pensou Lord Henry. Tinha um pouco da graça tímida e do olharassustado de uma corça. Subiu-Lhe ao rosto um leve rubor, comoo reflexo de uma rosa num espelho de prata,quando viu a casa cheia de um público entusiasmado. Recuoualguns passos e os lábios pareciam tremer. Basil Hallwardpôs-se de pé num salto e começou a aplaudir. Imóvel,como num sonho, Dorian Gray ficou sentado a contemplá-la. LordHenry perscrutava através dos binóculos,murmurando "Encantadora! Encantadora!" 97 A cena passava-se no átrio da casa dos Capuleto, e Romeu,trajado de peregrino, tinha entrado com Mercúcio e os outrosamigos. A orquestra tocou alguns compassos de música e o bailecomeçou. Por entre o conjunto de actores desajeitados,pobremente vestidos, Sibyl Vane movimentava-se como umacriatura de um mundo mais requintado.Ao dançar, movia o corpo como uma planta que oscila na água. Alinha do pescoço era a de um lírio branco. As mãos pareciam defrio marfim. No entanto, estava surpreendentemente apática. Não mostrouqualquer sinal de alegria, quando os seus olhos pousaram emRomeu. As poucas linhas que tinha de dizer: Good pilgrim. you do wrong your hand too much, Which mannerly devotion shows in this, For saints have hands That pilgrims' hands do tou And palm to palm is holy palmers kiss. com o breve diálogo que se Lhe segue, foram ditas de umamaneira completamente artificial. A voz era delicada, mas otom totalmente inadequado. Estava no timbre errado.Roubava aos versos toda a emoção. Não transmitia veracidade àpaixão. Dorian Gray empalidecia ao contemplá-la. Estava confuso eangustiado. Nenhum dos dois amigos ousava dizer-lhe qualquercoisa. Ela pareceu-lhes absolutamente incompetente. Ficaramterrivelmente decepcionados. Sentiam, porém, que o verdadeiro teste de qualquer Julieta éa cena do balcão no segundo acto. Ficaram aguardando. Se elafracassasse aí, então só mostraria que não tinha valor algum. Estava sedutora no momento em que apareceu ao luar.Era um facto inegável. *1. Bom romeiro, fazeis injustiça à vossa mão, / Que cortêsdevoção em seu gesto vem mostrar, / Os santos têm mãos que osromeiros tocar vão,! E as palmas juntas são dos romeiros seu beijar. (N. da T.) 98Mas a teatralidade da sua representação era insuportável epiorava à medida que ela continuava. Os gestos tornaram-seabsurdamente artificiais. Colocava uma ênfase exagerada emtudo o que dizia. A passagem tão bela: Thou knowest the mask of night is on my face Else would a maiden blush bepaint my cheek For that Which thou hast heard me speak tonight. foi declamada com a penosa precisão de uma menina de escolaque foi ensinada a recitar por um professor de declamação desegunda ordem. Quando se debruçou no balcão e chegou àquelesmaravilhosos versos: Although I joy in thee I have no joy in this contract tonight: It is too rash, too unadvised, too sudden; Too like the lightning, which woth cease to be Ere one can say, It lightens. Sweet, goodnight! This but of love by summers ripening breath May prove a beauteous flower When next we meet! pronunciava as palavras como se não tivessem significadoalgum para ela. Não era nervosismo. Na verdade, longe demostrar nervosismo, manifestava total reserva. Não passava deuma má representação. Foi um completo fracasso. Até o público vulgar e sem instrução da plateia e da galeriaperdeu o interesse pela peça, Mostravam-se impacientes ecomeçaram a falar alto e a assobiar. *1. Não fosse a máscara da noite em meu rosto, / Um castorubor me acudiria à face / Por teres ouvido o que eu disseesta noite(N. da T.) 2. Embora em ti seja meu deleite, / Não me alegra o tratodesta noite / Por tão inesperado, sem aviso, / Como raio quecessa ainda antes / De nomeado. Boa noite, querido! / Tomandodo Verão seu sazonar, / Que este botão de amor seja florido /Quando aqui nos volvermos a encontrar. (N. da T.) 99O judeu, que estava de pé ao fundo do balcão, batia com o pé epraguejava enfurecido. A única pessoa impassível era a própriarapariga. Quando terminou o segundo acto ouviu-se uma vaia deassobios, e Lord Henry levantou-se e vestiu o casaco. - Ela é muito bela, Dorian - comentou -, mas não saberepresentar. Vamos embora. - Fico a ver a peça até ao fim - respondeu o rapaz, em tomduro e amargo. - Lamento muito tê-lo levado a desperdiçar umanoite, Harry. Peço aos dois que me desculpem. - Meu caro Dorian, acho que Miss Vane não se sentia bem -interrompeu Hallward. - Havemos de voltar outra noite. - Quem me dera que fosse isso - retorquiu ele. - Mas elaparece-me estar simplesmente insensível e fria. Modificou-secompletamente. A noite passada foi uma grande artista. Estanoite é apenas uma actriz banal e medíocre. - Não fale assim de quem ama, Dorian. O Amor é maismaravilhoso do que a Arte. - Ambos são unicamente formas de imitação - comentou LordHenry. - Mas vamo-nos embora. Dorian, não deve ficar aqui maistempo. Não faz bem à moral de cada um assistir a uma márepresentação teatral. Além disso, suponho que você não vaiquerer que a sua esposa seja actriz.Por isso, que importa que ela faça de Julieta como uma bonecade pau? É muito bonita e, se souber tanto da vida como sabe daarte de representar, ela será uma experiência deliciosa.Existem apenas dois tipos de pessoas que são realmentefascinantes: as que sabem absolutamente tudo e as que nãosabem absolutamente nada. Meu Deus, menino,não ponha esse ar tão trágico! O segredo de manter a juventudeconsiste em nunca ter qualquer emoção que não nos fique bem.Venha até ao clube com Basil e comigo. Fumamos uns cigarros ebebemos à beleza de Sibyl Vane. Ela é bela. Que mais podequerer? - Vá-se embora, Harry - gritou o rapaz. - Quero ficar só.Você também deve ir, Basil. Ah! Não vêem que tenho o coraçãodespedaçado? 100 Os olhos marejaram-se de lágrimas escaldantes. Os lábiostremiam, depois, correndo para o fundo do camarote,encostou-se à parede, escondendo o rosto entre as mãos. - Vamos, Basil - disse Lord Henry, com uma estranha ternurana voz, e os dois jovens saíram juntos. Pouco tempo depois, acenderam-se as luzes da ribalta e subiuo pano para o terceiro acto. Dorian Gray regressou ao seulugar. Estava pálido, com um ar altivo e indiferente.A peça arrastava-se e parecia interminável. Metade do públicosaiu, rindo e caminhando ruidosamente com as suas botasgrossas. Tudo aquilo foi um fiasco. O último acto foirepresentado para uma sala quase vazia. O pano desceu entreroncos e risadas. Assim que tudo terminou, Dorian Gray precipitou-se para osbastidores e entrou no camarim. A rapariga encontrava-se só,ostentando um ar de triunfo. Os olhos fulgiam com uma luzestranha. Toda ela irradiava. Os lábios entreabertos sorriamde um segredo apenas seu. Quando Dorian entrou, olhou para ele com uma expressão deinfinita alegria. - Representei tão mal esta noite, Dorian! - exclamou ela. - Horrivelmente! - respondeu, fitando-a atónito -,horrivelmente! Foi pavoroso. Sente-se indisposta? É que nãofaz a mínima ideia do que foi. Nem... faz ideia do que eusofri. A rapariga sorriu. - Dorian - respondeu ela, demorando-se no nome dele,prolongando musicalmente a voz, como se tivesse um sabor maisdoce do que o mel nas pétalas vermelhas da sua boca -, Dorian,deve ter compreendido. Mas compreende agora, não é assim? - Compreender o quê? - perguntou ele, zangado. - Por que motivo representei tão mal esta noite. Ora,hei-de representar sempre mal. Pois nunca mais hei-derepresentar bem. Ele encolheu os ombros. - A Sibyl deve estar doente. Quando não se sente bem, 101não deveria representar. Expõe-se ao ridículo. Os meus amigosestavam incomodados. Eu estava incomodado. Ela parecia que não o estava a ouvir. A alegriatransfigurava-a. Dominava-a um êxtase de felicidade. - Dorian, Dorian - exclamou -, antes de. o conhecer, oteatro era a única realidade da minha vida. Só no teatro é queeu vivia. Pensava que era tudo verdade. Uma noite eraRosalinda, outra noite era Pórcia. A alegria de Beatriz era aminha alegria, e as mágoas de Cordélia eram minhas também.Acreditava em tudo. As pessoas vulgares que comigorepresentavam pareciam-me deuses. Os cenários pintados eram omeu mundo. Eu apenas conhecia sombras, e julgava-as reais. ODorian apareceu - oh, meu formoso amado! - e libertou a minhaalma da prisão. Ensinou-me o que é realmente a realidade. Estanoite, pela primeira vez na vida,apercebi-me da falsidade, da impostura, da idiotice dafantochada oca em que sempre representara. Esta noite, pelaprimeira vez, dei-me conta de que Romeu era horrendo, e velho,e pintado, de que a lua que iluminava o pomar era falsa, deque o cenário era tosco, e de que as... palavras que deviadizer eram irreais, não eram palavras minhas, nem eram o queeu queria dizer. O Dorian trouxe-me algo mais elevado, algo deque toda a arte é somente um reflexo. Fez-me compreender o queé realmente o amor. Meu amor! Meu amor! Príncipe Encantado!Príncipe da vida! Enfastiei-me das sombras. Para mim, o Doriansignifica mais do que toda a arte. O que tenho eu a ver com osfantoches de uma peça? Quando subi ao palco esta noite, nãopude compreender por que já não existia em mim tudo o que eufora antes. Eu supunha que iria representar maravilhosamente.Descobri que não conseguia fazer nada. De súbito,aclarou-se-me o espírito e percebi o significado de tudoaquilo. Foi uma percepção maravilhosa. Ao ouvi-los assobiar,eu sorria. Que poderiam eles saber de um amor como o nosso?Leve-me consigo, Dorian, leve-me consigo para um lugar ondepossamos estar sós. Odeio o palco. Eu podia fingir uma paixãoque não sinto, mas não posso fingir a que me queima como fogo. 102Ah, Dorian, Dorian, compreende agora o significado de tudoisto? Ainda que o pudesse fazer, seria para mim uma profanaçãorepresentar o papel de apaixonada. Foi o Dorian que me fez verisso. Ele atirou-se para o sofá e desviou a cara para o outrolado. - A Sibyl matou o meu amor - balbuciou. Ela olhou-o profundamente espantada, e riu-se. Ele nãorespondeu. Ela aproximou-se dele e afagou-lhe o cabelo com osseus dedos frágeis. Ajoelhou-se e, tomando-lhe as mãos,levou-as aos lábios. Ele retirou-as bruscamente, e estremeceu. Então, levantou-se de pronto e encaminhou-se para a porta. - Sim - gritou ele -, matoú o meu amor. Costumava excitar aminha imaginação. Agora nem sequer excita a minha curiosidade.Não exerce qualquer efeito em mim.Eu amava-a porque era maravilhosa, porque possuía génio einteligência, porque realizava os sonhos dos grandes poetas edava forma e substância às sombras da arte. Agora deitou tudoa perder. É fútil e estúpida. Meu Deus! Que louco fui emamá-la! Como fui idiota! A Sibyl já nada representa para mim.Não voltarei a vê-la jamais... Jamais pensarei em si. Jamaispronunciarei o seu nome. Não pode imaginar o que era para mimantes. Bem, antes...Oh! Não posso suportar tal pensamento! Quem me dera que nuncaa tivesse visto. Destruiu o sonho de amor de toda a minhavida. Pouco sabe de amor quando diz que ele prejudica a suaarte! Sem a sua arte, a Sibyl não vale nada. Eu podia torná-lacélebre, esplêndida, magnífica. O mundo tê-la-ia idolatrado, eeu ter-Lhe-ia dado o meu nome. O que é a Sibyl agora? Umaactriz de terceira categoria com uma cara bonita. A rapariga empalideceu, e tremia. Apertou as mãos uma naoutra, e a voz embargou-se. - Não está a falar a sério, Dorian, pois não? - murmurou. -Está a representar. 103 - Representar! Isso cabe-lhe a si. E sabe fazê-lo tão bem -respondeu ele, amargamente. Ela ergueu-se e, com uma comovente expressão de dor,chegou perto dele. Pousou a mão no seu braço e fitou-o nosolhos. Ele empurrou-a. - Não me toque! - gritou. Ela gemeu baixinho, e lançou-se-lhe aos pés, e ali ficou,como uma flor espezinhada. - Dorian, Dorian, não me abandone! - disse ela, nummurmúrio. - Lamento tanto não ter representado bem.Eu pensava em si o tempo todo. Mas vou tentar, prometo quevou. O meu amor por si arrebatou-me tão inesperadamente. Creioque nunca o teria sentido se não me tivesse beijado. se nuncanos tivéssemos beijado. Beije-me mais uma vez, meu amor. Nãome deixe. Isso eu não poderia suportar. Oh! Não me deixe... Omeu irmão... Não, não tem importância... Ele não falava asério. Foi só de brincadeira. Mas, Dorian, não poderáperdoar-me por esta noite? Hei-de trabalhar aplicadamente etentar aperfeiçoar-me. Não seja cruel comigo porque o amo maisque tudo neste mundo. Além disso, foi só desta vez que não Lheagradei. Mas tem razão, Dorian. Eu deveria ter mostrado mais aartista que há em mim. Foi uma loucura o que fiz, mas foi maisforte do que eu. Oh! Não me abandone, não me abandone. Soluçava convulsivamente. Estava dobrada no chão como animalferido. Dorian Gray fitou-a com os seus bonitos olhos, econtorceu os delicados lábios numa expressão de desdém. Hásempre qualquer coisa de ridículo nas emoções das pessoas quedeixámos de amar. A seu ver,Sibyl Vane era ridiculamente melodramática: As suas lágrimas eos soluços irritavam-no. - Vou-me embora - disse, por fim, numa voz calma e nítida. -Não gostaria de ser indelicado, mas não posso voltar a vê-la.Desiludiu-me. Ela chorava em silêncio e não lhe respondeu, mas foi-seaproximando mais. Estendeu às cegas as pequeninas mãos, 104como que à sua procura. Ele deu meia volta e saiu do camarim.Não demorou muito a sair do teatro. Mal sabia para onde dirigia os seus passos. Lembrava-se deter vagueado por ruas escuras, de ter passado sob arcadaslúgubres e sombrias e por casas sórdidas. Mulheres de vozesroucas e gargalhadas estridentes chamavam-no. Passavam, acambalear, bêbados que praguejavam e falavam sozinhos, maisparecendo gorilas monstruosos. Vira crianças grotescasamontoadas nos degraus das casas e ouvira guinchos eblasfémias vindos de pátios lôbregos. Ao romper da madrugada, encontrava-se perto do CoventGarden. As trevas dissiparam-se e, enrubescido por pálidosclarões de fogo, o céu arredondou-se numa pérola perfeita.Carroças enormes, carregadas de lírios balouçantes,estrondeavam vagarosamente pela calçada polida e deserta. O arestava saturado do perfume das flores, cuja beleza pareciatrazer-lhe um antídoto para o seu sofrimento.Entrou no mercado e começou a observar os homens adescarregarem as carroças. Um carreteiro de bata brancaofereceu-lhe cerejas. Agradeceu-lhe e, admirado de ele terrecusado aceitar dinheiro por elas, começou a comê-lasdistraidamente. Tinham sido colhidas à meia-noite, eentranhara-se nelas o frio do luar. Uma longa fila de rapazes,carregando grades de túlipas raiadas e de rosas vermelhas eamarelas, desfilou em frente dele, abrindo caminho por entreenormes pilhas de vegetais de um verde-jade. Sob o pórtico decolunas cinzentas descoradas pelo sol, um grupo de raparigasdesmazeladas e de cabeça descoberta aguardava que terminasse alota. Outras apinhavam-se à volta da porta giratória do cafédo Plazza. Os pesados cavalos das carroças escorregavam ebatiam com as patas no empedrado irregular, fazendo sacudir osguisos e os arreios. Sobre uma pilha de sacas, dormiam algunscarroceiros. Os pombos, de pescoços irisados e patas rosadas,corriam de um lado para o outro debicando sementes. Pouco tempo depois, ele chamou um fiacre e dirigiu-se paracasa. 105 Deteve-se por uns momentos à porta a contemplar a praçasilenciosa, de inexpressivas janelas cerradas e persianasestáticas. O céu era agora de pura opala, e os telhados dascasas brilhavam como prata. De uma chaminé em frente saía umaténue espiral de fumo, que se enroscava como uma fita liláspelo ar cor de nácar No imponente vestíbulo forrado de madeirade carvalho, pendia do tecto uma enorme lanterna dourada deVeneza - dos despojos da barca de algum doge -, onde ardiamainda três luzes bruxuleantes: pareciam pétalas transparentesde chama azul com orlas de fogo branco. Ele apagou-as e,atirando o chapéu e a capa para cima da mesa, atravessou abiblioteca em direcção à porta do quarto, um espaçoso aposentooctogonal no rés-do-chão que, devido à sua recente predilecçãopelo fausto, acabara de mandar decorar para si, ornamentando-ocom originais tapeçarias renascentistas que tinham sidoencontr adas arrumadas num sótão abandonado em Selby Royal.Quando fazia rodar o puxador da porta, os olhos depararam como seu retrato pintado por Basil Hallward. Recuousobressaltado, como que surpreendido. Em seguida, um poucoperplexo, foi entrando para o quarto.Depois de ter retirado a botoeira do casaco, pareceu hesitar.Por fim, voltou atrás, aproximou-se do retrato e examinou-o. Àfraca claridade da luz que conseguia passar através dosestores de seda creme, afigurava-se-lhe um pouco alterado. Aexpressão estava diferente. Dir-se-ia que havia um laivo decrueldade na boca. Era deveras estranho. Voltou-se, caminhou para a janela e subiu o estore. Oesplendor do amanhecer invadiu a sala e varreu as fantásticassombras para cantos escuros, onde ficaram tremendo.Mas a curiosa expressão que notara no rosto do retrato pareciater permanecido, ter-se acentuado ainda mais. A luz trémula ecandente do sol revelava-lhe os traços de crueldade quecontornavam a boca tão nitidamente como se estivesse a ver-senum espelho, depois de ter cometido alguma acção terrível. Estremeceu e, retirando de cima da mesa um espelho oval 106emoldurado por Cupidos de marfim - mais um dos muitospresentes de Lord Henry -, lançou um rápido olhar ao maisfundo da superfície polida. Não viu traços como aqueles adistorcerem-lhe os lábios rubros. Que significava aquilo? Esfregou os olhos, aproximou-se do retrato e examinou-o denovo. Não via indícios de qualquer alteração quando olhavapara a pintura em si, e, no entanto, não tinha dúvida algumade que toda a expressão se modificara.Não se tratava de pura fantasia sua. Aquilo era de umaevidência horrível. Afundou-se numa poltrona, e começou a pensar. De repente,veio-lhe à memória o que havia dito no atelier de BasilHallward no dia em que o retrato fora acabado. Sim,lembrava-se perfeitamente. Proferira o extravagante desejo dequerer ficar sempre jovem e de ser o retrato a envelhecer, deque a sua beleza permanecesse imaculada e que fosse a carapintada na tela a suportar o peso das suas paixões e dos seuspecados, de que a imagem pintada fosse marcada pelas rugas dosofrer e do pensar e que ele mantivesse toda a delicadafrescura e beleza da sua mocidade, de que só então tomaraconsciência. Ter-se-ia cumprido o seu desejo? Essas coisaseram impossíveis! Só pensar nelas era monstruoso. E, todavia,ali estava, mesmo à sua frente, o retrato com o ricto decrueldade nos lábios. Crueldade! Tinha sido cruel? A culpa foi da rapariga, e nãodele. Imaginara-a uma grande artista, dera-lhe o seu amor,porque a julgara extraordinária. E então ela decepcionara-o.Fora fútil e desprezível. Porém, assaltou-o um sentimento deinfinito remorso, ao recordar-se dela prostrada a seus pés,chorando como uma criança. Recordou-se da indiferença com quepara ela olhara. Por que nascera ele assim? Por que Lhe foradada uma alma como a sua? Mas ele também sofreu. Durante astrês horas terríveis que a peça durara, vivera séculos desofrimento, eternidades de tortura. A sua vida valia bem maisdo que a vida dela. Ela magoara-o por um momento, ainda queele a tivesse magoado para sempre. Além do mais, as mulherestinham melhor preparação para o sofrimento do que os homens. 107Viviam das próprias emoções, só pensavam nas suas emoções.Possuíam amantes pela simples razão de ter alguém com quempudessem armar um escândalo. Dissera-lho Lord Henry, e LordHenry sabia como eram as mulheres. Por que haveria de sepreocupar com Sibyl Vane? Ela agora nada valia para ele. Mas o retrato? Como explicar aquilo? Continha o segredo dasua vida e revelava a sua história. Ensinara-lhe a amar a suaprópria beleza. Ensinar-Lhe-ia a odiar a própria alma? Teriacoragem de voltar a encarar o retrato? Não, não podia ser verdade, não era mais do que umaalucinação fabricada pelo distúrbio dos sentidos. A horrívelnoite que ele passara deixou atrás de si alguns fantasmas. Oseu cérebro fora subitamente atingido por aquela minúsculapartícula escarlate que enlouquece os homens. O retrato nãomudara. Era loucura pensar que sim. E, no entanto, lá estava a observá-lo, o belo rostodesfigurado de sorriso cruel. O brilho dourado dos cabeloscintilava aos primeiros raios de sol. Os olhos azuisencontraram-se com os seus, e apoderou-se dele uma sensação deinfinita piedade, não por si, mas pela imagem pintada de si.Já se tinha alterado e havia de continuar a sofrer alterações.O ouro dos cabelos tornar-se-ia baço até ficar grisalho, e asrosas brancas e vermelhas das faces feneceriam. Por cadapecado que cometesse, nova mácula iria marcar e arruinar a suabeleza. Mas ele não pecaria. O retrato, alterado ouinalterado, seria para ele o emblema visível da suaconsciência.Resistiria à tentação. Deixaria de se encontrar com LordHenry, pelo menos, não daria ouvidos às suas subtis teoriasvenenosas que, no jardim de Basil Hallward, tinham,pela primeira vez, despertado dentro de si a paixão pelascoisas impossíveis. Voltaria para Sibyl Vane, compensá-la-iapelo mal que lhe fizera, casaria com ela e tentaria voltar aamá-la. Sim, era seu dever fazê-lo. Ela de certo sofreu maisdo que ele. Pobre menina! Tratara-a com egoísmo e crueldade. Ofascínio que exercera sobre ele havia de voltar. 108Iriam ser felizes os dois. Teria com ela uma vida bela e pura. Levantou-se e arrastou um grande biombo que colocou emfrente do retrato, estremecendo ao olhar para ele. - Que horrível! - murmurou. Depois foi até à porta envidraçada e abriu-a. Quando pisou arelva do jardim, respirou fundo. O ar puro da manhã pareciadissipar todas as suas paixões sombrias.Pensava somente em Sibyl. Sentiu um débil eco do amor quesentira por ela. Pronunciou repetidas vezes o seu nome. Ospássaros que cantavam no jardim húmido de orvalho pareciamfalar dela às flores. Capítulo VIII Passava muito do meio-dia quando acordou. Já várias vezeso criado entrara sorrateiramente no quarto, pé ante pé, paraver se ele estava acordado, magicando por que motivo o seujovem patrão estaria a dormir até tão tarde.Ouviu finalmente tocar a campainha. Victor entrou no quarto demansinho, levando uma chávena de chá e uma rima de cartassobre um pequeno tabuleiro de antiga porcelana de Sèvres, eafastou as cortinas de cetim cor de azeitona, forradas de umazul cintilante, que cobriam as três altas janelas. - Vejo que monsieur dormiu bem esta manhã - disse ele,sorrindo. - Que horas são, Victor? - perguntou Dorian Gray, aindasonolento. - Uma hora e um quarto, Monsieur. Tão tarde! Sentou-se na cama e, depois de uns goles de chá,pegou nas cartas. Uma era de Lord Henry e tinha sido entregueem mão essa manhã. Hesitou um instante, depois pô-la de lado.Abriu as outras com indiferença. Continham a habitual colecçãode cartões, convites para jantar, bilhetes para exposiçõesprivadas, programas de concertos de caridade, e outras coisasdo género, que chovem todas as manhãs sobre os jovens da altasociedade durante a temporada. Havia ainda uma facturabastante avultada, referente a um conjunto de toucador Luís XV- com embutidos de prata, e que ainda não se atrevera a enviaraos seus tutores, pessoas extremamente antiquadas que não seapercebiam que vivemos numa época em que as coisas inúteis sãoas nossas únicas necessidades, havia várias mensagens,redigidas com a máxima cortesia, dos agiotas de Jermon Street, 110que se ofereciam a adiantar a quantia desejada em qualquermomento e a juros extremamente razoáveis. Uns dez minutos depois, levantou-se e, envolvendo-se numroupão de caxemira de lã lavrado a seda, passou à casa debanho de pavimento de ónix. A água fria refrescou-o depois deum sono tão prolongado. Parecia haver esquecido tudo o que sepassara consigo. Assaltou-o uma ou duas vezes a vaga sensaçãode ter participado numa estranha tragédia mas tudo isso envolvido pela atmosfera irreal de um sonho. Assim que se vestiu, passou à biblioteca para tomar umligeiro pequeno-almoço à francesa, que havia sido servido numapequena mesa redonda próximo da janela aberta. Estava um diaexcepcional. O ar tépido parecia impregnado de especiarias.Uma abelha voou para dentro da sala e zumbiu em redor da taçadragão azul cheia de rosas amarelas, que se encontrava à suafrente. Sentia-se completamente feliz. De repente, o olhar incidiu no biombo que havia colocado emfrente do retrato, e estremeceu. - Muito frio, Monsieur? - perguntou-lhe o criado, servindouma omeleta. - Fecho a janela? Dorian abanou a cabeça. - Não tenho frio - disse num murmúrio. Era mesmo verdade? Havia sido real a alteração do retrato?Ou fora apenas a sua imaginação que o levara a ver umaexpressão de maldade onde havia uma expressão de alegria?Certamente que uma tela pintada não podia mudar! Era absurdo.Ora aí estava uma bela história para contar um dia a Basil, eque o havia de fazer sorrir. E, mesmo assim, como era nítida a lembrança de tudo o que sepassara! Primeiro, na obscuridade da penumbra,e depois à luz clara do amanhecer, vira o ricto de crueldadenos lábios contorcidos. Quase temia que o criado abandonasse asala. Sabia que, logo que ficasse só, não resistia eexaminaria o retrato. Temia a certeza. Quando o criado, apóster trazido o café e os cigarros, se voltou para sair, sentiuuma vontade irresistível de lhe dizer que ficasse. No mesmoinstante em que a porta se fechava, chamou-o de novo. 111O homem parou, aguardando ordens.Dorian olhou-o por um breve instante. - Não estou em casa para ninguém, Victor - disse-Lhe,dando um suspiro. O criado fez uma vénia e retirou-se. Então, Dorian ergueu-se da mesa, acendeu um cigarro eestendeu-se num sofá sumptuosamente almofadado que estava defrente para o biombo. O biombo era antigo, de couro dourado deEspanha, gravado e lavrado com motivos Luís XIV- um tantofloreados. Examinou-o com alguma curiosidade, interrogando-sese alguma vez teria ocultado o segredo da vida de um homem. Afinal, deveria desviá-lo para o lado? E por que não havíade o deixar onde estava? De que valia saber? Se aquilo eraverdade, era terrível. Se não era verdade, porquêpreocupar-se? Mas o que aconteceria se, por um acaso dodestino ou uma fatalidade, outros olhos que não os seusespreitassem por detrás do biombo e vissem a medonhatransformação? Que faria se Basil Hallward viesse pedir-lhepara ver o seu quadro? De certeza que Basil Lhe iria pedirisso.Não, aquilo tinha de ser examinado, e imediatamente. Fosse oque fosse seria preferível àquela dúvida atroz. Levantou-se e fechou à chave as duas portas. Pelo menosestaria só quando enfrentasse a máscara da sua vergonha.Afastou então o biombo e ficou frente a frente consigo mesmo.Era absolutamente verdade. O retrato tinha mudado. Como muitas vezes se havia de lembrar mais tarde, e semprecom profundo espanto, começou por fixar o retrato com uminteresse quase científico. Afigurava-se-lhe incrível que talmudança tivesse ocorrido. E, todavia, era um factoirrefutável. Haveria alguma misteriosa afinidade entre osátomos químicos que assumiam forma e cor na tela e a alma quedentro de si existia? Seria possível que eles tivessem apercepção de tudo o que a alma pensava? Que dessem realidadeao que ela sonhava? Ou existiria outra razão mais terrívelainda? Estremeceu, atemorizado, e voltou a estender-se nosofá, fitando o retrato numa náusea de horror. 112 Uma coisa, porém, reconhecia que o retrato fizera por ele.Levara-o a aperceber-se de quão injusto e cruel fora para comSibyl Vane. Ainda estava a tempo de reparar o mal que fizera.Ela ainda podia ser sua esposa. O amor irreal e egoísta quesentira antes submeter-se-ia a uma influência superior,transformar-se-ia numa paixão mais nobre, e o seu retratopintado por Basil Hallward servir-lhe-ia de guia ao longo davida, seria para si o que as coisas sagradas são para algumaspessoas, e o que a consciência é para outras, e o que o temora Deus é para todos nós. Havia narcóticos para o remorso,havia drogas para fazerem adormecer os princípios morais. Masele tinha sempre presente um símbolo visível da degradação dopecado, um sinal imperecível da ruína que os homens infligiamàs suas almas. Bateram as três horas, e as quatro, e soou a dupla badaladada meia hora, sem que, entretanto, Dorian Gray esboçassequalquer movimento. Procurava juntar os fios escarlates da suavida e entrelaçá-los, encontrar o caminho no labirintosanguíneo de paixões em que se perdia. Não sabia o que fazer,nem o que pensar. Por fim, dirigiu-se para a mesa e escreveuuma carta apaixonada à rapariga que amara, a suplicar-Lhe quelhe perdoasse, e acusando-se de estar louco. Encheu páginas epáginas de veementes protestos de arrependimento e depalavras, ainda mais veementes, expressando a sua mágoa. Aauto-recriminação é um luxo.Quando nos autocensuramos, temos a sensação de que maisninguém tem o direito de nos censurar. É a confissão,e não o sacerdote, que nos dá a absolvição. Depois de terterminado a carta, Dorian sentiu-se perdoado. De repente bateram à porta, e ouviu do outro lado a voz deLord Henry. - Meu rapaz, preciso de o ver. Deixe-me entrarimediatamente. Não suporto que se enclausure assim. A princípio não deu resposta alguma, e permaneceu emabsoluto silêncio. As pancadas na porta continuavam,tornando-se cada vez mais fortes. 113Bem, era preferível deixar entrar Lord Henry, e explicar-lhe anova vida que ia levar, e discutir com ele se fosse necessáriodiscutir, e separarem-se se a separação fosse inevitável.Levantou-se lesto, ocultou apressadamente o retrato com obiombo e abriu a porta. - Lamento muito o que aconteceu, Dorian - disse Lord Henry,ao entrar. - Mas não pense muito no assunto. - Está a referir-se a Sibyl Vane? - perguntou o rapaz. - Claro que estou - respondeu Lord Henry, afundando-se numapoltrona e descalçando vagarosamente as luvas amarelas. - Deum certo ponto de vista, é horrível, mas você não teve culpa.Foi ter com ela ao camarim quando a peça terminou? - Fui. - Eu tinha a certeza. E fez-lhe alguma cena? - Fui brutal, Harry, absolutamente brutal. Mas já passou.Não lamento nada do que aconteceu. Ensinou-me a conhecer-memelhor. - Ah, Dorian, muito me alegra saber que encara as coisasdessa maneira! Receava vir encontrá-lo num poço de remorsos, aarrancar esse seu lindo cabelo anelado. - Ultrapassei já tudo isso - disse Dorian, abanando a cabeçae sorrindo. - Sinto-me agora completamente feliz. Em primeirolugar, sei o que é a consciência. Não é nada daquilo que vocême dizia. É a coisa mais sublime que existe dentro de nós. Nãoseja sarcástico a respeito disto, Harry, nunca mais, pelomenos, não o seja na minha presença. Quero ser bom. Nãosuporto a ideia de possuir uma alma hedionda. - Ora aqui temos um encantador fundamento artístico para aética, Dorian! Os meus parabéns. E pode saber-se como vaicomeçar? - Casando com Sibyl Vane. - Casar com Sibyl Vane! - exclamou Lord Henry, pondo-se depé e fitando-o, profundamente estupefacto - Mas, meu caroDorian... - Sim, Harry, já sei o que me vai dizer. Certamente coisashorríveis acerca do casamento. Não diga. 114Nem sequer volte a dizer-me as coisas do costume. Há dois diaspedi a Sibyl que casasse comigo. Não vou faltar à minhapalavra.Ela tem de ser minha esposa! - Sua esposa! Mas, Dorian. Não recebeu a minha carta?Escrevi-lha esta manhã e mandei-a pelo meu criado. - A sua carta? Ah, sim, já me lembro. Ainda não a li,Harry. Receei que tivesse alguma coisa de que não gostasse.Você retalha a vida em pedacinhos com o seus epigramas. - Então você não sabe nada? - Que quer dizer com isso? Lord Henry atravessou a sala e, sentando-se junto de DorianGray, pegou-Lhe nas mãos e apertou-as com força. - Dorian - disse então -, a minha carta... não se assuste.era para lhe comunicar que Sibyl Vane morreu. Um brado de dor irrompeu dos lábios do rapaz, que selevantou de um salto, retirando violentamente as mãos das deLord Henry. - Morreu! Sibyl morreu! Não é verdade! É uma mentiramonstruosa! Como ousa dizer tal coisa? - É realmente verdade, Dorian - disse Lord Henry,gravemente. - Vem publicado em todos os matutinos. Escrevi apedir-Lhe que não recebesse ninguém antes de eu chegar.Evidentemente que vai haver um inquérito, e é preciso que vocênão esteja envolvido. Estas coisas dão prestígio a um homem emParis. Mas em Londres, as pessoas têm tantos preconceitos.Aqui, nunca devemos fazer a nossa estreia na sociedade com umescândalo. Devíamos deixar isso de reserva para dar alguminteresse à nossa velhice. Bem, não conhecem o seu nome noteatro, creio. Se assim for, não há problema. Alguém o viu adirigir-se para o camarim dela? Este é um ponto importante. Durante álguns instantes, Dorian não respondeu. Ficaraaturdido pelo horror da notícia. Por fim, balbuciou numa vozabafada. - Harry, você falou em inquérito? O que quis dizer com isso?Será que Sibyl?... Oh, Harry, não posso suportar tal ideia...Mas não demore. Conte-me tudo imediatamente. 115 - Não duvido de que não se tratou de um acidente, Dorian,embora seja essa a versão destinada ao público. Segundoconsta, quando ela ia a sair do teatro com a mãe, eraaproximadamente meia-noite e meia, disse que se esquecera deuma coisa. Esperaram algum tempo, mas ela não regressou.Acabaram por encontrá-la morta no chão do camarim. Tinhaengolido qualquer coisa por engano, uma dessas coisashorríveis que usam no teatro. Não sei o que era, mas continhaácido prússico ou alvaiade. Eu diria que era ácido prússico,pois parece que teve morte instantânea. - Harry, Harry, que coisa horrível! - exclamou o rapaz. - Sim, realmente é muito trágico, mas você não devedeixar-se envolver. Sei pelo Standard que ela tinha dezasseteanos. Supunha que fosse ainda mais nova. Tinha um ar tãoinfantil e parecia saber tão pouco da arte de representar.Dorian, não deixe que isto lhe afecte os nervos. Tem de virjantar comigo, e a seguir vamos à Ópera. Esta noite canta aPatti e vai lá estar toda a gente. Você pode ir até aocamarote da minha irmã. Ela vai ter por companhia umasmulheres muito elegantes. - Então fui eu quem matou Sibyl Vane - disse Dorian Gray,como que falando consigo mesmo -, e foi tão verdade como seLhe tivesse golpeado com uma faca a delicada garganta. Noentanto, as rosas não deixam de ser menos belas por causadisso. As aves continuam a cantar alegremente no meu jardim. Eesta noite devo jantar consigo, e depois vou à Ópera, e acabopor ir cear em qualquer sítio,suponho. Que extraordinariamente dramática é a vida! Setivesse lido isto num livro, Harry, creio que teria chorado.Não sei porquê, mas agora que aconteceu de facto, e comigo,parece espantoso demais para me provocar lágrimas:Aqui tem a primeira carta de amor apaixonada que escrevi naminha vida. Como é estranho que a minha primeira carta de amorapaixonada fosse dirigida a uma rapariga morta.Será que esses seres brancos e silenciosos a que chamamosmortos podem sentir? Sibyl! Poderá sentir, saber ou ouvir? Oh, 116Harry, como eu a amava! Tenho a sensação de que se passou háanos. Ela era tudo para mim. Depois aconteceu aquela noitefatídica. foi realmente apenas na noite passada?. em que elarepresentou tão mal, que o meu coração ficou quase destroçado.Ela deu-me todas as justificações.Foi uma cena terrivelmente patética. Mas não me comovi nem umpouco. Achei-a fútil. Aconteceu então, de repente,uma coisa que me atemorizou. Não lhe posso dizer o que foi,mas foi algo terrível. Eu disse que voltaria para ela, sentiaque procedera mal. E agora ela está morta. Meu Deus! Meu Deus!Harry, que hei-de fazer? Você ignora o perigo em que meencontro, e não há nada que me possa valer. Ela tê-lo-iafeito. Não tinha o direito de se matar. Foi um acto deegoísmo. - Meu caro Dorian - respondeu Lord Henry, tirando um cigarroda cigarreira e puxando de uma fosforeira dourada -, a únicamaneira de uma mulher poder alguma vez regenerar um homemconsiste em aborrecê-lo tanto, que ele perde todo o interesseque possa ter pela vida. Você seria um desgraçado se tivessecasado com essa rapariga. É certo que teria sido atenciosopara com ela. Podemos ser sempre atenciosos com as pessoas porquem não nos interessamos. Mas em pouco tempo ela haveria dechegar à conclusão de que você Lhe era completamenteindiferente.E quando uma mulher chega a essa conclusão a respeito domarido, ou se torna pavorosamente desmazelada, ou passa a usartoucas muito elegantes pagas pelo marido de outra mulher. Nemsequer falo do erro social, que teria sido humilhante, e que,evidentemente, eu não teria permitido.Mas pode ter a certeza de que tudo isso teria sido um completofracasso. - Creio que sim - murmurou o rapaz, passeando nervosamentepela sala, horrivelmente pálido. - Mas pensei que esse era omeu dever. Não tenho culpa de que esta terrível tragédia metenha impedido de fazer o que era correcto.Recordo-me de me ter dito uma vez que há uma fatalidade nasboas resoluções: são tomadas sempre demasiado tarde.As minhas foram-no, de certeza. 117 - As boas resoluções são sempre tentativas inúteis para seinterferir nas leis científicas. Na sua origem está a puravaidade. O seu resultado é um zero absoluto. Dão-nos,uma vez ou outra, algumas daquelas estéreis emoçõesvoluptuosas que para os fracos têm um certo encanto. É tudo oque se pode dizer delas. São apenas cheques que passamos sobreum banco onde não temos conta aberta. - Harry - exclamou Dorian Gray, aproximando-se dele esentando-se a seu lado -, por que será que não consigo sentiresta tragédia tão profundamente como quero? Não me considerodesumano. Acha que sou? - Os disparates que fez nestas duas últimas semanas foramtantos que nem tem direito a esse atributo - respondeu LordHenry, com o seu sorriso doce e melancólico. O rapaz franziu o sobrolho. - Não me agrada essa explicação, Harry - retorquiu ele -,mas agrada-me saber que não me considera desumano. Não sounada disso: Sei que não sou. Porém, sou obrigado a admitir queisto que aconteceu não me afecta como deveria. Vejo-o como umfinal fantástico de uma peça fantástica. Possui toda aterrível beleza de uma tragédia grega,uma tragédia em que desempenhei um papel importante,mas da qual saí incólume. - É uma questão interessante - disse Lord Henry, que tinhaum singular prazer em tirar proveito do egotismo inconscientedo rapaz -, uma questão extremamente importante. Imagino que averdadeira explicação é a seguinte.Sucede frequentemente que as tragédias da vida real ocorrem deum modo tão pouco artístico que somos afectados pela suaviolência brutal, absoluta incoerência, absurda carência designificado e total falta de estilo. Afectam-nos exactamentedo mesmo modo que a grosseria. Transmitem-nos uma merasensação de força bruta, pelo que nos sentimos revoltados. Porvezes, porém, surge na nossa vida uma tragédia que possuielementos artísticos de beleza. Se esses elementos de belezasão reais, todo o dramatismo acaba por apelar para o nossosentido de efeito dramático. 118De súbito, damo-nos conta de que já não somos os actores, massim os espectadores da peça. Melhor dizendo, somos uma coisa eoutra. Observamo-nos a nós mesmos, e ficamos subjugados pelofascínio do espectáculo. No caso em questão, o que é queaconteceu realmente? Uma pessoa suicidou-se porque...o amava. Eu desejaria ter passado por uma experiênciasemelhante. Deixar-me-ia apaixonado pelo amor para o resto davida. As pessoas que me adoraram... não foram muitas,mas ainda houve algumas. persistiram sempre em continuar aviver, mesmo muito depois de ter deixado de interessar-me porelas, ou de elas já não se interessarem por mim. Tornaram-secorpulentas e fastidiosas, e quando as encontro apenasmanifestam interesse pelas recordações do passado. Que memóriatremenda a de uma mulher! É uma coisa medonha. E como revelauma absoluta estagnação intelectual! Devemos absorver ocolorido da vida, mas não recordar os detalhes. Os detalhessão sempre vulgares. - Tenho de semear papoilas no meu jardim - disse Dorian, comum suspiro. - Não há necessidade - retorquiu o companheiro. - A vidatraz sempre papoilas nas mãos. É certo que, de vez em quando,as coisas tendem a prolongar-se. Uma ocasião houve em que useisempre violetas na lapela durante toda uma temporada, comoforma de luto artístico por uma aventura que não morria. Noentanto, acabou por morrer. Esqueci o que a matou. Acho quefoi porque ela se propôs sacrificar o mundo inteiro pela minhapessoa. É sempre um momento terrível esse. Ficamos dominadospelo terror da eternidade...Bem, parece inacreditável, mas uma semana atrás, num jantar emcasa de Lady Hampshire, encontrei-me sentado ao lado dasenhora em questão, que insistia em reviver o nosso caso,desenterrando o passado e revolvendo o futuro. Eu enterrara omeu caso de amor num canteiro de asfódelos. Pois eladesenterrou-o, e afiançou-me que eu lhe estragara a vida. Devodizer que ela devorou um enorme jantar, por isso não senti amínima preocupação. Mas que falta de gosto o seu! O únicoencanto do passado é o de ser passado. 119Mas as mulheres nunca sabem quando termina o espectáculo.Querem sempre um Sexto acto, e assim que termina completamenteo interesse da peça pretendem que ela continue. Se lhesfizéssemos a vontade, toda a comédia teria um final trágico etoda a tragédia culminaria numa farsa. São encantadoramenteartificiais, mas não possuem sentido artístico. Você é maisafortunado do que eu. Posso afiançar-lhe, Dorian, que nenhumadas mulheres que conheci teria feito por mim o que Sibyl Vanefez por si. As mulheres banais acabam sempre por se consolar.Há as que começam a interessar-se por cores sentimentais.Nunca confie numa mulher que se vista de lilás, seja ela deque idade for, nem numa mulher com mais de trinta e cinco anosque goste de fitas cor-de-rosa. Significa sempre que elas têmum passado turbulento. Outras sentem-se muito consoladas aodescobrirem de repente as boas qualidades dos maridos. Exibema sua felicidade conjugal mesmo em frente do nosso nariz, comose fosse o mais fascinante dos pecados. Algumas acham consolona religião. Os seus mistérios têm todo o encanto de umnamoro, segundo me disse uma vez uma mulher, e consigocompreender isso perfeitamente. Além disso,não há nada que nos envaideça mais do que chamarem-nospecadores. A consciência faz de todos nós uns egotistas. Defacto, não têm fim os consolos que as mulheres costumam acharna vida moderna. Ah, não cheguei a mencionar o maisimportante. - Qual, Harry? - perguntou o rapaz, de modo apático. - Ora, o consolo óbvio. Roubar o admirador a outra,quando se perde o próprio. Na boa sociedade, isso reabilitasempre uma mulher. Mas realmente, Dorian, como Sibyl Vane deveter sido diferente de todas as mulheres que habitualmenteconhecemos! Encontro uma certa beleza na sua morte. Gosto deviver num século em que acontecem prodígios como este.Levam-nos a acreditar na realidade das coisas com que todosnós costumamos divertir-nos, como a aventura, a paixão e oamor. - Fui de uma tremenda crueldade com ela, e você esquece-sedisso. 120 - Infelizmente as mulheres apreciam a crueldade, a puracrueldade, mais que tudo. Têm instintos espantosamenteprimitivos. Nós emancipámo-las, mas, mesmo assim, continuam aser escravas à procura dos seus senhores. Adoram serdominadas. Tenho a certeza de que você foi magnífico.Nunca o vi realmente zangado, mas posso imaginar que deve tersido encantador. E, no fim de contas, anteontem você disse-meuma coisa que no momento me parecera pura fantasia, mas quevejo agora ser absolutamente verdade e explicar tudo isto. - E o que foi, Harry? - Disse-me que Sibyl Vane representava para si todas asheroínas românticas, que uma noite era Desdémona, e na outraera Ofélia, que se morresse como Julieta ressuscitaria comoImogénia. - Agora jamais ressuscitará - observou o rapaz num sussurro,mergulhando a cara entre as mãos. - De facto, jamais ressuscitará. Ela representou o seuúltimo papel. Mas você deve pensar nessa morte solitária numcamarim de mau gosto como um estranho fragmento sinistro deuma peça jacobina, ou uma cena magnífica de Webster, ou deFord, ou de Cyril Tourneur. A rapariga nunca teve vida real,por isso a sua morte nunca foi real.Pelo menos para você, ela foi sempre um sonho, uma visão quepassou como uma sombra pelas peças de Shakespeare e que asdeixou mais belas com a sua presença, um junco que entoava commais doçura e júbilo a música de Shakespeare. Assim que entrouna vida real, destruiu-a e a vida destruiu-a a ela, por issomorreu. Chore por Ofélia, se quiser. Cubra a cabeça de cinzasporque Cordélia foi estrangulada. Clame aos céus porque afilha de Brabâncio morreu. Mas não desperdice as suas lágrimascom Sibyl Vane. Era menos real do que todas elas. Fez-se silêncio. O crepúsculo adensava-se na sala.Silenciosas, e com seus pés argênteos, iam entrando as sombrasvindas do jardim. As cores das coisas esmaeciam lentamente. 121 Algum tempo depois, Dorian Gray ergueu a cabeça. - Você explicou-me a mim próprio - murmurou, como quesuspirando de alívio. - Eu sentia tudo o que acabou de dizer,mas, não sei porquê, tinha medo e não conseguia expressá-lo amim mesmo. Conhece-me tão bem! Mas não havemos de voltar afalar no que aconteceu. Foi uma experiência maravilhosa, eapenas isso. Será que a vida me reserva ainda coisas tãomaravilhosas? - A vida reserva-lhe tudo, Dorian. Não há nada que você, coma sua extraordinária beleza, não possa fazer. - Mas, Harry, suponha que fico macilento, velho e cheio derugas? E então? - Ah, então - disse Lord Henry, levantando-se para seretirar -, então, meu caro Dorian, teria de se bater paraalcançar as suas vitórias. Por enquanto, elas vêm ter consigo.Ora, o importante é que conserve a sua beleza. Vivemos numaépoca sem sabedoria por tanto ler, e sem beleza por tantopensar. Não podemos passar sem você. E agora é melhor irvestir-se, e seguirmos para o clube. Já estamos bastanteatrasados. - Acho que vou ter consigo à Ópera, Harry. Estou demasiadocansado para comer seja o que for. Qual é o número do camarotede sua irmã? - O vinte e sete, creio. Fica na primeira ordem. Poderá vero nome dela na porta. Mas tenho muita pena que não venhajantar. - Não me sinto com forças - disse Dorian, languidamente. -Mas fico-lhe muito grato por tudo o que me disse. É sem dúvidao meu melhor amigo. Jamais alguém me compreendeu como você. - Estamos ainda no começo da nossa amizade, Dorian -respondeu Lord Henry, apertando-lhe a mão. - Adeus.Espero vê-lo antes das nove e meia. Lembre-se, a Patti cantaesta noite. Quando ele fechou a porta após ter saído, Dorian Gray tocoua campainha, e, poucos minutos depois, Victor apareceu com asluzes e baixou os estores. 122 Dorian esperava impacientemente que ele se fosse embora. Ohomem parecia demorar um tempo interminável com tudo o quefazia. Logo que o criado saiu, precipitou-se para o biombo eafastou-o. Não, o retrato não sofrera outra alteração.Recebera a notícia da morte de Sibyl Vane antes de ele próprioter tido conhecimento. Apercebia-se dos acontecimentos da vidano momento em que ocorriam. A crueldade perversa quedesfigurava os traços delicados da boca aparecera, sem dúvida,no momento exacto em que a rapariga bebera o veneno. Ou não oafectavam as consequências? Tomaria conhecimento apenas do quese passava na alma? Ele interrogava-se, e esperava um dia vera transformação no retrato realizar-se diante dos seus olhos,mas estremecia só de o desejar. Pobre Sibyl! Que estranho romance de amor o seu! Foramtantas as vezes que simulara a morte no palco. Depois foitocada pela própria Morte, que a levou consigo. Como teriarepresentado a terrível e última cena? Tê-lo-ia amaldiçoado aomorrer? Não, morrera por amor, e agora o amor passaria a serpara ele um sacramento. Ela tudo resgatara, ao sacrificar aprópria vida. E ele deixaria de pensar em tudo o que a fizerasofrer naquela horrível noite no teatro. Quando pensasse nela,vê-la-ia como maraVilhosa e trágica personagem enviada aopalco do mundo para revelar a realidade suprema do Amor.Maravilhosa e trágica personagem? Vieram-Lhe lágrimas aosolhos ao recordar o seu ar infantil, os seus cativantescaprichos e a sua tímida graciosidade. Limpou-as rapidamente eolhou de novo o retrato. Sentiu que chegara o momento de fazer uma opção. Ou seriaque a sua opção já havia sido feita? Na verdade, a vidadecidira por ele. a vida, e a sua inesgotável curiosidadeacerca da vida. Eterna juventude, paixão ilimitada, subtis esecretos prazeres, desvairados deleites, pecados ainda maisdesvairados. tudo isso seria seu. O retrato é que suportaria opeso da sua vergonha. 123 Invadiu-o uma sensação dolorosa, quando pensou na profanaçãoque estava reservada ao belo rosto do quadro. Uma vez, numinfantil arremedo de Narciso, beijara, ou fingira beijar,aqueles lábios pintados que lhe sorriam agora tão cruelmente.Passara muitas manhãs sentado em frente do retrato,surpreendido pela sua beleza, às vezes quase dela enamorado.Iria mudar a cada variação de humor a que ele se entregasse?Iria transformar-se em algo monstruoso e abominável, que teriade ser escondido num quarto trancado, ou privado da luz do solque tantas vezes iluminara em reflexos de ouro o ondulado doseu cabelo? Que pena! Que pena! Por uns momentos pensou em fazer uma prece para que cessassea terrível afinidade que existia entre ele e o retrato.Transformara-se para dar resposta a uma prece, talvezpermanecesse inalterado para atender uma prece. E, todavia,quem é que, conhecedor da Vida, renunciaria à oportunidade depermanecer jovem para sempre, por muito fantástica que elafosse, ou por muito fatídicas que fossem as consequências daíprovenientes? Além disso, o retrato seria realmente dominadopela sua vontade? Fora de facto o desejo formulado queprovocara a alteração? Não haveria uma singular explicaçãocientífica para tudo isso? Se o pensamento podia exercerinfluência sobre um organismo vivo, não poderia exercê-laigualmente sobre coisas inertes e inorgânicas? E, mais do queisso, apesar de destituídas de pensamento ou de desejoconsciente, não poderiam as coisas exteriores a nós vibrar emuníssono com os nossos caprichos e as nossas paixões, átomoatraindo átomo num secreto amor de estranha afinidade? Mas aexplicação não era importante. Ele não tornaria a incitarqualquer terrível poder com um pedido. Se o quadro tivesse quemudar, pois que mudasse. Não havia nada a fazer. Por que haviade examiná-lo tão minuciosamente? Contemplá-lo seria, pois, um verdadeiro prazer. Poderiaperscrutá-lo até aos seus mais secretos recantos. Este retratoseria para si o mais mágico de todos os espelhos. 124Assim como Lhe revelara o próprio corpo, haveria derevelar-lhe também a alma. E quando o Inverno descesse sobre oretrato, ele estaria ainda onde a Primavera vacila à beira doVerão. Quando o sangue lhe abandonasse o rosto, deixando atrásde si uma lívida máscara de giz com olhos plúmbeos, eleconservaria o encanto da mocidade. Nenhuma flor da suaformosura haveria de murchar. Nem uma única pulsação da suavida se tornaria mais fraca. Seria como os deuses da antigaGrécia: forte, e ágil, e exuberante. Que importava o queacontecia à imagem colorida da tela? Ele não correria perigo.E isso era o essencial. Arrastou o biombo novamente para o lugar habitual à frentedo retrato, sorrindo ao fazê-lo, e passou ao seu quarto, ondejá se encontrava o criado a aguardá-lo. Uma hora depois estavana Ópera, com Lord Henry apoiado na sua cadeira. Capítulo IX Quando estava, na manhã do dia seguinte, a tomar opequeno-almoço, Basil Hallward entrou na sala. - Ainda bem que o encontro, Dorian - disse ele, em tomgrave. - Vim vê-lo a noite passada, e disseram-me que estavana Ópera. Eu sabia, é claro, que era impossível... Mas gostavaque tivesse dito aonde tinha ido. Passei uma noite horrível,meio receoso que a uma tragédia se seguisse outra. Podiater-me enviado um telegrama assim que o soube. Li a notíciacasualmente no clube ao pegar na última edição do Globe. Vimcá imediatamente e fiquei desoladíssimo por não o encontrar.Não consigo expressar-Lhe todo o meu pesar pelo que aconteceu.Sei o quanto você deve estar a sofrer. Mas onde esteve? Foivisitar a mãe da rapariga? Ainda pensei em ir lá ter consigo.O endereço vinha no jornal. Algures na Euston Road, não é? Masreceei interferir numa hora de sofrimento que não poderiamitigar. Pobre mulher! Em que estado deve estar! E, para mais,filha única! O que disse ela de tudo isto? - Meu caro Basil, como posso saber? - murmurou Dorian Gray,bebendo uns goles de um vinho amarelo-pálido por um delicadocálice de vidro de Veneza, com filete dourado. Mostrava-seextremamente enfadado. - Estive na Ópera. Você devia ter ido.Conheci Lady Gwendolen, a irmã do Harry. Estivemos no seucamarote. Ela é absolutamente encantadora, e a Patti cantoudivinamente. Não fale de assuntos horrendos. Se não falarmosde uma coisa, é como se nunca tivesse acontecido. É unicamentea expressão, como diz o Harry, que dá realidade às coisas.Posso informá-lo de que ela não era filha única. Há um filho,um rapaz encantador, creio. Mas não é do teatro. 126É marinheiro, ou coisa que o valha. E agora fale-me de si edas suas pinturas. - Você foi à Ópera? - perguntou Hallward, falando lentamentee com uma ponta de mágoa contida. - Foi à Ópera enquanto SibylVane jazia morta em qualquer quarto sórdido? Tem a coragem deme falar de mulheres encantadoras e de uma Patti que cantadivinamente, e a rapariga que você amava ainda nem sequerrepousa na paz de uma sepultura? Como assim, homem! Háhorrores aguardando aquele corpinho imaculado! - Basta, Basil! Não quero ouvir mais nada! - gritou Dorian,erguendo-se bruscamente. - Não deve falar-me dessas coisas. Oque aconteceu acabou. O que passou pertence ao passado. - Chama passado ao dia de ontem? - Que importância tem o verdadeiro lapso de tempo? Só aspessoas fúteis precisam de anos para se libertarem de qualqueremoção. Um homem que seja senhor de si consegue pôr fim a umatristeza com a mesma facilidade com que inventa um prazer. Nãoquero ficar à mercê das minhas emoções. Quero usá-las,desfrutá-las e dominá-las. - Dorian, o que está a dizer é um horror! Alguma coisa houveque o modificou completamente. Parece exactamente o mesmorapaz maravilhoso que, dia após dia, vinha ao meu atelierposar para o seu retrato. Mas, nessa altura, era simples,espontâneo e afectuoso. Era a criatura mais impoluta destemundo. Agora não sei o que se passa consigo.Fala como se não tivesse sensibilidade, nem compaixão.Vejo que tudo isso se deve à influência do Harry. O rapaz corou e, dirigindo-se até à porta envidraçada,olhou por uns momentos para o jardim verdejante quereverberava à luz do sol. - Devo muito ao Harry, Basil - disse, por fim -, mesmo maisdo que devo a si. Você apenas me ensinou a ser vaidoso. - Então, estou a ser castigado por isso. ou sê-lo-ei um dia. 127 - Não sei o que quer dizer, Basil - exclamou, voltando-se.- Não sei o que quer de mim. Diga-me. - Quero aquele Dorian Gray que eu costumava pintar - disse oartista, com tristeza. - Basil - disse o rapaz, aproximando-se dele e pousando-lhea mão no ombro -, chegou demasiado tarde. Ontem, quando soubeque Sibyl Vane se suicidara... - Suicidou-se! Deus do Céu! É mesmo verdade? - exclamouHallward, olhando para ele com uma expressão de horror. - Meu caro Basil! Certamente que não pensa que foi um vulgaracidente? É claro que se suicidou. O pintor cobriu o rosto com as mãos. - É horrível - disse em voz baixa, percorrendo-o um tremor. - Não - disse Dorian Gray -, não é nada horrível. É uma dasgrandes tragédias românticas da nossa época. Em regra,a gente do teatro tem uma vida muito comezinha. São bonsmaridos, ou esposas fiéis, ou qualquer outro género demonotonia. Sabe o que eu quero dizer: a moral da classe médiae todo esse tipo de coisas... Como a Sibyl era diferente!Viveu a sua mais bela tragédia. Foi sempre a heroína. Naúltima noite em que actuou, a noite em que a viu, representoumal porque conhecera a realidade do amor. Quando conheceu asua irrealidade, morreu como Julieta poderia ter morrido.Ela transitou novamente para a esfera artística. Tem algo demártir. A sua morte tem toda a inutilidade patética domartírio, o desperdício de toda a beleza. Mas, como eu estavadizendo, você não deve pensar que não sofri. Se me tivessevisto aqui ontem, numa determinada altura... seriam umas cincoe meia, talvez, ou seis menos um quarto. ter-me-ia encontradoa chorar. Mesmo o Harry, que esteve aqui a dar-me a notícia,não fez a mínima ideia do quanto eu estava a sofrer. Sofriimenso. Depois passou. Não consigo reviver uma emoção. Nemninguém, a não ser os sentimentalistas.E você é extremamente injusto, Basil. Veio cá para meconsolar, o que é muito amável da sua parte. 128Encontra-me conformado, e fica furioso. Grande simpatia a sua!Faz-me lembrar uma história que o Harry me contou acerca de umfilantropo que levou vinte anos da sua vida a tentar repararuma ofensa, ou a alterar uma lei injusta. não me recordoexactamente do que se tratava. Finalmente conseguiu o seuintento, e a sua decepção foi insuperável. Ficou sem fazerabsolutamente nada, quase morria de ennui, e tornou-se nummisantropo inveterado. E além do mais, meu velho,se quiser realmente consolar-me, é preferível que me ensine aesquecer o que aconteceu, ou a considerá-lo do ponto de vistaartístico adequado. Não foi Gautier que costumava escreversobre la consolation des arts? Recordo-me de um dia,no seu atelier, ter pegado num livro encadernado em velino,onde deparei com essa frase deliciosa. Bem, não souprecisamente como aquele jovem de que me falou, quandoestivemos os dois em Marlow, aquele que costumava dizer que ocetim amarelo podia consolar-nos de todos os desgostos davida. Adoro as coisas belas que podemos tocar e manusear.Brocados antigos, bronzes verdes, objectos de laca, marfinsesculpidos, ambientes requintados, luxo, fausto, de tudo istopodemos tirar grande proveito. Mas o temperamento artísticoque geram, ou que ao menos revelam, é para mim ainda maisimportante. Se formos espectadores da nossa própria vida, comodiz o Harry, furtamo-nos ao sofrimento da vida. Bem sei queestá surpreendido por me ouvir falar deste modo. Você nãocompreendeu ainda como eu evoluí.Quando me conheceu, eu não passava de um colegial. Agora souum homem. Tenho novas paixões, novos pensamentos, novasideias. Estou diferente, mas não deve gostar menos de mim porisso. Estou mudado, mas tem de continuar a ser meu amigo. Écerto que gosto muito do Harry. Mas sei que você é melhor doque ele. Sei que não é mais forte - você tem um medo exageradoda vida - mas é melhor. E que felizes éramos os dois! Não medeixe, Basil, e não discuta comigo. Sou o que sou. E não hámais nada a dizer. O pintor sentia uma estranha comoção. 129Tinha um enorme afecto pelo rapaz, e a sua personalidadeassinalara um ponto decisivo na sua arte. Não podia suportar aideia de voltar a recriminá-lo. No fim de contas, a suaindiferença seria simplesmente um estado de espíritopassageiro. Havia nele tantos sentimentos bons e nobres. - Bem, Dorian - disse, por fim, com um sorriso triste -,a partir de hoje não voltarei a falar-Lhe deste assuntohorrível. Apenas quero ter a certeza de que o seu nome nãoestá envolvido. O inquérito realiza-se esta tarde. Você foiconvocado? Dorian abanou a cabeça, passando-Lhe pelo rosto umaexpressão de contrariedade ao ser mencionada a palavrainquérito. Havia qualquer coisa de grosseiro e ordinárioassociada a tudo isso. - Não sabem o meu nome - respondeu ele. - Mas ela com certeza sabia? - Apenas o meu nome de baptismo, e estou certo de que nuncao revelou a ninguém. Uma vez contou-me que todos tinham grandecuriosidade em saber quem eu era, e que lhes respondiainvariavelmente que o meu nome era Príncipe Encantado. Foi umaideia bonita. Tem de me fazer um retrato da Sibyl, Basil.Gostaria de ter dela outra coisa mais que não fosse somente arecordação de alguns beijos e umas patéticas promessas nãocumpridas. - Vou tentar fazer alguma coisa, Dorian, se isso o satisfaz.Mas tem de voltar a posar para mim. Sem você não possocontinuar o meu trabalho. - Nunca voltarei a posar para si, Basil. É impossível! -exclamou, recuando. O pintor fitou-o, espantado. - Que disparate, meu rapaz! - gritou ele. - Pretende dizerque não gosta do retrato que lhe fiz? Onde está? Por quecolocou o biombo diante dele? Deixe-me vê-lo. É a mellhorcoisa que já fiz. Afaste o biombo, Dorian. É simplesmenteinfame que o seu criado tenha escondido a minha obra destamaneira. Bem me pareceu, ao entrar, que a sala estavadiferente. - O meu criado não tem nada a ver com isso, Basil. 130Não está a pensar que permito que seja ele a dispor as coisasna minha sala? Às vezes é ele que me compõe as flores, maisnada. Não, fui eu que o coloquei aí. A luz era forte demais. - Forte demais! Mas de modo nenhum, meu caro amigo! Está nolugar ideal. Deixe-me ver. E Hallward encaminhou-se para o canto da sala. Um grito de terror irrompeu dos lábios de Dorian Gray, quecorreu a interpor-se entre o pintor e o biombo. - Basil - disse ele, de semblante muito pálido -, não podevê-lo. Eu não quero. - Não poder ver a minha própria obra! Não está a falar asério. Por que não hei-de vê-lo? - exclamou Hallward a rir. - Se tentar vê-lo, Basil, dou-Lhe a minha palavra de honraque deixo de lhe falar para toda a vida. Falo muito a sério.Não lhe dou quaisquer explicações, nem você deve pedi-las. Elembre-se de que se tocar neste biombo, acaba-se tudo entrenós. Hallward estava abismado. Olhava para Dorian Gray,com profundo pasmo. Nunca o vira assim. O rapaz até estavapálido de raiva. Tinha os punhos cerrados, e as pupilasdilatadas pareciam discos de fogo azul. Todo ele tremia. - Dorian! - Não diga nada! - Mas que se passa consigo? É claro que não verei o quadrose é isso que você quer - disse ele, com bastante frieza,rodando sobre os calcanhares e encaminhando-se para a janela.- Mas realmente parece um tanto absurdo que não possa ver omeu trabalho, especialmente agora que vou expô-lo em Paris noOutono. Provavelmente terei que lhe aplicar outra camada deverniz antes disso, portanto tenho de vê-lo um dia destes, epor que não hoje mesmo? - Expô-lo! Você quer expô-lo? - exclamou Dorian Gray, tomadopor uma estranha sensação de terror. O seu segredo ia serexposto aos olhos do mundo? Para que as pessoas ficassemembasbacadas ante o mistério da sua vida? Isso era impossível.Não sabia ainda o quê, mas tinha que fazer qualquer coisaimediatamente. 131 - Sim, quero. Não creio que você vá levantar objecções.George Petit vai reunir os meus melhores quadros para umaexposição especial, na Rue de Sèze, que abre ao público naprimeira semana de Outubro. O retrato só estará fora um mês.Suponho que não lhe fará diferença dispensá-lo durante essetempo. Coincide mesmo com a altura em que você se ausenta dacidade. E se o tem sempre escondido atrás do biombo, é porquenão está muito interessado nele. Dorian Gray passou a mão pela testa. Tinha gotas de suor.Sentia que estava à beira de um perigo terrível. - Há um mês dizia-me que nunca o iria expor - exclamou. -Por que mudou de ideias ? Vocês, os que pretendem sercoerentes, mudam tanto de humor como os outros.A única diferença é que os vossos caprichos são bastante menossignificativos. Não se pode ter esquecido que me afiançoumuito solenemente que por nada deste mundo o iria enviar aexposição alguma. Você disse ao Harry exactamente a mesmacoisa. Calou-se de repente, e os olhos brilharam intensamente.Lembrou-se de que Lord Henry Lhe dissera uma vez,meio a sério, meio a brincar: "Se você quer passar um quarto de hora especial, convençaBasil a dizer-lhe por que não quer expor o seu retrato. A mimjá me disse o motivo, e foi uma verdadeira revelação". Sim,talvez Basil tivesse também um segredo. Perguntar-lhe-ia efaria tudo para saber - Basil - disse, aproximando-se dele efitando-o bem de frente - cada um de nós tem um segredo. Se merevelar o seu, eu conto-Lhe o meu. Por que motivo se recusavaa expor o meu retrato? O pintor estremeceu involuntariamente. - Dorian, se lhe dissesse o motivo, provavelmente ficaria agostar menos de mim, e por certo iria rir-se de mim também. Eunão poderia suportar nem uma coisa, nem outra. Se for seudesejo que eu nunca mais veja o retrato, estou de acordo.Posso sempre vê-lo a si. Se for seu desejo que a minha melhorobra não seja revelada ao público, aceito. Prezo mais a suaamizade do que qualquer moldura ou reputação. 132 - Não, Basil, tem de dizer-me - insistia Dorian Gray -,Creio que tenho o direito de saber. A sensação de terror passara e dera lugar à curiosidade.Estava determinado a descobrir o mistério de Basil Hallward. - Sentemo-nos, Dorian - disse o pintor, visivelmenteperturbado. - Sentemo-nos. Responda-me primeiro a umapergunta. Notou algo de estranho no retrato? Uma coisa que aprincípio talvez não lhe tenha chamado a atenção,mas que se Lhe revelou repentinamente? - Basil! - gritou o rapaz, apertando os braços da poltronacom mãos trémulas, e fitando-o com os olhos esgazeados demedo. - Vejo que sim. Não diga nada. Espere até ouvir tudo o quetenho a dizer. Dorian, desde que o conheci, a suapersonalidade exerceu em mim a mais extraordinária influência.Você dominava-me a alma, o cérebro e as minhas faculdades. Foipara mim a incarnação corpórea do ideal invisível, cujamemória nos persegue a nós, artistas, como um sonho raro. Euadorava-o. Tinha ciúmes de toda a gente com quem você falava.Queria que fosse inteiramente meu. Só me sentia feliz quandoestava consigo. Mesmo quando se encontrava ausente, continuavapresente na minha arte. É claro que nunca quis que soubessenada disto.Seria impossível. Você não teria compreendido. Mesmo eu mal oentendia. Apenas sabia que havia deparado com a perfeição, eque o mundo se tornara maravilhoso aos meus olhos. talvezdemasiado maravilhoso, pois em tresloucadas idolatrias, existeo perigo de perdê-las, que não é menor do que o perigo deconservá-las. As semanas passavam,e eu ia ficando cada vez mais absorvido por você. Depoissurgiu uma nova situação. Eu desenhara-o como Páris,numa elegante armadura, e como Adónis, com a capa de caçador eempunhando uma reluzente lança. Coroado de pesadas flores delótus, sentara-se à proa da barca de Adriano, a contemplar aságuas verdes e turvas do Nilo. 133Debruçara-se no lago tranquilo de uma floresta grega, mirandona prata silente da água a graça do seu rosto. E tudo foracomo a arte devia ser: inconsciente, ideal e remota.Um dia, penso às vezes que foi um dia fatídico, resolvi pintarum magnífico retrato seu que o representasse tal como é, nãocom roupagens do passado, mas trajado a seu modo e à moda dasua época. Não sei dizer se foi o realismo do método, ousimplesmente o fascínio da sua personalidade que assimdirectamente se me apresentava sem névoa ou véu, mas sei que,à medida que trabalhava no retrato, toda a pincelada colorida,mais espessa ou mais ténue, parecia revelar o meu segredo.Tive medo de que outros ficassem a saber da minha idolatria.Eu sentia, Dorian, que revelara demais, que tinha posto noretrato demasiado de mim mesmo. Foi então que resolvi jamaispermitir que ele fosse exposto. Você ficou um poucomelindrado, mas não sabia tudo o que ele representava paramim. O Harry, a quem contei tudo isto, riu-se de mim. Mas nãome importei.Quando terminei o quadro, e fiquei sozinho com ele, senti quetinha razão. Bom, alguns dias depois ele saiu do meu atelier,e, assim que me libertei do intolerável fascínio da suapresença, achei que fora tolo ao imaginar que vira nele algumacoisa mais para além do facto de que você eraextraordinariamente bem-parecido e que eu sabia pintar. Mesmoagora não posso deixar de considerar errada a ideia de que apaixão sentida no acto de criar se revela de facto na obracitada. A arte é sempre mais abstracta do que imaginamos. Aforma e a cor falam-nos da forma e da cor, e de nada mais.Muitas vezes afigura-se-me que a arte esconde o artista muitomais do que o revela. E por isso, quando recebi esta propostade Paris, decidi que o seu retrato seria a obra principal daminha exposição. Nunca me ocorreu que você fosse recusar. VEjoagora que tem razão. O retrato não pode ser exposto. Não deveficar zangado comigo, Dorian, por aquilo que lhe contei. Comodisse numa ocasião ao Harry, você foi feito para ser adorado. Dorian Gray deu um longo suspiro. As faces retomaram cor, ebrincava-lhe nos lábios um sorriso. O perigo passara. 134 Por enquanto, não corria risco. Porém, não podia deixar desentir uma enorme compaixão pelo pintor, que acabara de lhefazer esta estranha confissão, e interrogava-se se tambémseria alguma vez assim dominado pela personalidade de umamigo. Lord Henry tinha o encanto de ser muito perigoso.Mas nada mais que isso. Era demasiado inteligente e demasiadocínico para que se pudesse gostar realmente dele. Haveria umdia alguém que lhe inspirasse uma idolatria tão estranha?Seria uma das coisas que a vida lhe reservava? - Parece-me extraordinário, Dorian - disse Hallward -,que você tenha visto isso no retrato. Viu mesmo? - Vi uma coisa - respondeu -, uma coisa que me pareceu muitocuriosa. - Então agora não se importa que eu o veja? Dorian abanou a cabeça num gesto negativo. - Não pode pedir-me isso, Basil. Ser-me-ia impossíveldeixá-lo ver o retrato. - Mas um dia vai deixar, não vai? - Nunca... - Bem, talvez você tenha razão. E entãoadeus, Dorian. Foi aúnica pessoa que influenciou verdadeiramente a minha arte.Tudo quanto fiz de bom a si o devo. Ah! Não sabe o que mecustou dizer-Lhe tudo o que lhe contei. - Meu caro Basil - disse Dorian -, mas o que foi que mecontou? Simplesmente que sentia que me admirava demais.Nem chega a ser um elogio. - Não pretendeu ser um elogio. Foi uma confissão.Agora que a fiz, tenho a impressão de ter perdido algo de mim.Talvez não devêssemos expressar por palavras o nossosentimento de idolatria. - Foi uma confissão decepcionante. - Mas de que estava à espera, Dorian? Não viu mais nada noretrato, pois não? Não se via mais nada? - Não, não se via mais nada. Por que pergunta? E não devefalar-me em adoração. É um disparate. Você e eu somos amigos,Basil, e devemos continuar a sê-lo sempre. - Você tem o Harry - disse o pintor, um tanto triste. 135 - Ora, o Harry -- exclamou o rapaz, dando uma gargalhada. -O Harry passa os dias a dizer coisas incríveis, e as noites afazer coisas improváveis. Exactamente o género de vida que eugostaria de levar. Mas mesmo assim, não creio que fosseprocurar o Harry se me encontrasse em apuros.Preferia procurá-lo a si. - Voltará a posar para mim? - Impossível! - Ao recusar, você destrói a minha vida artística, Dorian.Não houve um homem que deparasse com dois ideais.Poucos deparam com um. - Não posso explicar-Lhe o motivo, Basil, mas jamais devovoltar a posar para si. Há qualquer coisa de fatídico noretrato. Tem vida própria. Qualquer dia vou tomar chá consigo.Será igualmente agradável. - Mais agradável para si, creio bem - respondeu Hallward emvoz baixa, com algum pesar. - Então, adeus. Lamento que me nãodeixe ver o quadro mais uma vez. Paciência! Compreendoperfeitamente a sua decisão. Quando ele saiu, Dorian Gray não pôde deixar de sorrir.Pobre Basil! Sabia tão pouco sobre o verdadeiro motivo! E foitão estranho que, em vez de ter sido obrigado a revelar o seupróprio segredo, houvesse conseguido, quase por acaso,arrancar um segredo ao seu amigo! Quantos esclarecimentos Lhetrouxera aquela singular confissão! Os inexplicáveis acessosde ciúme do pintor, a sua exagerada dedicação, os seusextravagantes panegíricos, as suas curiosas reticências. agoracompreendia tudo isso, e sentia pena. Parecia-lhe haver umlaivo de tragédia numa amizade tão colorida pelo romanesco. Suspirou, e tocou a campainha. O retrato tinha de serescondido a todo o custo. Ele não podia correr novamente orisco de que alguém o descobrisse. Fora loucura da sua parteter deixado ficar aquilo, por uma hora sequer, numa sala aondeentrava todo e qualquer amigo. Capítulo X Quando o criado entrou, fixou nele o olhar, como que aquerer saber se ele teria pensado em espreitar por trás dobiombo. O homem mostrava-se impassível, aguardando as suasordens. Dorian acendeu um cigarro, aproximou-se do espelho eolhou. Via perfeitamente nele reflectido o rosto de Victor.Era uma máscara de plácido servilismo. Aí não havia nada arecear. No entanto, achou que o melhor seria ficar desobreaviso. Falando muito lentamente, disse-lhe que avisasse agovernanta que precisava de falar com ela, e que fosse depoister com o moldureiro para lhe pedir que lhe mandasseimediatamente dois homens. Teve a impressão de que o criado aosair do quarto, dirigira o olhar para o biombo. Ou seriaapenas imaginação sua? Pouco depois, Mrs. Leaf, com seu vestido de seda preta eantiquados mitenes de linha nas mãos engelhadas, entrouafobadamente na biblioteca. Ele pediu-Lhe a chave do velhoquarto de estudo. - O velho quarto de estudo, Mr. Dorian? - exclamou.- Mas... está cheio de pó. Tenho de o mandar limpar e arrumarantes de o senhor lá entrar. O senhor não pode vê-lo naquelascondições. Não, senhor. - Eu não quero o quarto limpo, Leaf. Apenas quero a chave... - Então, o senhor vai ficar coberto de teias de aranha, selá entrar. Ora ele não é aberto há quase cinco anos, foi desdeque Sua Senhoria faleceu. Estremeceu ao ouvir falar do avô. Tinha dele recordaçõesodiosas. - Não tem importância - respondeu. - Quero muitosimplesmente ver o quarto. é só isso. Dê-me a chave. - Está aqui a chave, senhor - disse a velhota revistando omolho de chaves com mãos trémulas e inseguras. - Está aqui achave. Tiro-a do molho num instante. Mas não está a pensar emir para lá, senhor, de mais a mais estando aqui tãoconfortável? - Não, não penso - exclamou, petulante. - Obrigado,Leaf. É tudo. A governanta demorou-se ainda algum tempo a tagarelar sobredeterminado problema doméstico. Dorian suspirou impaciente, edisse-lhe que resolvesse o assunto como lhe parecesse melhor.Então ela saiu da biblioteca, desfazendo-se em sorrisos. Mal a porta se fechou, Dorian meteu a chave no bolso e olhouem volta. Os olhos depararam com uma enorme colcha de cetimcor-de-púrpura, ricamente bordada a ouro,um sumptuoso exemplar veneziano de finais do século xvII que oavô descobrira num convento perto de Bolonha.Sim, aquilo serviria para envolver aquela coisa horrível.Talvez tivesse já servido muitas vezes de pano mortuário.Agora devia esconder uma coisa que tinha uma corrupção muitopeculiar, pior que a corrupção da própria morte.uma coisa que haveria de originar horrores, mas que nuncamorreria. O que os vermes fazem a um cadáver, assim fariam osseus pecados à imagem pintada na tela. Destruiriam a suabeleza e devorariam o seu garbo. Corrompê-la-iam etorná-la-iam vergonhosa. E, todavia, essa coisa continuaria aviver... Para sempre. Estremeceu, e, por momentos, lamentou não ter dito a Basil overdadeiro motivo por que quisera esconder o quadro. Basiltê-lo-ia ajudado a resistir à influência de Lord Henry, e àsinfluências ainda mais venenosas do próprio temperamento. Oamor que Basil tinha por ele - pois tratava-se de verdadeiroamor - era inteiramente nobre e intelectual. Não era a simplesadmiração física da beleza, aquela que nasce dos sentidos eque morre com o cansaço dos sentidos. 138 139Era um amor como o que Miguel Ângelo conhecera, e Montaigne, eWinekelmann, e mesmo Shakespeare. Sim, Basil poderia tê-lo salvo. Mas era demasiado tardeagora. O passado poderia ser sempre anulado através doarrependimento, da rejeição ou do olvido. Mas o futuro erainevitável. Tinha dentro de si paixões que explodiriam de ummodo terrível, sonhos que tornariam real a sombra daperversidade que projectavam. Retirou do sofá o magnífico tecido de púrpura e ouro que ocobria e, segurando-o com as duas mãos, passou para trás dobiombo. O rosto do quadro seria mais abjecto agora?Parecia-lhe inalterado, mas, mesmo assim, a sua aversão porele aumentava. O cabelo dourado, os olhos azuis e os lábiosrubros estavam lá. Somente a expressão se alterara. Era de umacrueldade horrenda. Comparadas com a censura e a acusaçãovisíveis no retrato, como eram irrisórias as repreensões queLhe fizera Basil a propósito de Sibyl Vane! Tão fúteis e detão pouca monta! A sua própria alma olhava-o, chamando-o ajuízo. Assomou-Lhe aos olhos uma expressão de dor, e lançou avaliosa coberta por cima do retrato. Ao fazê-lo, bateram àporta. Afastou-se do biombo quando o criado entrou. - Os homens já chegaram, Monsieur. Sabia que tinha de se livrar imediatamente do criado. Estenão podia saber para onde iam levar o quadro. Havia nele umacerta dissimulação, e tinha um olhar cauteloso e traiçoeiro.Sentou-se à escrivaninha e escreveu rapidamente um bilhete aLord Henry, a pedir-Lhe que lhe enviasse qualquer coisa paraler e a lembrar-Lhe o encontro combinado para as oito e quinzedessa noite. - Aguarde a resposta - disse, entregando-lhe o bilhete -, emande entrar os homens para aqui. Dois ou três minutos depois, bateram novamente à porta, eMr. Hubbard, em pessoa, o afamado moldureiro de South AudleyStreet, entrou acompanhado por um jovem ajudante de aspecto umtanto rude. Mr. Hubbard era um homenzinho rubicundo, de suíçasruivas, cuja admiração pela arte era consideravelmentemoderada pela penúria de quase todos os artistas que com elenegociavam. Geralmente nunca abandonava a loja, aguardando queas pessoas viessem ter consigo. Mas abria sempre uma excepçãorelativamente a Dorian Gray. Dorian tinha um certo encanto queseduzia toda a gente. Vê-lo chegava a ser um prazer. - Em que posso servi-lo, Mr. Gray? - perguntou, esfregandoas mãos gorduchas e sardentas. - Resolvi conceder a mim mesmoa honra de vir pessoalmente. Acabo de adquirir uma beleza demoldura, senhor. Consegui-a num leilão. Uma antiga peçaflorentina, creio que proveniente de Fonthill.Maravilhosamente adequada para um tema religioso, Mr. Gray. - Lamento que se tenha dado ao trabalho de aparecer, Mr.Hubbard. Pode ter a certeza de que não deixarei de passar porlá para ver a moldura, se bem que de momento não esteja muitointeressado por arte sacra, mas hoje desejo apenas que melevem um quadro para o último andar. É bastante pesado, porisso pensei em pedir-lhe que me disponibilizasse dois dos seusempregados. - Não é maçada nenhuma, Mr. Gray. Tenho o maior prazer emservi-lo. Qual é a obra de arte? - É esta - respondeu Dorian, afastando o biombo. - Podemtransportá-la assim tapada como está? Não quero que sofraqualquer dano ao subirem as escadas. - Não vai haver nenhuma dificuldade, senhor - respondeu obem-humorado moldureiro, que, auxiliado pelo seu ajudante,começara a desprender o retrato das compridas correntes debronze que o suspendiam. - E agora para onde quer que alevemos, Mr. Gray? - Eu indico-Lhes o caminho, Mr. Hubbard, se fizerem o favorde me seguir. Mas talvez seja preferível irem à frente. Vamossubir pela escadaria da entrada, sempre é mais larga. Abriu-lhes a porta, eles passaram ao vestíbulo e começaram asubir. Os lavrados da moldura tornavam o quadro extremamentepesado, e, de vez em quando, apesar dos protestos servis 140de Mr. Hubbard, que nutria a forte aversão do genuínocomerciante por ver um senhor fazer algo de útil, Dorian davauma ajuda com a mão. - Isto é pesadote, senhor - disse o homenzinho, arquejando,quando chegaram ao último patamar, e enxugando a testaluzidia. - Parece que é bastante pesada - murmurou Dorian, ao abrir aporta que dava para o quarto que haveria de lhe guardar osingular segredo da sua vida e esconder a sua alma dos olharesdos homens. Haviam passado mais de quatro anos desde a última vez queaqui entrara, de facto desde que primeiro fora quarto debrinquedos quando ele era criança, e depois como quarto deestudo quando era um pouco mais velho. Era um compartimentogrande, bem proporcionado, que fora mandado construir por LordKelso especialmente para o pequenino neto que, pela suaestranha parecença com a mãe, e também por outras razões,sempre odiara e desejara manter à distância. Achava que oquarto pouco se modificara. Lá estava o enorme cassoneitaliano, de almofadas caprichosamente pintadas e de frisosdourados já sem brilho, e onde ele se escondera tantas vezesquando rapazinho. E a estante de pau-cetim com os seus livrosescolares de páginas dobradas aos cantos. Na parede atrás,estava pendurada a mesma esfarrapada tapeçaria flamenga, ondeum rei e uma rainha de cores esmaecidas jogavam xadrez numjardim, enquanto um grupo de falcoeiros passava a cavalo,levando, nos punhos protegidos por luvas, as aves de cabeçastapadas. Recordava-se tão bem de tudo! Quando os seus olhospercorriam o quarto, acudiram-Lhe à memória todos os momentossolitários da infância. Recordava a pureza impoluta dameninice, e parecia-Lhe horrível que fosse esconderprecisamente aqui o retrato fatídico. Nesses dias do passado,mal pensava em tudo o que lhe estaria reservado! Mas não havia na casa um lugar tão protegido dos olharesindiscretos. Era ele que tinha a chave, e mais ninguém poderialá entrar. 141Sob a coberta de cor púrpura, o rosto pintado na tela podiatomar um aspecto bestial, embrutecido e imundo. Que importava?Ninguém o podia ver. Nem sequer ele o veria. Por que haveriade observar a corrupção hedionda da sua alma? Ele manteria asua juventude, e era quanto bastava. Ademais, a sua índole nãopoderia, mesmo assim, tornar-se mais perfeita? Não haviamotivo para que o futuro viesse a ser tão infame. Poderiasurgir-Lhe na vida um amor que o purificasse e o protegessedos pecados que pareciam estar já a agitar-se-Lhe no espíritoe na carne, aqueles estranhos pecados inimagináveis a que oseu próprio mistério emprestava subtileza e encanto. Talvezque um dia a expressão cruel se esvanecesse da boca rubra esensível e ele pudesse expor ao público a obra-prima de BasilHallward. Não, isso seria impossível. Hora a hora, semana após semana,aquilo na tela ia envelhecendo. Ainda que pudesse livrar-se dohorror do pecado, estava-lhe reservado o horror doenvelhecimento. As faces tornar-se-iam encovadas ou flácidas.Rugas amarelecidas surgiriam pouco a pouco ao redor dos olhosmortiços, que tomariam um aspecto horrível. O cabelo perderiao brilho, a boca ficaria aberta ou descairia, ridícula ouobscena, como são as bocas dos velhos. Haveria ainda o pescoçoengelhado, as mãos gélidas e de grossas veias azuis, o corpoalquebrado. Era assim a lembrança que lhe ficara desse avô tãosevero com ele durante a sua meninice. O retrato tinha de serescondido. Não havia remédio. - Traga-o para dentro, Mr. Hubbard, por favor - disse ele,voltando-se com ar abatido. - Desculpe tê-lo feito esperartanto tempo. Pensava em outras coisas. - Veio a propósito este descanso, Mr. Gray - respondeu omoldureiro, que estava ainda sem fôlego. - Onde quer que oponha, senhor? - Ah, em qualquer lugar. Pode ser aqui. Está bem assim. Nãoo quero pendurado. Encoste-o apenas à parede. Obrigado. - Podemos ver a obra de arte, senhor? Dorian sobressaltou-se. 142 - Não lhe iria interessar, Mr. Hubbard - respondeu, de olhosfixos no homem. Estava pronto a saltar-lhe em cima e aatirá-lo ao chão, se ele ousasse levantar a magníficacobertura que escondia o segredo da sua vida. - Não queroincomodá-lo mais. Estou muito grato pela amabilidade de teraparecido. - Incómodo nenhum, Mr. Gray. Sempre às suas ordens, senhor. E Mr. Hubbard desceu as escadas com seus passos pesados,seguido pelo ajudante, que, com um tímido espanto no rostorude e sem beleza, se voltou para olhar Dorian. Nunca virapessoa tão maravilhosa. Quando se extinguira o ruído dos passos, Dorian fechou aporta à chave e meteu a chave no bolso. Sentia-se agoraseguro. Jamais alguém poria os olhos naquele horror. Ninguémsenão ele veria a sua vergonha. Ao chegar à biblioteca,verificou que pouco passava das cinco horas e que já tinhamtrazido o chá. Sobre uma mesinha de madeira escura e perfumadacom profusos embutidos de nácar, um presente de Lady Radley, aesposa do seu tutor, uma inválida muito profissional quepassara o Inverno anterior no Cairo, encontrava-se um bilhetede Lord Henry, e ao lado um livro encadernado com papelamarelo, a capa ligeiramente rasgada e as bordas sujas. Notabuleiro do chá fora colocado um exemplar da terceira ediçãoda St. Jamess Gazette. Era bem evidente que Victor haviaregressado. Começou a pensar se ele teria encontrado os homensao saírem, conseguindo arrancar-lhes informações sobre o quetinham andado a fazer. Certamente que notaria a falta doquadro... não havia mesmo dúvida de que já a teria notadoenquanto andara a pôr a mesa para o chá. O biombo não voltaraa ser reposto, e via-se na parede um espaço vazio. Podiaacontecer que uma noite o encontrasse a subir sorrateiramenteaté lá acima e a tentar forçar a porta do quarto. Era horrívelter um espião em casa. Soubera de homens ricos que tinham sidochantageados toda a vida por um criado que lera uma carta, 143ou ouvira determinada conversa, ou apanhara um cartão com umendereço, ou encontrara debaixo de uma almofada uma flormurcha ou um pedaço de renda amachucada. Suspirou e, depois de se ter servido de chá, abriu o biLhetede Lord Henry. Dizia apenas que lhe enviava o jornal da tardee um livro que talvez lhe interessasse, e que estaria no clubeàs oito e quinze. Abriu o jornal languidamente e passou osolhos por ele. Chamou-lhe a atenção uma marca a lápis vermelhona quinta página, a assinalar o seguinte parágrafo: InQUÉRITO À MoRTE DE UMA ACTRIZ: - Efectuou-se um inquéritoesta manhã em Bell Tavern, Hoxton Road, levado a cabo por Mr.Danby, delegado do Distrito, sobre a morte de Sibyl Vane, umajovem actriz recentemente contratada pelo Royal Theatre, emHolborn. O veredicto foi de morte por acidente. Foramexpressas manifestações de pesar à mãe da jovem. A pobresenhora estava muito perturbada durante o seu depoimento etambém durante o de Mr. Birrell, que foi quem autopsiou afalecida. Irritado, rasgou o jornal em dois e, atravessando a sala deuma ponta à outra, atirou fora os pedaços. Que torpeza haviaem tudo isso! E como a verdadeira torpeza tornava tudohorrível! Sentia-se um pouco aborrecido com Lord Henry por lheter mandado a notícia. E é claro que fora estupidez da partedele ter assinalado a notícia a vermelho. Victor poderialê-la. O inglês que o criado sabia era mais que suficientepara o ter feito. Talvez a tivesse lido e começado a suspeitar de algumacoisa. E, no entanto, isso que importava? Que tinha DorianGray a ver com a morte de Sibyl Vane? Não havia nada a recear.Dorian Gray não a tinha assassinado. O seu olhar recaiu no livro de capa amarela que Lord Henrylhe enviara. Teve curiosidade em saber o que era. Dirigiu-separa o pequeno móvel octogonal cor de pérola, 144que sempre lhe parecera obra de exóticas abelhas do Egipto quetrabalhavam em prata, e pegou no livro. Refastelou-se numapoltrona e começou a folheá-lo. Minutos depois, estavaabsorvido na sua leitura. Era o livro mais surpreendente quejá lera. Tinha a sensação de que, requintadamente ataviados eao som suave de flautas, os pecados do mundo passavam anteseus olhos em mudo cortejo. Coisas que ele vagamente sonharatornavam-se subitamente reais. Coisas que nunca sonhara eramgradualmente reveladas. Era um romance sem enredo e com uma única personagem.Tratava-se, de facto, de um mero estudo psicológico de umdeterminado jovem parisiense que passava a vida a tentarcompreender no século xIx todas as paixões e métodos depensamento pertencentes a todos os séculos, excepto ao seu,condensando, por assim dizer, em si mesmo os diversos estadospor que passara o espírito do mundo, amando pela sua simplesartificialidade as renúncias a que os homens insensatamentechamavam virtude, bem como as rebeldias naturais a que oshomens sensatos continuam a chamar pecado. O estilo em queestava escrito era aquele estilo curiosamente trabalhado, aomesmo tempo claro e obscuro, recheado de gíria e de arcaísmos,de expressões técnicas e de paráfrases elaboradas, e quecaracteriza a obra dos melhores artistas da escola francesados Symbolistes. Havia metáforas tão assombrosas comoorquídeas, e igualmente subtis no colorido. A vida dossentidos era descrita nos termos da filosofia mística. Porvezes, era difícil saber se o que se lia eram os êxtasesespirituais de um santo medieval ou as confissões mórbidas deum pecador moderno. Era um livro venenoso. O aroma penetrantedo incenso parecia ter-se colado às páginas, afectando océrebro. A simples cadência das frases, a subtil monotonia dasua musicalidade, tão recheada de complexos refrãos e deandamentos elaboradamente repetidos, produziam no espírito dorapaz, à medida que avançava de capítulo em capítulo, umaespécie de devaneio, uma maleita de sonho, que o abstraíam dofindar do dia e do adensar das sombras. 145Através das janelas luzia um céu verde-cobre, sem nuvens, poronde espreitava uma única e solitária estrela. Ele continuavaa ler a essa luz que se ia desvanecendo, até já não conseguirler mais. Então, após o seu criado Lhe ter feito lembrarvárias vezes o adiantado da hora, levantou-se e, passando aoquarto contíguo, pousou o livro na pequena mesa florentina quese encontrava sempre à sua cabeceira, e começou a vestir-separa o jantar. Eram quase nove horas quando chegou ao clube, onde foiencontrar Lord Henry sozinho na sala de estar, e com um armuito enfadado. - Peço-Lhe que me desculpe, Harry - exclamou -, masrealmente a culpa foi toda sua. O livro que me emprestoufascinou-me tanto que nem me apercebi do passar das horas. - Ah, sim. Eu calculei que você havia de gostar do livro -respondeu o seu anfitrião, levantando-se. - Eu não disse que gostei, Harry. Disse que me fascinou. Háuma grande diferença. - Ah, chegou a essa conclusão? - murmurou Lord Henry. E passaram à sala de jantar. Capítulo XI Passaram-se anos sem que Dorian Gray conseguissElibertar-se da influência deste livro. Ou talvez fosse maisexacto dizer que nunca procurou libertar-se dele. Mandou virde Paris nada menos que nove enormes brochuras da primeiraedição, que mandou encadernar em diferentes cores, de modo acondizerem com os seus diversos estados de espírito e com osvolúveis caprichos de um temperamento sobre o qual Lheparecia, por vezes, ter perdido todo o domínio. O herói, ofantástico jovem parisiense, em quem se casavam de modo tãosurpreendente o temperamento romântico e o científico,tornou-se para ele uma espécie de prefiguração de si próprio.E, de facto, era como se todo o livro contivesse a história dasua vida, escrita antes de ele a ter vivido. Havia um pormenor em que ele era mais afortunado do que ofantástico herói do romance. Nunca conhecera - nem nuncativera motivo para conhecer - o terror um tanto grotesco dosespelhos, e das polidas superfícies metálicas, e das águasparadas, que se apoderara do jovem parisiense tão cedo, e quefora causado pela súbita decomposição de uma beleza queoutrora havia sido, indubitavelmente, tão extraordinária. Eracom um júbilo quase cruel - e, possivelmente, em quase todo ojúbilo, como de certo em todo o prazer, há lugar para acrueldade - que Dorian costumava ler esta parte do livro, como relato verdadeiramente trágico, ainda que um poucoexagerado, da tristeza e do desespero de alguém que perderaaquilo que tanto prezava nos outros e no mundo. É que a beleza deslumbrante que fascinara Basil Hallward, emuitos outros além dele, parecia jamais abandoná-lo. Mesmoaqueles que ouviam dizer as coisas mais perversas acerca dele- de tempos a tempos, corriam por toda a Londres boatosesquisitos sobre o seu estilo de vida, que se tornavam tema deconversa nos clubes -, quando o viam, não podiam acreditar emcoisas que o difamassem. O seu semblante era sempre o dealguém que se mantivera impoluto em relação ao mundo. Oshomens que diziam grosserias calavam-se quando Dorian Grayentrava na sala. Havia na pureza do seu rosto qualquer coisaque os censurava. A sua simples presença trazia-lhes à memóriaa inocência que eles haviam conspurcado. Não sabiam como erapossível que alguém tão grácil e encantador pudesse ter-sefurtado à mácula de uma época que era, ao mesmo tempo, sórdidae sensual. Ao regressar a casa, depois de uma dessas misteriosas eprolongadas ausências que originavam aquelas insólitasconjecturas entre os amigos, ou que julgavam sê-lo, costumava,com frequência, subir silenciosamente até ao quarto trancado,abrir a porta com a chave que trazia agora sempre consigo, e,com um espelho, ficar em frente do retrato que dele fizeraBasil Hallward, olhando ora o rosto maligno e envelhecido datela, ora o jovem rosto formoso que lhe devolvia o sorriso nasuperfície polida do espelho. A nitidez do contrasteestimulava a sua sensação de prazer. Sentia-se cada vez maisenamorado da própria beleza, e cada vez mais interessado nacorrupção da sua alma. Costumava perscrutar com um cuidadominucioso, e às vezes com um gozo monstruoso e terrível, asrugas hediondas que vincavam a testa engelhada, ou quecontornavam os lábios grossos e sensuais, interrogando-se porvezes quais seriam os mais horríveis: se os estigmas dopecado, ou os da idade. Aproximava as suas mãos brancas dasmãos grosseiras e inchadas do retrato, e sorria. Desdenhava docorpo deformado e dos membros enfraquecidos. Em noites de insónia, quer nos seus aposentos delicadamenteperfumados, quer no quarto sórdido da pequena tabernamal-afamada perto das docas, que, disfarçado e com um nome 148fictício, tinha por hábito frequentar, havia mesmo momentos emque pensava na ruína que infligira à sua alma, sentindo umacompaixão que era tanto mais pungente por ser totalmenteegoísta. Mas momentos como esses eram raros. Aquelacuriosidade sobre a vida que Lord Henry fora o primeiro adespertar nele, quando se sentaram juntos no jardim do amigoBasil, parecia aumentar gratificantemente. Quanto mais sabia,mais desejava saber. Ele tinha apetites loucos que se tornavammais famintos à medida que os saciava. Porém, não era verdadeiramente um irresponsável, pelo menosnas suas relações sociais. Uma ou duas vezes por mês durante oInverno, e todas as noites de quarta-feira durante atemporada, abria ao mundo as portas da sua belíssima casa, emandava vir os músicos mais aclamados na altura, a fim dedeliciarem os convidados com a magia da sua arte. Os seusjantares íntimos, para a organização dos quais contava semprecom as orientações de Lord Henry, eram afamados tanto pelaesmerada selecção dos convidados e sua distribuição peloslugares, como pelo requinte da decoração da mesa, com seusdelicados arranjos sinfónicos de flores exóticas, e toalhasbordadas, e a baixela antiga de ouro e prata. Havia mesmomuitos homens, particularmente os muito jovens ainda, queviam, ou imaginavam que viam, em Dorian Gray a concepçãoexacta do modelo com que frequentemente haviam sonhado notempo de estudantes em Eton ou Oxford: o modelo em que deviamcoexistir a verdadeira cultura do erudito e toda a graça,distinção e urbanidade de um cidadão mundano. Comparavam-noàqueles de quem Dante diz que procuravam "tornar-se perfeitospela adoração da beleza." Tal como Gautier, era alguém paraquem o mundo visível existia,. E, sem dúvida, para ele a Vida era, em si mesma, aprimordial, a mais grandiosa de todas as artes, e, por issomesmo, todas as outras artes pareciam ser os preparativos paraa Vida. A moda, que torna a verdadeira extravagânciamomentaneamente universal, e o dandismo, que, a seu modo, 149é uma tentativa de afirmar a absoluta modernidade da beleza,não deixavam de exercer sobre ele o seu fascínio. O modo devestir e os ademanes especiais que por vezes adoptava tinhamacentuada influência nos jovens peraltas dos bailes deMayfair, e das janelas dos clubes de Pall Mall, que o copiavamem tudo, tentando reproduzir o encanto ocasional das suasgraciosas, embora para ele apenas meio sérias, afectações. De facto, embora estivesse disposto a aceitar o lugar quelhe foi oferecido, quase de imediato, quando atingiu amaioridade, e até sentisse um prazer subtil ante a ideia deque podia ser de facto para a Londres do seu tempo o que oautor do Satyricon fora para a Roma imperial de Nero,intimamente, porém, desejava ser algo mais do que um meroarbiter elegantiarum, do que ser consultado sobre a melhormaneira de pôr uma jóia, ou fazer o nó a uma gravata, ou andarcom uma bengala. Procurava elaborar um novo projecto de vida,que teria fundamentos filosóficos próprios e umaregulamentação de princípios, e encontrar na espiritualizaçãodos sentidos a sua consumação mais sublime. O culto dos sentidos tem sido frequentemente, e muitojustamente, condenado, dado que os homens sentem um naturalinstinto de terror em relação às paixões e às sensações queparecem ser mais fortes do que eles, e de que têm aconsciência de partilhar com formas de vida inferiores. Masera evidente para Dorian Gray que a verdadeira natureza dossentidos nunca fora compreendida, e que permaneceramindomáveis e animalescos unicamente porque o mundo procurarasubmetê-los pela abstinência ou matá-los pela flagelação, emvez de procurar transformá-los em elementos de uma novaespiritualidade, em que um elevado instinto de beleza seria acaracterística dominante. Ao relembrar o percurso do homem aolongo da história, assediava-o um sentimento de perda. Tantarenúncia! E para tão ínfimo propósito! Ocorreram loucasrejeições deliberadas, formas monstruosas de autoflagelação ede rejeição de si mesmo, com origem no medo, 150e cujo resultado foi uma degradação infinitamente maisterrível do que a degradação imaginada, a que, por ignorância,se tentara fugir E a Natureza, na sua espantosa ironia,forçava o anacoreta a alimentar-se com os animais selvagens dodeserto, e ao eremita dava os animais do campo por companhia. Sim, deveria haver, como profetizara Lord Henry, um novohedonismo que recriasse a vida e a salvasse desse austero esombrio puritanismo que, curiosamente, está de novo em voganos nossos dias. Deveria ter, obviamente, o apoio dainteligência, sem, no entanto, aceitar teoria ou sistema queimplicasse o sacrifício de qualquer género de experiênciaapaixonada. O seu objectivo deveria ser mesmo a própriaexperiência, e não os frutos da experiência, por muito docesou amargos que fossem. Do ascetismo, que enfraquece ossentidos, bem como da vil devassidão, que os insensibiliza,nada haveria de saber. Deveria, contudo, ensinar o homem aconcentrar-se nos momentos da vida, visto ela ser um brevemomento. Não somos poucos os que às vezes acordamos antes doalvorecer, quer após uma daquelas noites sem sonhos que quasenos fazem enamorar pela morte, quer numa daquelas noites dehorror e disforme alegria, quando pelas câmaras do cérebroesvoaçam fantasmas, mais terríveis do que a própria realidade,e o instinto, com aquela vida intensa que nos espreita emtodos os bizarros grotescos, e que confere à arte gótica a suaduradoura vitalidade, arte essa que, como podemos imaginar, éespecificamente a arte dos que têm as mentes perturbadas pelomal do devaneio. Pálidos dedos penetram, trémulos, pelascortinas. Em negras formas fantásticas, sombras mudas rastejampara os recantos do quarto e aí se encolhem. Ouve-se lá fora arestolhada dos pássaros por entre as folhas, ou o rumor doshomens que vão para o trabalho, ou ainda o murmúrio e o gemidodo vento a descer as colinas, ou a vaguear em redor dosilêncio da casa como se receasse despertar os que dormem,mesmo quando é forçoso fazer sair o sono da sua púrpura gruta. 151Ergue-se véu após véu da névoa ténue e sombria, e as coisasretomam gradualmente as formas e as cores, e vemos a madrugadaa refazer o mundo na sua forma primeva. Os pálidos espelhosrecuperam sua vida mímica. Os castiçais apagados encontram-seonde os deixáramos, e a seu lado está o livro de estudo a quenão se cortaram todas as páginas, ou a flor armada quehavíamos usado no baile, ou a carta que receáramos ler, ou quefora lida vezes sem conta. Nada nos parece alterado. Dassombras irreais da noite regressa a vida real que conhecíamos.Temos de a retomar no ponto em que a havíamos deixado, e entãoassalta-nos uma sensação terrível da necessidade de umaenergia permanente na invariável ronda extenuante dos hábitosestereotipados, ou um anseio desmedido por uma hipotéticamanhã em que os nossos olhos acordem para um mundo renovadonas trevas para nosso prazer, um mundo em que as coisas tomemnovas formas e novas cores, e que tenha mudado, ou tenhaoutros segredos, um mundo em que o passado seja ínfimo oumesmo inexistente, ou que não sobreviva, pelo menos sobqualquer forma consciente de dever ou remorso, pois que até alembrança da alegria traz amargura, e as recordações do prazertrazem mágoas. A criação de tais mundos afigurava-se a Dorian Gray como overdadeiro objectivo, ou um dos verdadeiros objectivos, davida, e, na busca de sensações que fossem simultaneamentenovas e deliciosas, e possuíssem aquele elemento de novidadeque é tão essencial ao romanesco, adoptava frequentementecertos estilos de pensamento que ele sabia serem estranhos àsua natureza, entregava-se às suas subtis influências, e,depois de lhes ter realmente apreendido o significado esatisfeito a sua curiosidade intelectual, abandonava-os comaquela singular indiferença que não é incompatível com umtemperamento apaixonado e que, de facto, na opinião de certospsicólogos modernos, chega a ser sua condição. Correu uma vez o boato de que ele iria ingressar nocatolicismo, e era verdade que tinha sido sempre atraído peloritual da Igreja de Roma. 152O sacrifício quotidiano, realmente mais impressionante do quetodos os sacrifícios do mundo antigo, emocionava-o, tanto pelaextraordinária rejeição da evidência dos sentidos como pelasimplicidade primitiva dos seus elementos, e o eterno pathosda tragédia humana que pretendia simbolizar. Adoravaajoelhar-se no frio pavimento de mármore, observando osacerdote, na sua casula pesada e sumptuosa, a afastarlentamente e com mãos brancas o véu do tabernáculo, ou aelevar bem alto a custódia em forma de lanterna, cravejada dejóias e contendo aquela pálida hóstia que, por vezes, pensamosser de facto o panis celestis, o pão dos anjos, ou, com osparamentos da Paixão de Cristo, partir a hóstia no cálice,batendo no peito em contrição dos seus pecados. Os turíbulosfumegantes, que meninos de ar grave, vestidos de renda eescarlate, balouçavam no ar como grandes flores douradas,exerciam nele um misterioso fascínio. Ao dirigir-se para asaída, costumava olhar admirado para os negrosconfessionários, e desejava poder sentar-se na vagaobscuridade do interior de um deles para escutar os homens eas mulheres a segredarem, através da rede gasta, a verdadeirahistória das suas vidas. Mas nunca caiu no erro de impedir o curso do seudesenvolvimento intelectual com a aceitação formal de qualquercredo ou sistema, ou de confundir uma casa de habitação comuma estalagem, que serve apenas para se passar uma noite, oualgumas horas de uma noite em que não há estrelas e a Lua seausenta para nova gestação. O misticismo, com o seu mágicopoder de tornar insólitas as coisas banais do nossoquotidiano, e o misterioso antinomianismo que parece sempreacompanhá-lo, atraíram-no durante um tempo, e durante um tempovoltou-se para as doutrinas materialistas do movimento doDarwinismts alemão, encontrando um prazer singular emdescobrir as origens dos pensamentos e das paixões dos homensem alguma pequena célula perlada do cérebro, ou algum nervobranco do corpo, deleitando-se com a noção de que o espíritodepende totalmente de determinadas condições físicas, 153mórbidas ou saudáveis, normais ou doentes. Todavia, como jáfoi afirmado antes, nenhuma teoria da vida lhe pareciaimportante, quando comparada com a própria vida. Tinha a plenaconsciência de quão estéril é toda a especulação intelectual,quando dissociada da acção e da experimentação. Sabia que ossentidos têm, em não menor grau do que a alma, os seusmistérios espirituais a revelar. E, por isso, passou a estudar os perfumes e os segredos doseu fabrico, destilando óleos de odor intenso e queimandoresinas aromáticas do Oriente. Descobriu que todo o estado deespírito tinha o seu equivalente na vida sensorial, e resolveudescobrir a sua verdadeira relação, querendo saber o queconteria o olíbano que nos tornava místicos, e o âmbar-grisque nos atiçava as paixões, e as violetas que despertavamlembranças de amores passados, e o almíscar que perturbava océrebro, e ainda a champaca que afectava a imaginação, etentando repetidas vezes elaborar uma verdadeira psicologiados perfumes e avaliar as várias influências das raízesodoríferas, e das flores de perfumados pólens, ou dos bálsamosaromáticos, e das madeiras escuras e fragrantes, do nardoindiano que provoca náuseas, da hovénia que enlouquece oshomens, e dos aloés que, dizem, são capazes de expulsar daalma a melancolia. Noutra altura, dedicou-se inteiramente àmúsica, e, numa enorme sala de gelosias, com o tecto pintado aouro e vermelhão e de paredes lacadas verde-azeitona,costumava organizar originais concertos, em que arrebatadosciganos arrancavam de pequenas cítaras músicas desenfreadas,ou solenes tunisinos de xales amarelos desferiam as cordastensas de monstruosos alaúdes, enquanto negros sorridentesbatiam monotonamente em tambores de cobre, e, acocorados sobretapetes escarlates, esguios indianos de turbante sopravamlongas flautas de junco ou metal, e encantavam, ou fingiam queencantavam, grandes cobras-capelo e horrendas víborascurnudas. As pausas abruptas e as dissonâncias estridentes damüsica bárbara faziam-no vibrar às vezes, 154quando a graça de Schubert, e a beleza melancólica de Chopin,e até as poderosas harmonias de Beethoven eram ignoradas pelosseus ouvidos. Coleccionava os mais exóticos instrumentosprovenientes de todos os cantos do mundo,.encontrados quer nostúmulos de nações desaparecidas, quer entre as poucas tribosselvagens que sobreviveram ao encontro com as civilizaçõesocidentais, e adorava tocar-lhes e experimentá-los. Possuía osmisteriosos furuparis dos índios do rio Negro, que estãovedados aos olhos das mulheres, e que mesmo os jovens só podemver depois de submetidos a jejuns e flagelações, e os potes debarro dos peruanos que contêm o piar agudo das aves, e asflautas de ossos humanos, como as que Alfonso de Ovalle ouviuno Chile, e os sonoros jaspes verdes que existem perto deCuzco e emitem uma nota de singular doçura. Possuía aindacabaças cheias de seixos que chocalhavam quando sacudidas, olongo clarim dos mexicanos, onde o tocador não sopra, masaspira o ar, o estridente ture das tribos da Amazónia, que étocado por sentinelas alcandoradas o dia inteiro em altasárvores, e que se podem ouvir, segundo dizem, a uma distânciade três léguas, o teponazili, que tem duas línguas de madeiravibrantes e que é percutido com paus untados com uma gomaelástica obtida do suco leitoso de plantas, os sinos yotl dosastecas, que se penduram em cachos como uvas, e um enormetambor cilíndrico, coberto com as peles de grandes serpentes,como o que Bernal Diaz viu quando entrou com Cortez no templomexicano, e de cujo som lúgubre nos deixou uma descrição tãovívida. O exotismo destes instrumentos fascinava-o, sentindoum prazer especial ao pensar que a Arte, tal como a Natureza,tem os seus monstros, coisas de formas grosseiras e vozeshediondas. No entanto, passado algum tempo, cansou-se deles, epassou a ocupar o seu camarote na Ópera, quer sozinho, quer nacompanhia de Lord Henry, ouvindo extasiado o Tannhauser evendo no prelúdio dessa magnífica obra de arte umaapresentação da tragédia da sua própria alma. 155 Numa ocasião, passou a interessar-se pelo estudo das jóias,e apareceu num baile de máscaras fantasiado de Anne deJoyeuse, almirante de França, com um vestido coberto dequinhentas e sessenta pérolas. Este interesse subjugou-odurante anos, e pode dizer-se mesmo que nunca o deixou.Passava frequentemente um dia inteiro a acomodar e a tornar aacomodar nos estojos as diversas pedras que coleccionara, comoo crisoberílio verde-azeitona que toma a cor vermelha à luz dachama, o cimofânio com seu veio de prata parecendo arame, operidoto cor de pistácio, topázios róseos e amarelo-vinho,carbúnculos de um escarlate flamejante com trémulas estrelasde quatro raios, cinamonos cor de fogo, espinelas violetas ecor de laranja, e ametistas com suas camadas alternadas derubi e safira. Adorava o ouro-rubro da hematite, e obranco-pérola da selenite, e o arco-íris fragmentado da opalaleitosa. Mandou vir de Amesterdão três esmeraldas de tamanhoinvulgar e de cor intensa, e tinha uma turquesa de la vieilleroche que era cobiçada por todos os entendidos. Descobriu também fantásticas histórias de jóias. NoClericalis Disciplina de Afonso mencionava-se uma serpente comolhos de jacinto autêntico, e na história lendária deAlexandre, o conquistador de Emátia, conta-se que eleencontrou no vale do Jordão cobras com colares de esmeraldasverdadeiras que lhes cresciam no dorso. Havia uma pedrapreciosa no cérebro do dragão, conta-nos Filostrato, e aomostrarem-lhe letras douradas e uma túnica escarlate o monstropodia cair num sono mágico e ser morto. Segundo o grandealquimista Pierre de Boniface, o diamante tornava um homeminvisível e a ágata-da-índia tornava-o eloquente. A cornalinaaplacava a ira, o jacinto provocava sono e a ametistadissipava os vapores do vinho. A granada expulsava os demóniose o hidrópico roubava a cor à Lua. A slenite crescia e minguava com a Lua, e o meloceu, quedescobre os ladrões, só podia ser influenciado pelo sangue decabrito. Leonardus Camillus viu uma pedra branca extraída docérebro de um sapo recém-morto e que era um antídoto contra oveneno. 156O bezoar, que foi encontrado no coração do cervo árabe, era umamuleto que curava a peste. Nos ninhos dos pássaros árabeshavia as aspilotas que, segundo Demócrito, protegiam do fogoquem as usasse. Na cerimónia da sua coroação, o rei de Ceilão percorreu acavalo as ruas da cidade levando na mão um enorme rubi. Asportas do palácio do Preste João eram feitas de sardónica, como corno da víbora cornuda embutido, a fim de não poder entrarhomem com veneno. Por cima do frontão estavam duas maçãs deouro com dois carbúnculos, de modo a que brilhasse o ourodurante o dia, e os carbúnculos durante a noite. No estranhoromance de Lodge, Uma Margarida da América, dizia-se que noquarto da rainha se podiam contemplar todas as damas castas domundo, incrustadas em prata, ao olhar através de belosespelhos de crisólitos, carbúnculos, safiras e verdesesmeraldas. Marco Polo vira as gentes de Zipangu colocarempérolas rosadas nas bocas dos mortos. Um monstro marinhoenamorara-se da pérola que o mergulhador trouxera ao reiPerozes, matara o ladrão e levara sete luas a chorar a suaperda. Quando os hunos atraíram o rei para o grande fosso, eleatirou-a fora - é Procópio que nos conta a história - e jamaisfoi encontrada, posto que o imperador Anastácio oferecesse porela cinco quintais de moedas de ouro. O rei do Malabarmostrara a um veneziano um rosário de trezentas e quatropérolas, cada uma por um deus que adorava. Quando o duque de Valentinois, filho de Alexandre VI,visitou Luís XII de França, o seu cavalo ia carregado defolhas de ouro, segundo o relato de Brantôme, e o chapéu tinhafiadas duplas de rubis que faziam um grande resplendor. Carlosde Inglaterra montava a cavalo com estribos suspensos porquatrocentos e vinte e um diamantes. Ricardo II tinha umtraje, avaliado em trinta mil marcos, todo coberto de rubisespinélios. Hall contava que Henrique VIII, quando ia acaminho da Torre de Londres antes da sua coroação, levava umgibão lavrado a ouro, o peitilho bordado a diamantes, 157e outras pedras preciosas, e, pelo pescoço, um boldrié deenormes espinélios. As favoritas de Jaime I usavam brincos deesmeraldas engastadas em filigrana de ouro. Eduardo II deu aPiers Gaveston um arnês de ouro rubro cravejado de jacintos,um colar de rosas de ouro encastoadas em turquesas e umbarrete recamado de pérolas. Henrique II usava luvas que lhechegavam ao cotovelo enfeitadas de jóias, e tinha uma luva defalcoaria cosida com doze rubis e cinquenta e duas grandespérolas orientais. O chapéu ducal de Carlos, o Temerário, oúltimo duque de Borgonha da sua linhagem, era ornamentado compérolas em forma de pêra e cravejado de safiras. Que requintada fora a vida de outrora! Que deslumbrante emseu fausto e adornos! Até a leitura sobre o luxo devotado aosmortos era maravilhosa. Depois, desviou a sua atenção para os bordados e para astapeçarias que faziam as funções de frescos nos aposentosgelados das nações nórdicas da Europa. À medida que iainvestigando - ele sempre tivera a extraordinária capacidadepara ficar absorvido por qualquer assunto que o interessassede momento -, quase se entristecia ao pensar na ruína que oTempo infligia às coisas belas e maravilhosas. Ele, ao menos,fora poupado. A um Verão seguia-se outro Verão, os junquilhosamarelos floriam e murchavam vezes sem conta, as noites dehorror repetiam a história da sua vergonha, e ele, todavia,permanecia inalterado. Não havia Inverno que conseguissedesfigurar-lhe o rosto ou tocar na sua viçosa formosura. Comotudo era diferente com as coisas materiais! Para onde seteriam esvanecido? Onde estava a magnífica túnica cor deaçafrão que fora feita por raparigas morenas para comprazerAtena e pela qual os deuses haviam pelejado contra osgigantes? E o enorme velário que Nero estendera sobre oColiseu de Roma, esse gigantesco toldo de púrpura em queestava representado o céu estrelado, e Apolo conduzindo umcarro puxado por brancos corcéis de rédeas douradas? Tanto quegostaria de ver as originais toalhinhas lavradas para a mesado Sacerdote do Sol, em que se ostentavam todos os acepipes, 158e todas as iguarias invejáveis para um festim, o panomortuário do rei Chilperico, com as suas trezentas abelhas deouro, as excêntricas túnicas que provocaram a indignação dobispo do Ponto e em que figuravam leões, panteras, ursos,cães, florestas, fragas, caçadores, tudo o que, em verdade, umpintor pode copiar da natureza, e o traje que Carlos deOrleães usou uma vez, as mangas bordadas com os versos de umacanção que começava "Madame, je suis tout joyeux", oacompanhamento musical da letra lavrado a fio de ouro, e cadanota (quadrada, como era uso na época) formada por quatropérolas. Leu a descrição de um quarto no palácio de Reims,preparado para uso da rainha Joana de Borgonha, decorado commil trezentos e vinte e um papagaios bordados e brasonados comas armas do rei, e quinhentas e sessenta e uma borboletas comas asas igualmente ornamentadas com as armas da rainha, tudolavrado a ouro. Catarina de Médicis mandara fazer para si umacama de viúva, de veludo negro polvilhado de crescentes esóis. As cortinas eram de damasco lavrado com coroas egrinaldas de folhas sobre fundo de ouro e prata, e franjas depérolas nas orlas, e a cama estava num quarto decorado comfilas de divisas da rainha recortadas em veludo negro sobretecido de prata. Luís XIV tinha nos seus aposentos cariátidesde quinze pés de altura e bordadas a ouro. O leito real deSobieski, rei da Polónia, era feito de brocado de ouro deEsmirna, bordado de turquesas com versículos do Corão. Ossuportes eram de prata dourada, ricamente cinzelada, eprofusamente incrustada de medalhões de esmalte e jóias. Foratrazido do arraial turco perto de Viena, e o estandarte deMaomé estivera aprumado sob o dourado cintilante do seudossel. E deste modo, durante um ano inteiro, ele procurou reunir osexemplares mais requintados de lavores têxteis e bordados queconseguia encontrar, adquirindo as delicadas musselinas deDelhi, finamente lavradas com palmas de fio de ouro, e todaspespontadas com asas de escaravelhos irisados, 159as gazes de Dacca que, pela sua transparência, são designadasno Oriente por «ar tecido», e «água corrente», e «orvalho danoite», exóticos panos estampados de Java, elaboradosreposteiros amarelos da China, livros encadernados em cetinsde tom castanho-dourado ou em sedas de tons de azul-claro ebordados com fleurs de lys, aves e imagens, véus de lacisbordados a ponto húngaro, brocados da Sicília e pesadosveludos de Espanha, lavores da Geórgia com suas moedasdouradas, e Foukousas do Japão com seus ouros esverdeados eaves de maravilhosa plumagem. Tinha também uma paixão especial por vestes eclesiásticascomo, aliás, tinha por tudo o que se relacionasse com oserviço religioso. Nas compridas arcas de cedro que ocupavam agaleria da ala oeste da sua casa, guardara grande quantidadede raros e belos exemplares de um autêntico guarda-roupa daNoiva de Cristo, que tem de usar púrpura, jóias e linho fino,a fim de esconder o corpo pálido e macerado, castigado pelosofrimento que busca para si, e magoado pelas dores que a simesma inflige. Possuía uma sumptuosa capa de asperges de sedacarmesim e damasco de fios de ouro, estampado com um motivorepetido de romãs douradas sobre flores simétricas de seispétalas e, de cada lado, o motivo de um ananás recamado dealjôfares. Os aurifrígios dividiam-se em painéis querepresentavam cenas da vida da Virgem, e a coroação da Virgemestava bordada a sedas de várias cores sobre o capelo. Era umtrabalho italiano do século xv. Outra capa era de veludo verdecom um bordado de folhas de acanto em forma de coração, deonde se prolongavam flores brancas de longos caules, cujospormenores eram realçados a fio de prata e cristais coloridos.O fecho tinha uma cabeça de serafim bordada em relevo a fio deouro. Os aurifrígios eram de um tecido adamascado de sedavermelha e ouro, e estavam recamados de medalhões de muitossantos e mártires, entre os quais figurava São Sebastião.Possuía também casulas de seda cor de âmbar, e seda azul ebrocado de ouro, e damasco amarelo de seda e pano de ouro, 160 ornamentadas com cenas da Paixão e Crucificação de Cristo, ebordadas com leões e pavões e outros símbolos, dalmáticas decetim branco e damasco rosa de seda, decoradas com túlipas egolfinhos e fleurs de lys, frontais de altar feitos de veludocarmesim e linho azul, e muitos corporais, toalhas de cálice esudários. Nos ofícios místicos em que estas coisas seutilizavam, havia algo que Lhe excitava a imaginação. É que estes tesouros, bem como tudo o que coleccionava nasua magnífica casa, serviriam de meios de esquecimento, comomeios de fugir, por algum tempo, ao medo que às vezes lheparecia quase grande demais para o poder suportar. Pendurara,com suas próprias mãos, na parede do quarto solitário etrancado onde passara tanto tempo da sua meninice, o terrívelretrato, cujas feições em mutação lhe mostravam a verdadeiradegradação da sua vida, e que ele ocultara com a colchapúrpura e dourada a servir de cortina. Passavam-se semanas semlá entrar, esquecia-se daquela pintura hedionda, e recuperavaa boa disposição, a sua admirável alegria, a sua entregaapaixonada à simples existência. Mas depois, de repente, haviauma noite em que saía sorrateiramente de casa, dirigia-se parasítios medonhos perto de Blue Gate Fields, e permanecia ládurante dias e dias até que o expulsavam. Quando regressava,sentava-se em frente do retrato, umas vezes abominando-o eabominando-se, mas, outras vezes, cheio daquele orgulhopróprio do individualismo que é, em parte, o fascínio pelopecado, sorrindo com íntimo prazer da sombra disforme quetinha de carregar o fardo que deveria ser seu. Alguns anos mais tarde, não suportava ausentar-se deInglaterra, e abandonou a villa de Trouville que partilhavacom Lord Henry, assim como a casinha branca, cercada de muros,de Argel, onde tinham passado mais de um Inverno. Detestavaseparar-se do retrato que já fazia parte da sua vida e, alémdisso, temia que durante a sua ausência alguém conseguisse teracesso ao quarto, apesar das complicadas trancas que mandaracolocar na porta. 161 Estava perfeitamente convencido de que isto nada revelaria aninguém. Era certo que, debaixo da sordidez e fealdade, oretrato mantinha uma acentuada parecença consigo, mas quepoderiam daí concluir? Ele rir se-ia de quem quer que tentasseescarnecer. Não fora ele que o pintara. Que tinha ele a vercom o seu aspecto, por muito desprezível e infame que fosse?Ainda que lhes contasse, iriam acreditar? Apesar de tudo, tinha medo. Por vezes, quando se encontravana sua casa enorme em Nottinghamshire, recebendo os jovenselegantes da sua categoria social que eram os seus habituaiscompanheiros, e deixando toda a região assombrada com o luxodesregrado e o fausto deslumbrante do seu estilo de vida,abandonava de súbito os convidados e regressava rapidamente aLondres para se certificar de que a porta não havia sidoforçada e que o retrato ainda se encontrava no seu lugar. Queaconteceria se fosse roubado? Só de pensar nisso ficava geladode pavor. Com certeza que, nesse caso, o mundo ficaria a sabero seu segredo. Talvez já o suspeitasse. Com efeito, embora muitos não resistissem ao seu fascínio,não eram poucos os que dele desconfiavam. Por pouco não foiexcluído, por votação, de um clube do West End, a que, pornascimento e posição social, tinha direito de se associar, econtava-se que em certa ocasião, ao ser acompanhado por umamigo até à sala de fumo do Churchill, o duque de Berwick eoutro cavalheiro levantaram-se ostensivamente e saíram.Circulavam a seu respeito histórias curiosas depois que elefez vinte e cinco anos. Corriam boatos de que fora vistoenvolvido numa rixa com marinheiros estrangeiros num antroabjecto das cercanias de Whitechapel, e que convivia comladrões e moedeiros falsos, conhecendo mesmo os segredos doseu ofício. As suas inexplicáveis ausências tornaram-seconhecidas de todos e, quando voltava a aparecer em sociedade,os homens cochichavam pelos cantos, ou passavam por ele com umsorriso sardónico, ou fitavam-no com olhar frio eperscrutador, como se pretendessem descobrir o seu segredo. 162 Ele, é claro, não dava importância a tais insolências eesboçadas desconsiderações, e, na opinião de muitas pessoas,os seus modos francos e afáveis, o encanto do seu sorrisogaiato e a graça infinita daquela maravilhosa juventude queparecia não deixá-lo nunca eram resposta suficiente àscalúnias - era assim que as designavam - que circulavam a seurespeito. Notava-se, contudo, que alguns dos que tinhamconvivido intimamente com ele começaram, passado algum tempo,a evitá-lo. As mulheres que o tinham adorado loucamente, e quepor sua causa haviam enfrentado afoitamente toda a censura dasociedade e desafiado as convenções, viam-se empalidecer devergonha ou horror se Dorian Gray entrava na sala. No entanto, estes escândalos segredados só aumentavam, aosolhos de muitos, o seu estranho e perigoso encanto. A suaenorme fortuna era um certificado de confiança. A sociedade,pelo menos a sociedade civilizada, nunca está predisposta aacreditar em tudo o que seja em detrimento daqueles que sãosimultaneamente ricos e fascinantes. Sente instintivamente queas maneiras são mais importantes do que a moral, e, em suaopinião, a respeitabilidade, por muito grande que seja, temmuito menos valor do que possuir-se um bom chef. E, afinal decontas, não serve de consolação dizerem-nos que o homem quenos ofereceu um péssimo jantar, ou um vinho de má qualidade,tem uma vida privada irrepreensível. As próprias virtudescardeais não podem resgatar entrées quase frias, como uma vezobservou Lord Henry num debate sobre o assunto, eprovavelmente haverá muito a dizer em abono da sua opinião. Oscânones da boa sociedade, na verdade, são, ou deveriam ser, osmesmos que os da arte. A forma é-lhe absolutamente essencial.Devia ter a dignidade inerente a uma cerimónia, bem como a suairrealidade, combinando o carácter insincero de uma peçaromântica com o espírito e a beleza que tornam essas peças tãodeliciosas para nós. Será a insinceridade assim tão terrível?Creio que não. É simplesmente um método que nos possibilitamultiplicar as nossas personalidades. 163 De qualquer modo, era essa a opinião de Dorian Gray. Ficavasurpreendido com a superficialidade da psicologia daqueles queconcebem o Ego do homem como coisa simples, permanente,fidedigna e de essência única. Para ele, o homem era um serque possui miríades de vidas e de sensações, uma criaturacomplexa e multiforme que levava dentro de si estranhasheranças de pensamento e paixão, e cuja carne estavacontaminada pelas monstruosas doenças dos mortos. Adoravapercorrer a fria e lúgubre galeria dos retratos da sua casa decampo e contemplar os vários retratos daqueles cujo sanguecorria nas suas veias. Lá estava Philip Herbert, descrito porFrancis Osborne nas suas Memórias dos Reinados da RainhaIsabel e do Rei Jaime I, como alguém que era acarinhado pelacorte pela formosura de seu rosto, que não o acompanhou pormuito tempo. A vida que por vezes levava teria sido a vida dojovem Herbert? Teria algum germe estranho e venenosotransitado de corpo para corpo até ter atingido o seu? Teriasido alguma vaga sensação dessa beleza destruída que o levara,tão de súbito e aparentemente sem motivo, a proferir, noatelier de Basil Hallward, a desvairada súplica que de talmodo modificara a sua vida? De gibão vermelho bordado a ouro,manto ornamentado de jóias, punhos e gola de orlas douradas,ali estava Sir Anthony Sherard, com a armadura negra eprateada aos pés. Qual teria sido o legado deixado por estehomem? O amante de Giovanna de Nápoles ter-lhe-ia legadoalguma herança de pecado e infâmia? Seriam os seus própriosactos apenas os sonhos que o morto não ousara realizar? Acolá,na tela desbotada, sorria Lady Elizabeth Devereux, com suatouca de gáze, peitilho de pérolas e mangas golpeadascor-de-rosa. Tinha uma flor na mão direita, e a mão esquerdaagarrava um colar esmaltado de rosas brancas e adamascadas. Namesa ao lado estavam um bandolim e uma maçã. Os seus pequenossapatos pontiagudos ostentavam grandes rosetas verdes.Conhecia a sua vida e as Histórias fantásticas acerca dos seusamantes. Teria ele herdado algo do seu temperamento? 164Aqueles olhos ovais e de pesadas pálpebras pareciam fitá-locom curiosidade. E George Willoughby, de cabelo empoado eextravagantes sinais postiços? Tinha um ar tão perverso! Rostotaciturno e moreno, e nos lábios sensuais um trejeito dedesdém. Delicados folhos de renda tombavam sobre as mãosdescarnadas e amarelas sobrecarregadas de anéis. Fora umperalvilho do século XvIII e, na sua juventude, o amigo deLord Ferrars. E aquele segundo Lord Beckenham, companheiro depândegas do Príncipe Regente e uma das testemunhas docasamento secreto com Mrs. Fitzherbert? Que elegante e altivo,com o cabelo castanho anelado e pose arrogante! Que paixõeslhe teria legado? Fora considerado um infame no seu tempo.Organizara as orgias da Carlton House. A estrela da Jarreteiracintilava-lhe no peito. A seu lado, via-se o retrato daesposa, uma mulher pálida de lábios finos, vestida de preto.Também o sangue dela circulava no seu corpo. Como tudo lheparecia estranho! E a sua mãe com um rosto de Lady Hamilton, eos lábios húmidos tingidos de vinho. Sabia o que herdara dela.Herdara a sua beleza e a paixão pela beleza dos outros. Elaria-se para ele no seu vestido solto de bacante. Tinha folhade vide nos cabelos. O roxo transbordava da taça que estavasegurando. Os rosados da tela haviam murchado, mas os olhoseram ainda deslumbrantes no brilho e intensidade da cor.Pareciam segui-lo para onde quer que fosse. Porém, na literatura, assim como na própria família,tínhamos antepassados talvez de tipo e temperamento maissemelhantes, e de cuja influência teríamos, por certo, umapercepção mais perfeita. Havia momentos em que toda a históriase apresentava a Dorian Gray simplesmente como uma crónica dasua própria vida, não como ele a vivera em acto ecircunstância, mas como a sua imaginação lha inventara, comoacontecera em seu cérebro e suas paixões. Tinha a sensação deas haver conhecido todas, essas estranhas e terríveis figurasque haviam passado pelo palco do mundo, e que tornaram opecado tão maravilhoso e o mal tão pleno de subtileza. 165Parecia-Lhe que, de modo misterioso, as suas vidas haviam sidoa sua própria vida. O herói do fantástico romance que exercera em sua vidatamanha influência também conhecera essa singular fantasia. Nosétimo capítulo, conta como ele, de coroa de louros para nãoser fulminado por um raio, se sentara, como Tibério, numjardim de Capri a ler os livros indecorosos de Elephantis,enquanto anões e pavões se passeavam à sua volta e o tocadorde flauta zombava do rapaz do incensório, e, como Calígula,embriagara-se com os jóqueis de camisas verdes nas estrebariase ceara numa manjedoura de marfim com um cavalo de testeiraornamentada de jóias, e, fazendo de Domiciano, vagueara por umcorredor forrado de espelhos de mármore, procurando, com olhardesvairado, o reflexo do punhal que havia de pôr termo à suavida, enfermando de ennui, esse terrível taedium vitae, que seabate sobre aqueles a quem a vida nada recusa, e, por umalímpida esmeralda, observara as rubras carnificinas do Circoe, depois, em liteira de pérolas e púrpura puxada por mulas deferraduras de prata, fora transportado pela Rua das Romãs atéa uma Casa do Ouro, e ouvira aclamarem Nero César à suapassagem, e, agora como Heliogábalo, pintara o rosto de coresvárias, e fiara na roca junto com as mulheres, e trouxera aLua de Cartago, entregando-a ao Sol em místicas núpcias. Dorian lia vezes sem conta este fantástico capítulo, etambém os dois capítulos que se Lhe seguiam, em que, como emestranhas tapeçarias ou em esmaltes habilmente trabalhados, serepresentavam as formas horrendas e belas daqueles que ovício, e o Sangue e o Tédio haviam transformado em monstros ouloucos, Filippo, duque de Milão, que matou a mulher e lhepintou os lábios com um veneno escarlate, para que o amantesorvesse a morte do cadáver que acariciava, Pietro Barbi, oVeneziano, conhecido pelo nome de Paulo Segundo, que, devido àsua soberba, procurou assumir o título de Formoso, e cujatiara, avaliada em duzentos mil florins, foi comprada ao preçode um pecado tremendo, Gian Maria Visconti, 166 167que utilizava cães para caçar homens vivos, e cujo cadáverassassinado foi coberto de rosas por uma meretriz que o amara,o Bórgia montado em seu cavalo branco, com o Fratricídiocavalgando ao lado, e o manto manchado com o sangue dePerotto, Pietro Mario, o jovem cardeal-arcebispo de Florença,filho e favorito de Sisto IV, cuja beleza só era igualada pelodeboche, e que recebeu Leonor de Aragão num pavilhão de sedabranca e carmesim, cheio de ninfas e centauros, e mandoudourar um rapaz, para que este servisse o banquete comoGanimedes ou Hilas, Ezzelin, cuja melancolia só se curava como espectáculo da morte, e que tinha paixão pelo vermelho dosangue, assim como outros homens têm pelo vermelho do vinho -filho do Demónio, como era vulgarmente designado, trapaceara opai aos dados quando jogava a própria alma, Giambattista Cibo,que por zombaria adoptou o nome de Inocente e em cujastórpidas veias um médico judeu infundiu o sangue de trêsrapazinhos, Sigismondo Malatesta, amante de Isotta e senhor deRimini, cuja efígie foi queimada em Roma como inimigo de Deuse do homem, e que estrangulou Polyssena com um guardanapo eenvenenou Ginevra dEste por uma taça de esmeralda, e que, emhomenagem a uma paixão infame, construiu uma igreja pagã paraculto cristão, Carlos VI, que amara a mulher do irmão com taldesvario que um leproso o avisara da loucura que o havia deacometer, e, quando o cérebro entrou em delírio, só oacalmavam cartas sarracenas em que figuravam o Amor e a Mortee a Loucura, e, com seu gibão ornamentado, boné recamado dejóias e caracóis parecendo acantos, Grifonetto Baglioni, quematou Astorre com a noiva, e Simonetto com seu pagem, e cujaformosura era tanta que, quando morria estendido na piazzaamarela de Perugia, os que o haviam odiado não puderam evitaro pranto, e Atlanta, que o amaldiçoara, até o abençoou. Havia em todos eles um horror fascinante. Via-os à noite eperturbavam-lhe a imaginação durante o dia. A Renascençaconhecia estranhos processos de envenenamento - oenvenenamento por meio de um elmo e um archote aceso, uma luabordada e um leque ornamentado de jóias, uma dourada caixa dearomas e uma coleira de âmbar. Dorian Gray fora envenenado porum livro. Em certos momentos, considerava o mal como umsimples meio de poder realizar a sua concepção do belo. Capítulo XII Foi a nove de Novembro, véspera do seu trigésimo oitavoaniversário, como depois haveria de se recordar tantas vezes. Deviam ser onze horas quando, depois de ter jantado com LordHenry, se dirigia para casa embrulhado num pesado casacão depeles, que a noite estava fria e o nevoeiro era cerrado. Àesquina da Grosvenor Square com a South Audley Street, passoupor ele, envolto pela bruma, um homem muito apressado e com agola do sobretudo cinzento levantada. Levava uma mala. Dorianreconheceu-o. Era Basil Hallward. Apoderou-se dele umainexplicável sensação de medo. Fingindo que não o reconhecia,continuou a caminhar muito depressa em direcção a casa. Mas Hallward vira-o. Dorian ouviu-o primeiro parar nopasseio, depois a correr atrás de si. Em breves instantes, amão dele agarrava-lhe o braço. - Dorian! Que sorte fantástica! Tenho estado a aguardá-lo nasua biblioteca desde as nove horas. Por fim tive pena do seupobre criado e, quando me acompanhou à saída, disse-Lhe que sefosse deitar. Vou para Paris no comboio da meia-noite, eprecisava muito de o ver antes de partir. Bem me pareceu queera você, ou antes o seu casacão de peles, quando passou pormim. Mas não tinha a certeza. Não me reconheceu? - Com este nevoeiro, meu caro Basil? Se eu nem consigoreconhecer a Grosvenor Square! Creio que a minha casa ficaalgures por aqui, mas não tenho a certeza. Tenho pena que voçêse vá ausentar, pois há séculos que não o vejo. Mas vai voltarem breve, creio? - Não, vou ausentar-me de Inglaterra por seis meses. 169Tenciono alugar um atelier em Paris e ficar lá enclausuradoaté acabar um grande quadro que tenho na ideia. Contudo, nãoera de mim que queria falar. Ora cá estamos à sua porta.Permita-me que entre por uns minutos. Tenho uma coisa para lhedizer. - Com muito prazer. Mas não irá perder o comboio? -perguntou Dorian Gray, languidamente, subindo os degraus eabrindo a porta com a chave. À luz do candeeiro, que a custo passava através do nevoeirocerrado, Hallward olhou para o relógio. - Tenho imenso tempo - respondeu. - O comboio não parteantes da meia-noite e quinze, e são apenas onze horas. Eu iamesmo a caminho do clube procurá-lo, quando o encontrei. Bemvê, não vou perder tempo com a bagagem, pois já despachei amais pesada. Só tenho esta mala comigo, por isso consigochegar à estação Victoria em vinte minutos. Dorian olhou para ele e sorriu. - Que maneira de viajar para quem é pintor da moda! Com umamala Gladstone e um sobretudo! Vamos entrar, não vá o nevoeirometer-se dentro de casa. Mas veja lá se não fala de coisassérias. Actualmente não há nada sério. Pelo menos, não deveriahaver. Hallward abanou reprovadoramente a cabeça, seguindo atrás deDorian até à biblioteca. Na ampla lareira ardia um grande lumede lenha. Os candeeiros estavam acesos, e, sobre uma mesinhatauxiada, encontrava-se aberto um estojo holandês de pratapara bebidas, com sifões de soda e grandes copos de cristallapidado. - Veja como o seu criado me pôs completamente à vontade,Dorian. Deu-me tudo o que eu quis, incluindo os seus melhorescigarros de ponta dourada. É um indivíduo muito amável. Gostomuito mais dele do que do francês que você tinha. A propósito,o que é feito do francês? Dorian encolheu os ombros. - Creio que casou com a criada de Lady Radley, eestabeleceu-a em Paris como costureira inglesa. 170 171Por lá a Anglomanie está agora muito em moda, pelo que oiçodizer. Uma palermice dos Franceses, não acha? Mas possoafirmar-lhe que ele não era um mau criado. Nunca gostei dele,mas não tinha razões de queixa. Às vezes imaginamos coisastotalmente absurdas. Ele era até de uma grande dedicação, eparecia muito penalizado quando se foi embora. Quer outro brandy com soda? Ou prefere vinho do Reno comágua seltzer? Eu tomo sempre Reno com água seltzer. Deve haver na sala ao lado. - Obrigado, não tomo mais nada - respondeu o pintor, tirandoo boné e o sobretudo e atirando-os para cima da mala, quehavia colocado a um canto. - E agora, meu caro amigo, querofalar consigo muito a sério. Não faça esse ar tão aborrecido.Asim, você dificulta-me tudo muito mais. - De que se trata? - exclamou Dorian, com seu modopetulante, atirando-se para o sofá. - Espero que não seja ameu respeito. Esta noite estou cansado de mim. Gostaria de seroutra pessoa. - É a seu respeito - respondeu Hallward, na sua voz grave eprofunda -, e tenho de Lho dizer. Só o vou demorar meia hora. Dorian suspirou, e acendeu um cigarro. - Meia hora! - disse em voz baixa. - Não é pedir-Lhe muito, Dorian, e é exclusivamente para seubem que vou falar. Parece-me justo que você saiba que emLondres se dizem as coisas mais horríveis acerca de si. - Não quero saber nada dessas coisas. Adoro os escândalosdos outros, mas os escândalos acerca da minha pessoa não meinteressam. Falta-lhes o encanto da novidade. - Deviam interessar-lhe, Dorian. Todo o homem que é umcavalheiro está interessado pelo seu bom nome. Você não há-dequerer que falem de si como se fosse uma coisa desprezível edegradada. É claro que você tem a sua posição social, e a suafortuna, e todas essas coisas. Mas a posição social e afortuna não bastam. Para dizer a verdade, não acredito de modoalgum nesses boatos. De qualquer modo, não consigo acreditarneles quando o vejo a si. O pecado é uma coisa que ficaestampada no rosto de um homem. Não se pode ocultar. Aspessoas falam às vezes de vícios secretos. Isso são coisas quenão existem. Se um desgraçado de um homem tiver um vício, esteé visível nas comissuras dos lábios, no descair das pálpebras,até na forma das mãos. Certa pessoa, de quem não vou revelar onome, mas que você conhece, veio o ano passado ter comigo paraeu lhe fazer o retrato. Nunca a vira antes, nem nunca ouvirafalar dela até então, embora tenha ouvido muitas coisas depoisdisso. Propôs-me um preço exorbitante. Recusei. Havia qualquercoisa no feitio dos seus dedos que detestei. Sei agora que eutinha muita razão em relação ao que imaginava acerca dela.Leva uma vida medonha. Mas você, Dorian, com esse rosto puro,luminoso, inocente, e a sua espantosa juventude incorrupta...não posso acreditar em nada do que dizem contra si. E, noentanto, vejo-o muito raramente, e você agora nunca vai aoatelier. Quando estou afastado de você e oiço todas essascoisas hediondas que as pessoas segredam a seu respeito, nãosei o que dizer. Dorian, porque é que um homem como o duque deBerwick sai da sala de um clube quando você entra? Por que éque muitos cavalheiros de Londres não vão visitá-lo a suacasa, nem o convidam à deles? Você era amigo de Lord Staveley.Encontrei-o na semana passada ao jantar. Quando o seu nomesurgiu casualmente a meio da conversa, a propósito dasminiaturas que você emprestou para a exposição de Dudley,Staveley fez um trejeito de desprezo, dizendo que você teriaexcelente gosto artístico, mas era um homem que nenhuma meninade espírito ingénuo devia ser autorizada a conhecer, e comquem nenhuma mulher honesta se deveria sentar na mesma sala.Fiz-lhe lembrar que eu era seu amigo, e perguntei-lhe o quepretendia dizer com aquelas insinuações. E disse-me. Disse-momesmo ali diante de toda a gente. Foi horrível! Por que seráque a sua amizade traz tanta desgraça aos jovens? Houve o casodaquele infeliz rapaz da guarda real que se suicidou. Você eraum grande amigo dele. E houve o de Sir Henry Ashton, 172que teve de sair de Inglaterra, com a sua repùtação manchada.Você e ele eram inseparáveis. E que dizer de Adrian Singleton,e do fim terrível que teve? E o filho único de Lord Kent e asua carreira? Encontrei ontem o pai na St. Jamess Street.Parecia destroçado de vergonha e desgosto. Como explica o casodo jovem duque de Perth? Que género de vida é a dele agora?Que homem de bem gostaria de andar na sua companhia? - Basta, Basil! Você fala de coisas que desconhece - disseDorian Gray, mordendo o lábio, e com um tom de incomensuráveldesprezo na voz. - Pergunta-me por que sai Berwick da salaquando eu entro. E porque sei tudo da vida dele, e não porqueele saiba alguma coisa da minha. Com o tipo de sangue que lhecorre nas veias, como poderia ter uma história limpa? Querexplicações sobre Henry Ashton e o jovem Perth. Fui acaso euque ensinou os vícios a um, e o deboche ao outro? Se o idiotado filho do Kent foi casar com uma mulher da rua, que tenho eua ver com isso? Se Adrian Singleton assina uma letra com onome do amigo, acaso sou seu guardião? Sei bem como é atagarelice em Inglaterra. As classes médias fazem alarde dosseus preconceitos morais durante os seus reles jantares edizem segredinhos sobre aquilo a que chamam a libertinagem dasclasses superiores, a fim de fingir que convivem com asociedade distinta e que são íntimos das pessoas que difamam.Neste país, basta que um homem tenha distinção e inteligênciapara que todas as más línguas o ataquem. E que vidas levamestas mesmas pessoas que se fazem passar por modelos devirtudes? Meu caro amigo, você esquece-se de que vive no paísnatal dos hipócritas. - Dorian - exclamou Hallward -, não é essa a questão. AInglaterra é bastante má, eu sei, e a sociedade inglesa estámuito mal. É por esse motivo que eu quero que você sejaperfeito. E você não o tem sido. Temos o direito de julgar umhomem pelos efeitos que produz sobre os amigos. Os seus amigosparecem ter perdido todo o sentido de honra, de bondade, depureza. Você instilou-lhes a loucura do prazer. 173Desceram ao mais fundo da degradação. Foi você que os levouaté lá. Sim, foi você, e, entretanto, consegue sorrir, comoestá a sorrir agora. E há pior ainda. Sei que você e o Harrysão inseparáveis. De certo, por essa razão, se não for pormais nenhuma, você não deveria ter posto a ridículo o nome dairmã. - Tome cuidado, Basil. Está a ir longe demais. - Eu tenho de falar, e você tem de ouvir: E há-de ouvir.Quando conheceu Lady Gwendolen, ela nunca fora atingida pornenhum sopro de escândalo. Haverá em Londres uma única mulherhonesta que queira agora andar de carruagem com ela no Parque?Ora se até nem permitem que os filhos vivam com ela. Depois háainda outras histórias... que o viram de madrugada a sairfurtivamente de tugúrios horrendos e a introduzir-sesorrateiramente, e disfarçado, nos mais sórdidos antros deLondres. Serão verdadeiras? Será possível que o sejam? Quandoas ouvi pela primeira vez, limitei-me a rir. Ao ouvi-lasagora, estremeço de horror. E que se passa com a sua casa decampo, e a vida que lá se leva? Dorian, você nem sabe o quedizem de si. Não lhe direi que não lhe quero pregar um sermão.Lembro-me de uma vez o Harry dizer que sempre que um homemfazia de padre amador por um instante começava sempre pordizer isso, e depois passava a faltar à palavra. Eu queromesmo pregar-lhe um sermão. Quero que leve um estilo de vidaque Lhe granjeie o respeito do mundo. Quero que tenha um nomeimpoluto e uma história sem mancha. Quero que se afaste dacompanhia das pessoas horrendas com quem convive. Não encolhaos ombros, nem se mostre tão indiferente. Você tem umfantástico poder de influência. Utilize-o para o bem, e nãopara o mal. Dizem que corrompe todos aqueles de quem se tornaíntimo, e que basta que entre numa casa para que, logo aseguir, aconteça uma infâmia. Não sei se é verdade, ou não.Como hei-de saber? Mas é o que dizem de si. Contam-me coisasde que, ao que parece, é impossível duvidar. Lord Gloucesterfoi um dos meus maiores amigos dos tempos de Oxford. 174Mostrou-me uma carta que a esposa lhe escrevera quando estavaa morrer, sozinha, na sua villa de Menton. O seu nome, Dorian,aparecia envolvido na mais terrível confissão que alguma vezli. Disse-lhe que isso era absurdo, que o conheciaperfeitamente, e que você seria incapaz desse tipo de coisas.Conhecê-lo? Será que o conheço? Antes de poder responder,gostaria de ver a sua alma. - Ver a minha alma! - balbuciou Dorian Gray, levantando-sesobressaltado, quase lívido de medo. - Sim - respondeu Hallward, com certa gravidade e umaprofunda tristeza na voz -, ver a sua alma. Mas só Deus o podefazer. Uma risada amarga e escarninha irrompeu dos lábios do maisjovem. - Há-de vê-la você mesmo, esta noite! - gritou ele,agarrando num candeeiro de cima da mesa. - Venha: é a obrafeita pelas suas próprias mãos. Por que não há-decontemplá-la? Depois pode falar dela ao mundo, se quiserNinguém iria acreditar em si. Se acreditassem, ficariam aindamais a gostar de mim. Conheço melhor do que você a nossaépoca, apesar de você dissertar sobre ela de maneira tãoenfadonha. Venha, digo-Lhe. Você papagueou bastante sobrecorrupção. Pois agora vai olhá-la cara a cara. Cada palavra que proferia tinha o delírio da arrogância.Batia com o pé no chão, com seus modos insolentes derapazinho. Sentia uma alegria tremenda só de pensar que maisalguém ia partilhar do seu segredo, e que o autor do retratoque estava na origem de toda a sua vergonha havia de carregarpara o resto da vida com o peso da memória hedionda da suaobra. - Sim - prosseguiu ele, aproximando-se mais do pintor, e semdesviar os olhos do seu olhar severo. - Vou mostrar-lhe aminha alma. Há-de ver aquilo que imagina que só Deus pode ver. Hallward recuou. - Isso é uma blasfémia, Dorian! - gritou. - Não deve dizeressas coisas. São terríveis e não significam nada. 175 - Acha? E riu de novo. - Acho... E sei. Quanto ao que lhe disse esta noite, fi-lopara seu bem. Bem sabe que tenho sido sempre um amigodedicado. - Não quero que me toque. Acabe o que tem a dizer. O rosto de Hallward contraiu-se num breve esgar de dor.Deteve-se um instante, e arrebatou-o um sentimento de piedade.Afinal, que direito tinha ele de se imiscuir na vida de DorianGray? Se ele fizera um décimo do que se dizia nos boatos quecorriam, quanto devia ter sofrido! Depois endireitou-se, e,aproximando-se da lareira, quedou-se a olhar para as achasincandescentes, cobertas pela sua geada de cinzas eesbraseadas pelas suas chamas crepitantes. - Estou à espera, Basil - disse o jovem, em voz dura enítida. O pintor voltou-se. - O que tenho a dizer é o seguinte - exclamou. - Tem de medar respostas às acusações horrendas feitas contra si. Se medisser que são inteiramente falsas do princípio ao fim, euacredito. Negue-as, Dorian, negue-as! Não vê como sofro? MeuDeus! Não me diga que você é mau, e corrupto, e ignóbil... Dorian Gray sorriu. Os lábios contraíam-se num trejeito dedesdém. - Acompanhe-me lá acima, Basil - disse ele calmamente. -Registo dia a dia o diário da minha vida, e nunca sai doquarto em que o escrevo. Posso mostrar-Lho se vier comigo. - Vou consigo, Dorian, se assim o desejar. Vejo que perdi ocomboio. Não importa. Posso ir amanhã. Mas não me peça paraler alguma coisa esta noite. Quero apenas uma resposta francaà minha pergunta. - Ser-Lhe-á dada lá em cima. Não poderia dá-la aqui. E nãoperderá muito tempo a ler. Capítulo XIII Saiu da sala, e começou a subir, com Basil Hallwardseguindo logo atrás de si. Subiam com passos silenciosos, comoos homens fazem instintivamente à noite. O candeeiroprojectava sombras grotescas na parede e nas escadas.Ouviam-se algumas janelas a bater, sacudidas pelo vento que selevantara. Quando chegaram ao último patamar, Dorian pousou o candeeirono chão, tirou a chave do bolso e fê-la rodar na fechadura. - Insiste em querer saber, Basil? - perguntou, sussurrando. - Sim, insisto. - Muito me apraz - respondeu, sorrindo. Depois, acrescentourispidamente: - É o único homem do mundo que tem o direito desaber tudo acerca de mim. Você teve mais influência na minhavida do que possa imaginar. E, pegando no candeeiro, abriu a porta e entrou. Passou poreles uma corrente de ar frio, fazendo levantar bruscamente achama, que tomou uma tonalidade de um laranja-escuro. O rapazestremeceu. - Feche a porta - sussurrou, pousando o candeeiro na mesa. Hallward olhou à sua volta, perplexo. O quarto parecia nãoter sido habitado havia muitos anos. Uma desbotada tapeçariaflamenga, um quadro encoberto por uma cortina, um velhocassone italiano e uma estante quase vazia eram, ao queparecia, todo o conteúdo do quarto, além de uma cadeira e umamesa. Quando Dorian Gray acendeu o resto de uma vela queestava no rebordo da chaminé, viu que estava tudo coberto depó e que o tapete se encontrava todo esburacado. Ouvia-se umrato à bulha por detrás dos lambris. Cheirava a bafio e bolor. - Pensa então que só Deus pode ver a alma, Basil? Afasteessa cortina, e verá a minha. A voz que assim falava era fria e cruel. - Você enlouqueceu, Dorian, ou então está a representar -murmurou Hallward, de sobrolho franzido. - Não quer? Então afasto-a eu - dísse o jovem, e puxou acortina, atirando-a ao chão. O artista gritou horrorizado, quando viu, nasemiobscuridade, a face hedionda da tela que para ele sorriacom um esgar. Havia qualquer coisa naquela expressão que lheprovocava repulsa e nojo. Deus do Céu! Tinha mesmo à suafrente a cara de Dorian Gray! O horror, por muito grande quefosse, não completará os seus estragos naquela belezadeslumbrante. Havia ainda reflexos dourados no cabelo ralo eum vivo rubor na boca sensual. Os olhos mortiços haviamconservado um pouco da beleza do azul, e não se haviadesvanecido toda a nobreza das curvas perfeitas das narinas eda flexibilidade do pescoço. Sim, era Dorian, sem dúvida. Masquem fizera aquilo? Parecia reconhecer as suas pinceladas, e amoldura era a que ele desenhara. Era uma ideia monstruosa, masnão deixava de sentir medo. Pegou na vela acesa e aproximou-ado retrato. No canto esquerdo via-se o seu nome, em grandesletras traçadas a vermelhão vivo. Tratava-se de uma imitação torpe, de uma sátira infame eignóbil. Ele nunca fizera aquilo. No entanto, era de facto oseu quadro! Sabia que era, e tinha a sensação de que o calordo seu sangue passara rapidamente para um gelo de morte. O seupróprio quadro! Que significava isto? Por que se alterara?Voltou-se, e olhou para Dorian Gray com o olhar de um homemperturbado. A boca contorcia-se, e a língua ressequida pareciaincapaz de articular qualquer som. Passou a mão pela testa.Estava húmida de um suor pegajoso. O jovem estava encostado ao rebordo da chaminé, a observá-locom uma expressão singular, 178que se vê nos rostos dos que se encontram absorvidos por umapeça de teatro quando está em cena um grande actor. Nãomanifestava tristeza, nem alegria. Tão-somente a paixão doespectador, divisando-se talvez um certo relampejo de triunfonos olhos. Tirara a flor da lapela do casaco, e cheirava-a, oufingia cheirar. - O que significa isto? - exclamou, por fim, Hallward, aquem a própria voz soava aguda e estranha. - Há anos, era eu um rapaz - disse Dorian Gray, esmagando aflor na mão -, você conheceu-me, lisonjeou-me, e ensinou-me ater vaidade da minha beleza. Um dia, apresentou-me a um amigoseu, que me esclareceu sobre a maravilha da juventude.Entretanto, você terminou o meu retrato que revelava a mimpróprio a magia da beleza. Num momento de loucura que, aindaagora, não sei se lamente ou não, formulei um desejo, talvezse Lhe pudesse chamar uma prece... - Eu lembro-me! Ah! Lembro-me tão bem! Não, isso éimpossível! O quarto é húmido. Foi o bolor que se infiltrou natela. As tintas que utilizei teriam algum péssimo venenomineral. Digo-Lhe que isso é impossível. - Mas o que será impossível? - murmurou o jovem,aproximando-se da janela e encostando a fronte contra avidraça fria e embaciada. - Você disse-me que o destruíra. - Fiz mal. Ele é que me destruiu. - Não acredito que seja este o meu quadro. - Não vislumbra nele o seu ideal? - perguntou Dorian, comamargura. - O meu ideal, como você lhe chama... - Como você lhe chamou. - Não tinha nada de mal, nada de ignóbil. Você representavapara mim um ideal como jamais voltarei a encontrar. Este é orosto de um sátiro. - É o rosto da minha alma. - Céus! Que coisa havia eu de adorar! Tem os olhos de umdemónio. 179 - Cada um de nós tem dentro de si o Céu e o Inferno, Basil -gritou Dorian, esboçando um desvairado gesto de desespero. Hallward voltou-se de novo para o retrato, e fitou-o comassombro. - Meu Deus! Se for verdade - exclamou -, e isto representaro que fez da sua vida, então você deve ser ainda pior do queimaginam aqueles que contra si falam! Levantou a vela para iluminar novamente o quadro, eexaminou-o. A superfície parecia inalterada, tal como adeixara. Era de dentro que, manifestamente, a fealdade e ohorror se haviam alastrado. Através de algum estranhodespertar de vida interior, a lepra do pecado ia lentamentedevorando o retrato. A putrefacção de um cadáver numa covahúmida não era tão horrenda. A mão tremeu-lhe, e a vela tombou do bocal para o chão, ondeficou a espirrar cera. Pôs-lhe o pé em cima e apagou-a.Depois, sentou-se desamparado na frágil cadeira que estavajunto da mesa e pôs a cara entre as mãos. - Santo Deus, Dorian, que lição! Que terrível lição! Não obteve resposta, mas ouvia o jovem a soluçar junto àjanela. - Reze, Dorian, reze - disse baixinho. - O que é que nosensinaram a rezar na nossa meninice? Não nos deixeis cair emtentação. Perdoai-nos os nossos pecados. Livrai-nos do mal.Vamos dizê-la juntos. A prece do seu orgulho foi atendida.Também será atendida a prece do seu arrependimento. Euadorei-o demasiado. Ambos fomos castigados. Dorian Gray voltou-se lentamente, e fitou-o, os olhosmarejados de lágrimas. - Agora é tarde demais, Basil - balbuciou. - Nunca é tarde demais, Dorian. Ajoelhemo-nos e vamos tentarlembrar-nos de uma oração. Não há um versículo que diz:«Embora os teus pecados sejam negros, torná-los-ei brancoscomo a neve"? - Essas palavras agora nada significam para mim. 180 181 - Cale-se! Não diga isso. Já fez bastante mal na sua vida.Meu Deus! Não vê aquela coisa maldita a deitar-nos um olhartão maligno? Dorian Gray olhou o quadro de relance e, de súbito,apoderou-se dele um desenfreado sentimento de ódio por BasilHallward, como se lhe houvesse sido sugerido pela imagem datela, segredado ao ouvido por aqueles lábios arreganhados numsorriso. Ferviam dentro de si as paixões violentas de umanimal acossado, e abominou o homem sentado à mesa, mais doque abominara o que quer que fosse em toda a sua vida.Alucinado, olhou rapidamente em redor. Viu qualquer coisareluzente sobre a arca pintada que estava mesmo em frente.Sabia o que era. Uma faca que trouxera uns dias antes paracortar um pedaço de corda, e que se esquecera de levar.Aproximou-se dela devagar, passando perto de Hallward. Assimque se encontrou atrás dele, agarrou-a e voltou-serapidamente. Hallward mexeu-se na cadeira, como se fosselevantar-se. Precipitou-se sobre ele, e enterrou-lhe a faca najugular por detrás da orelha. Comprimindo a cabeça do homemcontra a mesa, espetou a faca repetidas vezes. Ouviu-se um gemido abafado, e o som horrível de alguémsufocado pelo sangue. Por três vezes os braços esticadosergueram-se convulsivamente, agitando no ar as mãos grotescasde dedos hirtos. Esfaqueou-o mais duas vezes, mas o homem jánão se mexia. Começou a escorrer qualquer coisa para o chão.Esperou um pouco, continuando a empurrar a cabeça para baixo.Depois, atirou a faca para cima da mesa, e ficou à escuta. Só ouvia o gotejar sobre o tapete puído. Abriu a porta esaiu para o patamar. A casa estava em absoluto silêncio. Nãoandava por ali ninguém. Durante uns segundos deteve-sedebruçado na balaustrada, a perscrutar o negro abismofervilhante das trevas. Tirou então a chave do bolso e voltoupara o quarto, trancando-se em seguida. Aquilo continuava sentado na cadeira, contorcido por cima damesa, a cabeça pendida, as costas curvadas, os braços longos egrotescos. Não fora o rasgão vermelho golpeado no pescoço, e apoça escura coagulada a alastrar-se lentamente pela mesa,dir-se-ia que o homem estava apenas adormecido. Fora tudo tão rápido! Sentia uma calma surpreendente, e,aproximando-se da porta envidraçada, abriu-a e saiu para avaranda. O vento dissipara o nevoeiro, e o céu parecia a caudade um gigantesco pavão constelado de miríades de olhosdourados. Olhou para baixo e viu o polícia no seu giro aincidir o longo feixe de luz da lanterna nas portas das casasadormecidas. A mancha carmesim de um fiacre errante rutilou àesquina para, em seguida, desaparecer. Uma mulher de xaleesvoaçante arrastava-se vagarosamente junto ao gradeamento,cambaleando. De vez em quando parava e olhava para trás. Umavez, começou a cantar numa voz rouca. O polícia abeirou-sedela e disse-lhe qualquer coisa. Ela riu-se, e afastou-se, nomesmo andar cambaleante. Uma forte rajada de vento varreu aPraça. A chama dos candeeiros bruxuleou e ficou azul, e asárvores nuas balouçaram os seus ramos escuros e robustos. Elesentiu um arrepio e voltou para dentro, fechando de imediato aporta da varanda. Chegou à porta do quarto, rodou a chave e abriu-a. Nemsequer olhou para o homem assassinado. Tinha a sensação de queo segredo de tudo o que sucedera estaria em não se aperceberda situação. O amigo que pintara o retrato fatídico, ao qualse devia toda a sua desgraça, saíra da sua vida. E issobastava. Depois, lembrou-se do candeeiro. Era um trabalho mouriscobastante original, de prata fosca com incrustações de açopolido, e cravejado de turquesas por lapidar. O criado poderianotar a sua falta, o que daria azo a perguntas. Hesitou umpouco, depois voltou atrás e levantou-o da mesa. Não pôdedeixar de ver o morto. Como estava imóvel! Que horrivelmentebrancas estavam as suas mãos esguias! Parecia uma assustadoraimagem de cera. 182 183 Depois de ter trancado a porta ao sair, esgueirou-se pelasescadas de mansinho. A madeira rangeu, como um grito de dor.Parou várias vezes, e ficou atento. Não era nada, estava tudoem silêncio. Era apenas o som dos seus próprios passos. Quando chegou à biblioteca, viu ao canto a mala e osobretudo. Era forçoso escondê-los. Abriu a porta de umarmário secreto disfarçado nos lambris, onde costumava guardaros seus estranhos disfarces, e colocou-os aí. Teriaoportunidade de os queimar mais tarde. Depois puxou dorelógio. Faltavam vinte minutos para as duas da manhã. Sentou-se, e pôs-se a pensar. Todos os anos, mesmo quasetodos os meses, enforcavam-se homens em Inglaterra por aquiloque acabara de fazer. Pairava no ar uma fúria assassina.Alguma estrela rubra que se aproximara demasiado da terra...E, no entanto, que provas havia contra ele? Basil Hallwardsaíra desta casa às onze. Ninguém o vira voltar a entrar. Amaior parte dos criados encontrava-se em Selby Royal. O seucriado pessoal fora-se deitar... Paris! Era isso mesmo. Foipara Paris que Basil viajara, e no comboio da meia-noite, comoera sua intenção. Devido aos seus singulares hábitos dediscrição, passar-se-iam meses antes que se levantassequalquer suspeita. Meses! Podia fazer desaparecer tudo muitoantes disso. Ocorreu-lhe de repente uma ideia. Vestiu o casacão de peles,pôs o chapéu e dirigiu-se para o vestíbulo. Aí parou, a ouvirlá fora os passos vagarosos e pesados do polícia no passeio, ea ver o clarão do foco reflectido na janela. Ficou à espera,de respiração suspensa. Pouco tempo depois, puxou a lingueta da fechadura e saiurapidamente, fechando a porta sem fazer ruído. Em seguida,começou a tocar à campainha. Passados uns cinco minutos,apareceu-lhe o criado, meio vestido e com ar estremunhado. - Desculpe tê-lo obrigado a acordar, Francis - disse ele aoentrar -, mas esqueci-me da chave da porta. Que horas são? - Duas e dez, senhor - respondeu o homem, olhando para orelógio e a pestanejar. - Duas e dez? Tão tarde! Acorde-me às nove. Tenho que fazer. - Muito bem, senhor. - Apareceu alguma visita esta noite? - Mr. Hallward, senhor: Esteve aqui até às onze, e depoisfoi-se embora para apanhar o comboio. - Oh! Que pena não o ter visto. Deixou algum recado? - Não, senhor. Só disse que escreveria de Paris, se nãoencontrasse o senhor no clube. - É tudo, Francis. Não se esqueça de me acordar às nove. - Não esqueço, senhor. O homem retirou-se, arrastando os chinelos pelo corredor. Dorian Gray atirou com o casaco e o chapéu para cima damesa, e dirigiu-se para a biblioteca. Durante um quarto dehora, passeou de um lado para o outro, pensativo. Depois, tirou de uma das prateleiras o Livro Azul e pôs-se afolheá-lo. Alan Campbell, 152, Hertford Street, Mayfair. Cáestava. Era esse o homem de que iria precisar. Capítulo XIV Às nove da manhã, o criado entrou com uma chávena dechocolate num tabuleiro, e abriu as portadas das janelas.Dorian dormia tranquilamente, deitado sobre o lado direito,com a mão sob a face. Parecia um rapazinho cansado de brincar,ou de estudar. O criado teve de lhe tocar duas vezes no ombro para oacordar. Quando abriu os olhos, perpassou-lhe pelos lábios umleve sorriso, como se tivesse andado perdido num sonhodelicioso. Porém, não tivera sonho algum. O seu sono não foraperturbado por imagens de prazer, nem de dor. Mas a mocidaderi sem motivo. É um dos seus principais encantos. Voltou-se e, apoiado no cotovelo, começou a tomar o seuchocolate. O brando sol de Novembro entrava a jorros noquarto. O céu estava luminoso, e o ar era cálido e suave.Quase como numa manhã de Maio. A pouco e pouco, com pés silenciosos e tintos de sangue, osacontecimentos da noite anterior insinuavam-se-Lhe no cérebro,e reconstituíam-se aí com uma nitidez tremenda. Estremeceu aorecordar tudo o que sofrera, e, por um breve momento, tornou asentir a estranha aversão que o levara a matar Basil Hallward,quando este se encontrava sentado na cadeira, e gelou com aemoção sentida. O morto ainda lá estava sentado e, agora, aosol. Que horrível! Essas coisas medonhas pertenciam às trevas,e não à claridade. Sentiu que se cismasse naquilo por que passara ficariadoente ou louco. Certos pecados possuem mais fascínio namemória do que no próprio acto de os cometer, estranhostriunfos que satisfaziam mais o orgulho do que as paixões, eque proporcionavam ao intelecto uma intensa sensação dejúbilo, maior do que qualquer júbilo que trouxessem, oupudessem trazer, aos sentidos. Mas este era de naturezadiferente. Essa coisa tinha de ser afastada da mente, ounarcotizada com papoilas, ou estrangulada, não fosse ela aestrangular. Quando soou a meia hora, passou a mão pela testa, e depoislevantou-se rapidamente. Vestiu-se com mais esmero do quehabitualmente, escolhendo meticulosamente a gravata e oalfinete, e mudando várias vezes de anéis. Tomou opequeno-almoço demoradamente, saboreando os diversos pratos,falando com o seu criado a propósito das novas librés quepensava mandar fazer para os criados de Selby, e passando osolhos pela correspondência. Umas cartas fizeram-no sorrir.Outras aborreceram-no. Houve uma que leu repetidas vezes, aseguir rasgou-a, com um leve ar de enfado. Que coisa horrível,a memória de uma mulher! como uma vez dissera Lord Henry. Depois de ter bebido o café, limpou vagarosamente os lábiosao guardanapo, fez sinal ao criado que esperasse, e sentou-seà mesa a escrever duas cartas. Meteu uma no bolso e entregou aoutra ao criado. - Francis, leve esta carta ao n.o 152 da Hertford Street, ese Mr. Campbell não estiver em Londres, veja se consegue o seuendereço. Assim que ficou só, acendeu um cigarro e começou a desenhar,num pedaço de papel, primeiro flores e esboços dearquitectura, e depois rostos. Subitamente, notou que cadarosto que desenhava parecia ter uma parecença extraordináriacom Basil Hallward. De semblante carregado, levantou-se edirigiu-se à estante, de onde tirou um volume ao acaso. Estavadecidido a não pensar no que Lhe acontecera, salvo quandofosse absolutamente necessário. Depois de estendido no sofá, olhou para o título do livro:Era Emaux et Camées, de Gautier, uma edição Charpentier empapel japonês, com uma água-forte de Jacquemart. Estavaencadernado em pele verde-limão, com um desenho dourado deentrelaçados e semeado de romãs. 186 Fora-Lhe oferecido por Adrian Singleton. Ao virar aspáginas, deparou com um poema sobre a mão de Laenaire, ágélida mão amarela du supplice encore mal lavée, de penugentospêlos arruivados e doigts de faune. Olhou para os seus dedosbrancos e esguios com um arrepio involuntário, e continuou afolhear o livro, até chegar àquelas preciosas estrofes sobreVeneza: Sur une gamme chromatique, Le sein de perles ruisselant, La Vénus de l'Adriatique Sort de l'eau son corps rose et blanc. Les domes, sur l'ázur des ondes Suivant la phrase au pure contour, S'enflent comme des gorges rondes Que soulève un soupir d'amour. L'esquife aborde et me dépose Jetant son amarre au pilier, Devant une façade rose, Sur le marbre d'un escalier. Que belas! Ao ler estas estrofes, tinha-se a sensação dedeslizar pelos verdes canais da cidade pérola e rosa, sentadosem negra gôndola de proa prateada e de cortinas a arrastar. Ossimples versos pareciam-lhe aquelas linhas rectas de corazul-turquesa que nos seguem quando se sai do Lido. Os súbitoslampejos coloridos faziam-lhe lembrar o fulgor das aves deirisado pescoço opalino que esvoaçam em redor do altoCampanile alveolado, ou se passeiam com majestosa graciosidadepelas arcadas sombrias e poeirentas. Recostado, de olhossemicerrados, repetia vezes sem conta: Devant une façade rose, Sur le marbre dun escalier. 187 Toda a Veneza estava naqueles dois versos. Recordou-se doOutono que lá passara, e de um amor maravilhoso que oarrastara para delirantes e maravilhosas loucuras. Haviaaventuras amorosas em toda a parte. Mas Veneza, tal comoOxford, conservara o cenário romanesco, e, para o verdadeiroromântico, o cenário era tudo, ou quase tudo. Basil estiveracom ele durante parte desse tempo, e ficara louco porTintoretto. Pobre Basil! Que maneira horrível de um homemmorrer! Suspirou e, pegando de novo no livro, procurou esquecer. Leusobre as andorinhas que voam para dentro e fora de um pequenocafé de Esmirna, onde os hadjis se sentam a desfiar as suascontas de âmbar, e os mercadores de turbante fumam os seuslongos cachimbos de borlas e conversam com certa gravidade unscom os outros, leu sobre o Obelisco da Praça da Concórdia, quechora lágrimas de granito em seu exílio solitário e sem sol, eanseia por regressar ao calor do Nilo coberto de lótus, ondehá esfinges, e íbis de um rosa vivo, e abutres brancos degarras douradas, e crocodilos de pequenos olhos de berilo quese arrastam pelo lodo verde e fumegante, pôs-se a meditarnaqueles versos que, extraindo música do mármore manchado debeijos, falam daquela estátua singular que Gautier compara auma voz de contralto, o monstre charmant que jaz na sala depórfiro do Louvre. Mas, passado algum tempo, o livro caiu-Lhe das mãos. Tomadode um pavoroso acesso de terror, começou a sentir-se nervoso.E se Alan Campbell se tivesse ausentado de Inglaterra? Sópoderia regressar depois de terem passado alguns dias. Talvezrecusasse vir. Nesse caso, que poderia ele fazer? Cada momentoque passava era de vital importância. Haviam sido amigos cincoanos atrás, amigos inseparáveis até. Depois a intimidade entreeles terminara abruptamente. Quando agora se encontravam emconvívios sociais, Dorian Gray era o único que sorria, AlanCampbell nunca sorria. 188 189 Era um jovem extremamente inteligente, embora não tivesseverdadeiro apreço pelas artes visuais, e a reduzidasensibilidade pela beleza da poesia devia-se inteiramente aDorian. A sua paixão intelectual predominante era votada àciência. Em Cambridge, passara grande parte do seu tempo atrabalhar no laboratório, e tivera uma boa classificação noexame final de Ciências da Natureza. Na verdade, ainda sededicava ao estudo da química, e tinha um laboratório só seu,onde costumava encafuar-se o dia inteiro, para grandedesespero da mãe, que se empenhara na sua candidatura aoParlamento e tinha uma vaga ideia de que um químico era umapessoa que fazia receitas. Ele era, todavia, também excelentemúsico, e tocava violino e piano melhor do que numerososamadores. De facto, foi a música que aproximou os dois, ele eDorian Gray, a música, e aquela atracção indizível que Dorianparecia saber exercer sempre que desejava, mas que chegavatambém a ser exercida inconscientemente. Tinham travadoconhecimento em casa de Lady Berkshire na noite em queRubenstein dera lá um concerto, e depois disso costumavam servistos juntos na Ópera e onde quer que se tocasse boa música.A intimidade entre eles durou dezoito meses. Campbell estavasempre em Selby Royal ou na Grosvenor Square. Para ele, assimcomo para muitos outros, Dorian Gray era o modelo de tudo oque é maravilhoso e fascinante na vida. Se houvera, ou não,uma desavença entre eles, ninguém sabia. Mas, de repente, aspessoas notaram que eles mal se falavam quando se encontravam,e que Campbell parecia retirar-se sempre cedo de qualquerreunião social em que Dorian estivesse presente. E também semodificara: às vezes estava inexplicavelmente melancólico,quase parecia detestar ouvir música, e nunca mais tocara,desculpando-se, quando a isso se via obrigado, com a falta detempo para praticar, pois a ciência absorvia-o muito. E istoera mesmo verdade. Parecia interessar-se cada vez mais porbiologia, e o seu nome apareceu uma ou duas vezes em algumasrevistas científicas, associado a determinadas experiênciascuriosas. Era este o homem que Dorian Gray aguardava. A cada segundoolhava para o relógio. À medida que os minutos avançavam, iaficando tremendamente agitado. Por fim, levantou-se e começoua passear na sala, de um lado para o outro, parecendo qualquercoisa de muito belo dentro de uma jaula. Dava longas passadasfurtivamente. Tinha as mãos geladas. A expectativa tornava-se insuportável. O tempo pareciaarrastar-se com pés de chumbo, enquanto ele era arrastado porventos monstruosos para a berma escarpada da negra fenda de umprecipício. Sabia o que o esperava lá, chegava mesmo a vê-lo,e, a tremer, pressionava com as mãos húmidas de suor aspálpebras escaldantes, como se quisesse roubar a visão aopróprio cérebro e empurrar os globos oculares para o fundo dasórbitas. Era inútil. O cérebro tinha alimento próprio que osustentava, e a imaginação, que o terror tornava grotesca,enroscada e distorcida como ser vivo em sofrimento, dançavacomo uma marioneta imunda sobre um estrado, e arreganhava osdentes através de máscaras móveis. Depois, subitamente, oTempo parou. Sim, aquela coisa cega, de lento arfar, já não searrastava, e os pensamentos medonhos, agora que o Tempo estavamorto, correram ligeiros e puxaram para fora da sepultura umfuturo hediondo, e mostraram-Lho. Ele fitou-o, petrificado dehorror. Por fim, abriu-se a porta e o criado entrou. Dorianvolveu-lhe um olhar vago. - Chegou Mr. Campbell, senhor - disse o criado. Um suspiro de alívio brotou-lhe dos lábios ressequidos, e asfaces retomaram cor. - Peça-lhe que entre imediatamente, Francis. Sentia-se de novo senhor de si. O acesso de cobardiapassara. O criado saiu, com uma vénia. Pouco depois, entrou AlanCampbell, de semblante severo e um pouco pálido, uma palidezrealçada pelo cabelo negro e pelas sobranceLhas escuras. 190 - Alan! Que gentileza da sua parte. Obrigado por ter vindo. - Era minha intenção nunca mais voltar a entrar em sua casa,Gray. Mas disse que era um caso de vida e de morte. - A vozera dura e fria. Falava com lenta deliberação. Havia desprezono olhar firme e perscrutador que lançou a Dorian. Tinha asmãos metidas nos bolsos do casaco de astracã, parecendoignorar o gesto de cumprimento com que fora recebido. - Sim, é um caso de vida e de morte, Alan, e que envolvemais de uma pessoa. Sente-se. Campbell sentou-se numa cadeira perto da mesa, e Doriansentou-se do outro lado. Os olhos dos dois homens cruzaram-se.Nos de Dorian havia uma piedade infinita. Sabia que o que iafazer era terrível. Após um momento de tensão e silêncio, inclinou-se para afrente e falou com grande serenidade, mas observando o efeitode cada palavra no rosto daquele que mandara chamar. - Alan, num quarto trancado do último andar desta casa, umquarto a que ninguém tem acesso senão eu, está um mortosentado a uma mesa. Morreu há precisamente dez horas. Não seenerve, nem me olhe assim. Quem é este homem, por que motivo ecomo morreu são assuntos que lhe não interessam. O que vocêtem de fazer é... - Basta, Gray. Não quero saber mais nada. Seja verdade oumentira, o que me contou não me diz respeito. Recusoabsolutamente envolver-me na sua vida. Guarde para si os seussegredos horrendos. Não me interessam mais. - Alan, vão ter de Lhe interessar. Este terá de Lheinteressar. Lamento muito, Alan. É que eu não posso resolvernada sozinho. Você é o único homem que me pode salvar. Vejo-meobrigado a metê-lo no caso. Não me resta outra solução. Alan,você é um homem de ciência, sabe química, e coisas do género.Fez experiências. O que você tem de fazer é destruir aquiloque está lá em cima, destruí-lo para que não fique vestígioalgum. Ninguém viu essa pessoa entrar cá em casa. 191Na verdade, presentemente supõem que está em Paris. Só daqui aalguns meses notarão a sua falta. Quando isso acontecer, nãoquero que encontrem aqui nenhum sinal da sua passagem. Você,Alan, deve reduzi-lo, e tudo o que lhe pertence, a um punhadode cinzas que eu possa dispersar. - Você está louco, Dorian. - Ah! Eu estava à espera que me tratasse por Dorian. - Digo-Lhe que você está louco, louco ao imaginar que eulevantaria um dedo para o ajudar, louco por fazer essaconfissão monstruosa. Não terei nada a ver com esse assunto,seja qual for. Julga que vou arriscar a minha reputação porvocê? Não me interessa a maquinação diabólica que você anda acongeminar. - Foi suicídio, Alan. - Antes isso. Mas quem o induziu a fazê-lo? Você, calculoeu. - Continua a recusar fazer-me isto? - Com certeza. Não quero ter absolutamente nada a ver com ocaso. É-me indiferente que se cubra de ignomínia. Vocêmerece-a. Não me afligiria vê-lo cair em desgraça na praçapública. Como ousa pedir-me, e logo a mim, que me envolvaneste horror? Sempre pensei que você conhecesse melhor ocarácter das pessoas. O seu amigo Lord Henry Wotton não lhedeve ter ensinado muito de psicologia, por muito que Lhetivesse ensinado. Não há nada que me convença a dar um passopara o ajudar. Veio bater a má porta. Dirija-se aos seusamigos. Não a mim. - Foi assassínio, Alan. Matei-o. Você não sabe o que ele mefez sofrer. Seja como for, ele teve mais influência naformação ou na destruição da minha vida do que o pobre doHarry. Ainda que não tenha sido essa a sua intenção, oresultado foi o mesmo. - Assassínio! Meu Deus, Dorian, foi a isso que você chegou?Não o denunciarei. Não me diz respeito. Aliás, mesmo que eunão toque no assunto, tenho a certeza de que você irá preso. 192 193Não há ninguém que cometa um crime sem fazer qualquerestupidez. Mas não terei nada a ver com isso. - Terá de ter. Espere, espere um pouco. Ouça. Ouça apenas,Alan. Tudo o que lhe peço é que faça uma determinadaexperiência científica. Você costuma ir aos hospitais e àsmorgues, e os horrores que aí comete não o afectam, Se, emalguma medonha sala de dissecação ou em fétido laboratório,encontrasse este homem sobre uma mesa de chumbo sulcada decalhas vermelhas para escoarem o sangue, considerá-lo-iaapenas um excelente objecto de estudo. Você continuariaimperturbável. Nem acreditava que estivesse a fazer algo dereprovável. Pelo contrário, sentiria talvez que estava aprestar um benefício à humanidade, ou a incrementar atotalidade de conhecimentos no mundo, ou a satisfazer acuriosidade intelectual, ou outra coisa do género. O que euquero que faça não é mais do que já fez muitas vezes. Naverdade, destruir um cadáver deve ser muito menosimpressionante do que as práticas a que está habituado. E vejabem que esta é a única prova contra mim. Se for descobertaestou perdido. E certamente que será, se você não me ajudar. - Não estou disposto a ajudá-lo. Já se esqueceu? Tudo issome é indiferente. Não tem nada a ver comigo. - Alan, suplico-lhe. Pense na minha situação. Precisamenteantes de você chegar, quase desmaiava de pavor. Até você podeum dia sentir pavor. Não! Não pense nisso. Encare o assuntounicamente do ponto de vista científico. Você nunca perguntade onde vêm os cadáveres em que pratica as suas experiências.Não pergunte também agora. Já lhe contei demais. Masimploro-lhe que faça isto. Dantes éramos amigos, Alan. - Não fale nesses dias, Dorian. Estão mortos. - Por vezes os mortos ficam. O homem que está lá em cima nãose quer ir embora. Está sentado à mesa, de cabeça pendida ebraços estendidos. Alan! Alan! Se não vier em meu auxílioestou perdido. Não vê que me vão enforcar, Alan! Nãocompreende? Vão enforcar-me pelo que fiz. - Escusa de prolongar esta cena. Recuso em absoluto intervirno assunto. É loucura da sua parte pedir-mo. - Recusa? - Recuso. - Suplico-lhe, Alan. - É inútil. A mesma expressão de piedade surgiu nos olhos de DorianGray. Depois, estendeu a mão para pegar num pedaço de papel, eescreveu nele qualquer coisa. Leu-o duas vezes, dobrou-ometiculosamente e passou-o para o outro lado da mesa. Feitoisto, levantou-se e foi até à janela. Campbell olhou-o surpreendido, e então pegou no papel eabriu-o. Ao lê-lo, cobriu-se-lhe o rosto de uma palidezcadavérica, e tombou para trás na cadeira. Assaltou-o umaatroz sensação de náusea. Era como se o coração batessedesordenadamente num buraco oco até desfalecer Após dois outrês minutos de um silêncio terrível. Dorian voltou-se,aproximou-se e postou-se atrás dele, pousando-lhe a mão noombro. - Tenho tanta pena de si, Alan - disse, num sussurro -, masvocê não me deixou alternativa alguma. Já escrevi uma carta.Ei-la. Veja o endereço. Se não me ajudar, sou obrigado aenviá-la. Se não me ajudar, vou enviá-la. Você conhece asconsequências. Mas você vai ajudar-me. Agora é-lhe impossívelrecusar. Procurei poupá-lo. Far-me-á a justiça de o admitir.Você foi severo, implacável, ofensivo. Tratou-me como jamaishomem algum ousou tratar-me... pelo menos um que esteja vivo.Suportei tudo. Agora chegou a minha vez de ditar as condições. Campbell mergulhou o rosto entre as mãos, estremecendo. - Sim, chegou a minha vez de ditar as condições, Alan. Sabequais são. A coisa é muito simples. Vamos, não fique nessaagitação febril. A coisa tem de ser feita. Enfrente-a, efaça-a. Campbell soltou um gemido, e todo o seu corpo tremia. Otiquetaque do relógio que estava no rebordo da chaminéparecia-lhe dividir o tempo em átomos de tormento, 194cada um deles demasiado atroz para se poder suportar. Tinha asensação de que um anel de ferro lhe apertava lentamente afronte, como se a ignomínia com que fora ameaçado se houvesseabatido já sobre si. A mão pousada no seu ombro pesava comomão de chumbo. Era insuportável. Parecia esmagá-lo. - Vamos, Alan, tem que tomar imediatamente uma decisão. - Não consigo fazê-lo - respondeu, maquinalmente, como se aspalavras pudessem alterar as coisas. - Mas tem de o fazer. Não tem outro remédio. Não percatempo. Ele hesitou um pouco. - Há alguma lareira no quarto lá em cima? - Sim, há uma lareira a gás, com amianto. - Tenho de ir a casa para trazer umas coisas do laboratório. - Não, Alan, não pode sair daqui. Escreva numa folha depapel aquilo de que precisa, e o meu criado irá de fiacrebuscar essas coisas. Campbell escrevinhou umas linhas, secou-as com o mata-borrãoe endereçou um envelope ao seu assistente. Dorian pegou nafolha e leu-a atentamente. Em seguida, tocou a campainha eentregou a mensagem ao criado, ordenando-lhe que estivesse devolta o mais breve possível e que trouxesse as coisas consigo. Quando se fechou a porta do vestíbulo, Campbell teve umsobressalto de nervosismo, e, levantando-se, aproximou-se dalareira. Tremia como se tivesse sezões. Durante cerca de vinteminutos, os dois homens permaneceram calados. Pela salaesvoaçava uma mosca que zumbia ruidosamente, e o tiquetaque dorelógio parecia a pancada de um martelo. Quando soou uma hora, Campbell voltou-se e, ao olhar paraDorian Gray, viu que este tinha os olhos rasos de lágrimas.Havia qualquer coisa na pureza e perfeição daquele rostotriste que parecia enfurecê-lo. 195 - Você é infame, absolutamente infame! - balbuciou. - Não diga nada, Alan. Você salvou-me a vida - disse Dorian. - A sua vida? Céus! Mas que vida! Você andou de corrupção emcorrupção até culminar no crime. Ao fazer o que vou fazer,aquilo que você me obriga a fazer, não é na sua vida que estoua pensar. - Ah, Alan, desejaria que sentisse por mim a milésima parteda compaixão que sinto por você. E dizendo isto, voltou-se e pôs-se a olhar para o jardim láfora. Campbell não lhe deu resposta. Uns dez minutos depois, bateram à porta, e entrou o criadotransportando uma grande caixa de mogno para produtosquímicos, com um rolo comprido de fio de aço e platina, e doisgrampos de ferro que tinham uma forma bastante curiosa. - Quer que deixe as coisas aqui, senhor? - perguntou aCampbell. - Sim, deixe - disse Dorian. - E, Francis, parece-me quetenho outra incumbência para si. Como se chama o homem deRichmond que fornece as orquídeas para Selby? - Chama-se Harden, senhor. - Ah, sim. Harden. Vá imediatamente a Richmond procurar esseHarden e diga-Lhe que mande o dobro das orquídeas queencomendei, mas o mínimo possível de orquídeas brancas. Paraser mais exacto, não quero nenhumas brancas. Está um lindodia, Francis, e Richmond é muito bonito, se não fosse assimnão lhe daria essa maçada. - Não é maçada nenhuma, senhor. A que horas devo estar cá? Dorian olhou para Campbell. - Quanto tempo irá levar a sua experiência, Alan? -perguntou, numa voz calma, indiferente. A presença de umaterceira pessoa na sala parecía transmitir-lhe uma calmaextraordinária. Campbell, de semblante carregado, fez por se dominar. - Levará aproximadamente cinco horas - respondeu. 196 - Então basta que você esteja de regresso às sete e meia,Francis. Não. Não volte. Deixe apenas tudo em ordem para eumudar de roupa. Pode ficar com a noite livre. Como não jantoem casa, não vou precisar de si. - Obrigado, senhor - disse o criado, ao sair da sala. - Agora, Alan, não há um momento a perder. Como esta caixapesa! Eu levo-lha. Traga as outras coisas. Falava depressa e com modos autoritários. Campbell sentia-sedominado por ele. Saíram os dois juntos da sala. Quando chegaram ao último patamar, Dorian tirou a chave dobolso e fê-la girar na fechadura. Depois parou, e os seusolhos reflectiam uma certa inquietação. E recuou. - Creio que não consigo entrar, Alan - disse, num murmúrio. - É-me indiferente. A sua presença não é necessária - disseCampbell, com frieza. Dorian só abriu a porta até meio. Ao fazê-lo, viu, à luz dosol, o olhar maldoso no rosto do seu retrato. À frente deste,caída no chão, estava a cortina rasgada. Lembrou-se então deque na noite anterior se esquecera, pela primeira vez na vida,de ocultar a fatídica tela. E quando ia avançarprecipitadamente, recuou assustado. O que seriam aquelas repugnantes gotas vermelhas que luziam,húmidas e cintilantes, numa das mãos, como se a telaressumasse suor de sangue? Que horrendo era aquilo! Maishorrendo - assim lhe parecia naquele instante do que aquelacoisa silenciosa que ele sabia que estava de bruços sobre amesa, e cuja sombra grotesca e disforme projectada no tapetesalpicado lhe permitia ver que não se movera, mas que aindaali estava onde a deixara. Respirou fundo, abriu a porta um pouco mais e, de olhosquase fechados e virando a cabeça, entrou rapidamente,decidido a não olhar, nem uma vez sequer, para o morto.Depois, debruçando-se, levantou do chão a cortina de ouro epúrpura e lançou-a por sobre o retrato. Ficou ali parado, com medo de se voltar, de olhos fixos noemaranhado do desenho que estava à sua frente. 197Ouviu Campbell a trazer para dentro do quarto a pesada caixa,e os ferros, e as outras coisas de que necessitava para a suapavorosa tarefa. Começou a interrogar-se se ele e BasilHallward se teriam alguma vez encontrado, e, se assim fora,que opinião teriam tido um do outro. - Agora deixe-me só - disse, atrás de si, uma voz dura. Voltou-se e saiu apressadamente, apercebendo-se apenas deque o morto havia sido recostado na cadeira e que Campbellcontemplava um rosto amarelecido e luzidio. Quando descia asescadas, ouviu a chave girar na fechadura. Já passava muito das sete horas quando Campbell entrou nabiblioteca. Estava pálido, mas absolutamente calmo. - Fiz o que me pediu - disse entre-dentes. - E agora, adeus.Espero que jamais nos voltemos a ver! - Salvou-me da desgraça, Alan. Não posso esquecer isso -limitou-se a dizer Dorian. Assim que Campbell saiu, subiu ao último andar. No quartohavia um cheiro horrível a ácido nítrico. Mas aquilo queestivera sentado à mesa desaparecera. Capítulo XV Essa noite, às oito e trinta, trajando com requinte eostentando na botoeira um grande ramalhete de violetas deParma, Dorian Gray era conduzido por criados e muitas mesurasaté à sala de visitas de Lady Narborough. Sentia a cabeça alatejar devido a um desenfreado nervosismo, e uma loucaexcitação, mas inclinou-se sobre a mão da sua anfitriã com adesenvoltura e graciosidade de sempre. Talvez nuncaaparentemos tanta naturalidade como quando temos derepresentar um papel. Por certo, era impossível que todos osque nessa noite olhavam para Dorian Gray acreditassem que elesofrera uma tragédia tão horrível como qualquer tragédia dosnossos dias. Aqueles dedos tão distintos nunca poderiam teragarrado uma faca pecaminosa, nem aqueles lábios risonhosclamado sobre Deus e a bondade. Ele próprio não pôde deixar dese surpreender com a calma do seu comportamento, e, por uminstante, sentiu vivamente o terrível prazer de uma vidadupla. Era uma pequena reunião, preparada um pouco de improviso porLady Narborough, mulher muito inteligente, e com o que LordHenry costumava descrever como os restos de uma fealdaderealmente notável. Revelara-se excelente esposa de um dosnossos mais enfadonhos embaixadores, e, depois de terenterrado convenientemente o marido num mausoléu de mármore,que ela se encarregara de desenhar, e de ter casado as filhascom homens ricos e bastante idosos, dedicava-se agora aosprazeres da ficção francesa, da culinária francesa e do espritfrancês, quando o conseguia. Dorian era um dos seus preferidos especiais, e dizia-lhesempre que se dava por extremamente satisfeita por não o terconhecido durante a juventude. - Tenho a certeza, meu querido, de que me teria apaixonadoloucamente por si - costumava dizer -, e atirado a minha toucaaos moinhos por sua causa(1). Felizmente que ainda não sepensava em si nessa altura. As nossas toucas eram tãodeselegantes, e os moinhos tão ocupados a tentar fazer vento,que nunca tive um namorico. Porém, foi tudo por culpa doNarborough. Ele era terrivelmente míope, e não se tem prazerem enganar um marido que nunca vê nada. Os convidados dessa noite eram um pouco enfadonhos.Acontecia que, como ela, por detrás de um leque muito coçado,explicava a Dorian, uma das filhas casadas vierainesperadamente visitá-la e, para cúmulo, até trouxera omarido. - Parece-me muito indelicado da parte dela, meu querido -dizia, segredando. - É certo que vou sempre visitá-los noVerão, quando regresso de Homburg, mas uma velha como euprecisa de ar puro de vez em quando, e, além disso, sou eu quelhes trago alguma animação. Não faz ideia da vida que eleslevam ali. É a pura e sadia vida campestre. Levantam-se cedopor terem tanto que fazer, e deitam-se cedo por terem tãopouco em que pensar. Desde o tempo da rainha Isabel que não háum escândalo por aqueles sítios, e, por consequência,adormecem todos a seguir ao jantar. Não se sente ao pé denenhum deles. Há-de sentar-se ao meu lado para me distrair. Dorian murmurou umas palavras de cortesia, e passeou osolhos pela sala. Era, de facto, uma reunião fastidiosa.Estavam duas pessoas que nunca vira, e o resto era constituídopor Ernest Harrowden, uma daquelas mediocridades tão banaisdos clubes de Londres que não têm inimigos mas que sãoprofundamente detestados pelos amigos; Lady Ruxton, uma mulherde quarenta e sete anos, exageradamente ataviada, *1. Tradução literal, por motivo dos comentários que apersonagem faz a seguir. A tradução livre corresponderia a"atirado com a minha reputação às malvas". (N, da T.) 200de nariz adunco, que se esforçava por cair em descrédito, masque era particularmente tão feia que, para grande decepçãosua, não havia ninguém que acreditasse em algo que adesfeiteasse, Mrs. Erlynne, uma nulidade com ambições, quececeava deliciosamente, e de cabelo ruivo, Lady Alice Chapman,filha da anfitriã, uma rapariga insípida e com ar desmazelado,com uma daquelas caras tipicamente britânicas que, uma vezvistas, são logo esquecidas; o marido dela, criaturarubicunda, de suíças brancas, e que, como muitos da suaclasse, estava convencido de que a jovialidade desmedida podecompensar uma total ausência de ideias. Dorian sentia-se um pouco arrependido de ter vindo, quandoLady Narborough, olhando para o grande relógio de bronzedourado, que se esparramava num espavento de curvas sobre opano cor de malva que decorava o rebordo da chaminé, exclamou: - Que desagradável este atraso de Henry Wotton! Mandei-lherecado esta manhã, e ele prometeu-me solenemente que nãofaltava. A presença de Harry sempre servia de consolo e, quando aporta se abriu e ouviu a sua arrastada voz musical, quetornava encantadoras as suas desculpas insinceras, deixou desentir tédio. Mas não conseguiu comer nada ao jantar. Todos os pratosservidos eram retirados sem Lhes tocar. Lady Narboroughrepreendia-o permanentemente por aquilo a que chamava um«insulto ao pobre do Adolphe, que inventou o menuespecialmente para si», e, de vez em quando, Lord Henry olhavapara ele, surpreendido com o seu silêncio e o seu ar ausente.O mordomo não deixava de lhe encher a taça de champanhe. Bebiacom sofreguidão, mas a sede parecia aumentar. - Dorian - acabou por dizer Lord Henry, enquanto ochaudfroid era servido -, que se pássa consigo esta noite?Parece deprimido. 201 - Estou convencida de que está apaixonado - exclamou LadyNarborough -, e que não se atreve a dizer-me por recear que eufique com ciúmes. E tem muita razão. Com certeza que ficaria. - Minha querida Lady Narborough - murmurou Dorian, a sorrir-, passou toda uma semana sem que me tenha apaixonado, paraser mais exacto, desde que Lady Ferrol se ausentou de Londres. - Como é que vocês os homens podem apaixonar-se por aquelamulher! - exclamou. - Realmente, não consigo entender. - Muito simplesmente porque ela se lembra da infância dasenhora, Lady Narborough - disse Lord Henry - Ela é o únicoelo entre nós e os bibes que a senhora usava. - Ela não se lembra nada dos meus bibes, Lord Henry. Mas eulembro-me muito bem dela em Viena há trinta anos, e de comoestava décolletée nessa altura. - Ainda está décolletée - respondeu ele, pegando numaazeitona entre os seus longos dedos -, e quando traz umvestido muito elegante parece uma édition de luxe de ummedíocre romance francês. É realmente espantosa esurpreende-nos constantemente. Tem uma extraordináriacapacidade de amor pela família. Quando morreu o terceiromarido, o cabelo, com o desgosto, ficou louro. - Como pode falar assim, Harry! - exclamou Dorian. - É uma explicação muito romântica - riu a anfitriã. - Masum terceiro marido, Lord Henry! Não está a querer dizer que oFerrol é o quarto. - Claro que é, Lady Narborough. - Não acredito numa única palavra. - Pode perguntar a Mr. Gray. Ele é um dos seus amigos muitoíntimos. - É verdade, Mr. Gray? - Ela assim mo afiança, Lady Narborough - respondeu Dorian.- Perguntei-lhe se, à semelhança do que fizera Margarida deNavarra, mandara embalsamar os corações deles e os traziapendurados à cinta. Disse-me que não, visto nenhum deles tercoração. 202 - Quatro maridos! Palavra de honra, isso revela trop dezèle. - Trop de audace, tenho-lho dito - disse Dorian. - Oh, ela tem audácia suficiente para seja o que for, meuquerido. E como é o Ferrol? Não o conheço. - Os maridos das mulheres muito belas pertencem à classe doscriminosos - observou Lord Henry, tomando uns goles de vinho. Lady Narborough deu-lhe uma pancada com o leque. - Lord Henry, não me surpreende nada que o mundo diga que osenhor é extremamente maldoso. - Mas qual mundo? - perguntou Lord Henry, erguendo assobrancelhas. - Só se for o outro. As minhas relações com estemundo são excelentes. - Toda a gente que eu conheço diz que o senhor é muito mau -exclamou a velha senhora, abanando a cabeça. Lord Henry ficou sério por uns momentos. - É perfeitamente monstruosa - disse, por fim - a maneiracomo as pessoas andam hoje por aí a dizer nas nossas costascoisas que são verdades absolutas. - Ele não tem emenda, pois não? - exclamou Dorian,inclinando-se para a frente. - Espero bem que não - respondeu a sua anfitriã, a rir. -Mas se, na realidade, vocês todos adoram Madame de Ferroldesta maneira ridícula, terei de casar-me de novo para estarna moda. - A senhora nunca voltará a casar, Lady Narborough -interrompeu Lord Henry. - Foi muito feliz. Quando uma mulherse casa outra vez, é porque detestava o primeiro marido.Quando um homem se casa outra vez, é porque adorava a primeiraesposa. As mulheres tentam a sorte, os homens arriscam a sua. - Narborough não era perfeito - exclamou a senhora. - Se o tivesse sido, não o teria amado, minha queridasenhora - foi a resposta. - As mulheres amam-nos pelos nossosdefeitos. Se os tivermos em número suficiente, perdoam-nostudo, até a nossa inteligência. 203Parece-me que nunca tornará a convidar-me para jantar, LadyNarborough, depois do que acabo de dizer, mas é a puraverdade. - Claro que é verdade, Lord Henry. Se nós as mulheres não osamássemos pelos seus defeitos, onde estariam vocês todos?Nenhum de vocês se teria casado. Seriam um bando de infelizessolteirões. Todavia, isso não os iria modificar muito. Nosdias de hoje, todos os casados vivem como se fossem solteiros,e os solteiros como se fossem casados. - Fin de siècle - murmurou Lord Henry. - Fin du globe - respondeu a sua anfitriã. - Eu queria que fosse fin du globe - disse Dorian, soltandoum suspiro. - A vida é uma enorme desilusão. - Ah, meu querido - exclamou Lady Narborough, enquantocalçava as luvas -, não me diga que esgotou a vida. Quando umhomem diz isso, ficamos a saber que a vida o esgotou a ele.Lord Henry é muito perverso, e às vezes desejo tê-lo sidotambém, mas o senhor está destinado a ser bom, parece ser tãobom. Tenho de lhe conseguir uma boa esposa. Lord Henry, nãoacha que Mr. Gray devia casar? - Ando sempre a falar-lhe nisso, Lady Narborough - respondeuLord Henry, fazendo uma vénia. - Então temos de procurar a parceira ideal para ele. Estanoite vou passar os olhos com muita atenção pelo Debrett(1), eelaboro uma lista de todas as raparigas aceitáveis. - Inclui as idades, Lady Narborough? - perguntou Dorian. - É claro que incluo, com ligeiras alterações. Mas não nosdevemos precipitar. Quero que seja do género que o The MorningPost denomina por enlace equilibrado, e que ambos sejamfelizes. - Os dislates que se dizem sobre casamentos felizes! -exclamou Lord Henry. - Um homem pode ser feliz com qualquermulher, desde que não a ame. *1. Compilação da lista dos membros da aristocraciabritânica, incluindo respectiva genealogia, aqui referenciadapelo apelido do seu autor, John Debrett. (N. da I.) 204 205 - Como o senhor é cínico! - acudiu a velha senhora,arrastando para trás a cadeira e acenando para Lady Ruxton. -Tem de vir em breve jantar comigo outra vez. O senhor é, defacto, um excelente tónico, muito melhor do que aquele que meé receitado por Sir Andrew. Mas tem de me dizer que pessoasgostaria de encontrar. Quero que seja uma reunião deliciosa. - Gosto de homens com futuro, e de mulheres com um passado -respondeu. - Ou acha que, assim, seria uma reunião de saias? - Receio bem que sim - disse ela, a rir, levantando-se. -Mil perdões, minha querida Lady Ruxton - acrescentou. - Nãoreparei que ainda não terminara o seu cigarro. - Não tem importância, Lady Narborough. Fumo em demasia.Futuramente, vou ser mais comedida. - Peço-lhe que não o faça, Lady Ruxton - interveio LordHenry. - A moderação é fatal. O suficiente é tão mau como umarefeição. O mais do que suficiente é tão bom como um banquete. Lady Ruxton olhou-o de um modo curioso. - Deve vir ver-me uma tarde destas para me explicar isso.Parece-me uma teoria fascinante - murmurou, ao sairrapidamente da sala. - Agora, vejam lá se não ficam muito tempo a falar depolítica e escândalos - gritou da porta Lady Narborough. - Seo fizerem, nós vamos com certeza começar a discutir lá emcima. Os homens desataram a rir, e Mr. Chapman levantou-sesolenemente do seu lugar ao fundo da mesa e dirigiu-se para acabeceira. Dorian Gray mudou de lugar e foi sentar-se ao ladode Lord Henry. Mr. Chapman começou a falar em voz alta sobre asituação na Câmara dos Comuns. Ria ostensivamente dos seusadversários. A palavra doctrinaire, vocábulo que aterroriza amentalidade britânica, ouvia-se com frequência por entre osseus frouxos de riso. Um prefixo aliterante servia deornamento de oratória. Hasteava a bandeira do Reino Unido atéaos pináculos do Pensamento. A estupidez hereditária da raça,que ele jovialmente designava por sólido bom senso inglês, eraapontada como verdadeiro baluarte da sociedade. Lord Henry fez um leve sorriso e voltou-se para olhar paraDorian. - Sente-se melhor, meu caro amigo? - perguntou-lhe. -Durante o jantar parecia um pouco abatido. - Estou óptimo, Harry. Apenas cansado. Mais nada. - Ontem à noite você esteve sedutor. A jovem duquesa é-lhemuito dedicada. Disse-me que vai visitá-lo a Selby. - Prometeu ir no dia vinte. - O Monmouth também lá vai estar? - Sim, vai, Harry. - Ele maça-me tremendament, quase tanto como maça a mulher.Ela é muito inteligente, inteligente demais para mulher.Falta-lhe o encanto inexplicável da fragilidade. São os pés debarro que tornam precioso o ouro da imagem. Os pés dela sãomuito bonitos, mas não são pés de barro. Pés de alvaporcelana, se você concordar. Passaram pelo fogo, e o que nãoé destruído pelo fogo endurece. Ela teve as suas aventuras. - Há quanto tempo está casada? - perguntou Dorian. - Há uma eternidade, pelo que ela me diz. Segundo onobiliário, creio que há dez anos, mas dez anos ao lado doMonmouth devem parecer uma eternidade, com mais algum temposomado. Vai mais alguém? - Vão os Willoughbys, Lord Rugby e a esposa, a nossaanfitriã, Geoffrey Clouston, o grupo do costume. Convidei LordGrotrian. - Gosto dele - comentou Lord Henry - Há muita gente que nãogosta, mas eu acho-o uma pessoa encantadora. Ele compensa asua maneira de vestir, por vezes extravagante, com umaeducação absolutamente requintada. É um indivíduo muitomoderno. - Não sei se ele poderá vir, Harry. Possivelmente terá de ira Monte Carlo com o pai. - Ah! As pessoas de família são um impecilho! Faça ospossíveis para que ele apareça. 206A propósito, Dorian, ontem à noite você retirou-se muito cedo.Saiu antes das onze horas. O que fez a seguir? Foidirectamente para casa? Dorian lançou-lhe um olhar fugidio, e carregou o semblante. - Não, Harry - disse, por fim. - Só cheguei a casa por voltadas três. - Esteve no clube? - Estive - respondeu. Depois arrependeu-se. - Não, não foibem assim. Não fui ao clube. Andei por aí. Não me lembro doque fiz... Você é tão curioso, Harry! Quer sempre saber o queos outros fazem. E eu quero sempre esquecer o que fiz. Entreiem casa às duas e meia, se quiser saber a hora exacta.Esquecera-me da chave em casa, e o meu criado teve de me abrira porta. Se quiser provas que confirmem o assunto, podeperguntar-lhe. Lord Henry encolheu os ombros. - Meu caro amigo, isso não me interessa! Vamos até à sala devisitas. Não quero xerez, obrigado, Mr. Chapman. Aconteceu-Lhealguma coisa, Dorian. Conte-me o que se passa. Você estádiferente esta noite. - Não se preocupe comigo, Harry. Estou apenas irritável e demau humor. Passo por sua casa amanhã ou depois. Apresente asminhas desculpas a Lady Narborough. Não vou lá acima. Vou paracasa. Preciso de ir para casa. - Está bem, Dorian. Espero vê-lo amanhã à hora do chá. Aduquesa também vai. - Farei os possíveis por aparecer, Harry - disse ele,abandonando a sala. Quando regressava a casa, tinha a percepção de que voltaraaquela sensação de terror que ele supunha ter estrangulado. Asperguntas banais de Lord Henry levaram-no a perder osangue-frio por uns instantes, e ele precisava ainda de omanter. As coisas que representavam um perigo tinham de serdestruídas. Estremeceu. Detestava a ideia de lhes tocarsequer. 207 Porém, tinha de ser feito. Ele bem o sabia, e, depois de tertrancado a porta da biblioteca, abriu o armário secreto paraonde atirara o sobretudo e a mala de Basil Hallward. Um lumeenorme ardia na lareira. Acrescentou-lhe outra acha. O cheirode roupa chamuscada e de cabedal queimado era insuportável.Foram precisos três quartos de hora para que tudo fosseconsumido pelo fogo. Quando terminou, sentia-se fraco eenjoado. Queimou umas pastilhas argelinas num defumador decobre perfurado, e refrescou as mãos e a testa com um vinagreperfumádo de almíscar. De repente sobressaltou-se. Os olhos tomaram um brilhoestranho, e mordia nervosamente o lábio inferior. No espaçoentre duas das janelas, encontrava-se um armário florentino deébano com embutidos de marfim e lápis-lazúli. Fitava-o comouma coisa que causa simultaneamente fascínio e medo, como seguardasse algo que desejava e que, todavia, quase abominava.Respirava ofegante. Assaltou-o uma ânsia louca. Acendeu umcigarro e depois atirou-o fora. As pálpebras descaíram, e aslongas pestanas quase lhe roçavam as faces. Mas continuava afitar o armário. Por fim, ergueu-se do sofá em que se haviadeitado, aproximou-se dele e, depois de o abrir com a chave,carregou numa mola secreta. Apareceu uma gaveta triangulardeslizando lentamente. Os dedos dirigiram-se instintivamentepara lá, enfiaram-se nela e agarraram algo. Era uma pequenacaixa chinesa de laca negra e ouro velho, minuciosamentetrabalhada, os lados ostentando desenhos de curvas onduladas,e os cordões de seda enfeitados com cristais redondos e borlasde fios de metal entrançados. Abriu-a. Continha uma massaverde, lustrosa como a cera, com um singular odor forte epersistente. Hesitou por momentos, com um sorriso estranhamente imóvel.Depois, tremendo de frio, apesar de o ambiente da sala estarmuito quente, endireitou-se e olhou para o relógio. Faltavamvinte minutos para a meia-noite. Voltou a guardar a caixa,fechando as portas do armário a seguir, e entrou no quarto. 208 Quando a meia-noite batia as suas pancadas de bronze naescuridão, Dorian Gray, vestindo com simplicidade, de cachecolenrolado ao pescoço, saiu de casa furtivamente e de mansinho. Na Bond Street encontrou um fiacre puxado por um bom cavalo.Chamou-o e, em voz baixa e grave, deu um endereço ao cocheiro. O homem abanou a cabeça num gesto de recusa. - Isso fica muito longe para mim - murmurou. - Aqui tem um soberano(1) - disse-Lhe Dorian. - E terá outrose conduzir depressa. - Está bem, senhor - respondeu o homem -, chegamos lá dentrode uma hora. E, depois de ter guardado a moeda, obrigou o cavalo a darmeia volta e dirigiu-se velozmente para as bandas do rio. *1. Moeda de ouro no valor de uma libra (o mesmo que umalibra esterlina). (N. da T.) Capítulo XVI Começou a cair uma chuva gelada, e a pálida luz doscandeeiros tinha um ar sinistro na névoa envolvente. Era ahora de os botequins fecharem, e, às suas portas, vultos dehomens e mulheres juntavam-se em grupos separados. De algunsbares chegava o som de horríveis gargalhadas. Noutros,brigavam e gritavam os bêbados. Recostado no fiacre, o chapéu inclinado para a testa, DorianGray observava com olhar distraído a vergonha sórdida dagrande cidade, e, de vez em quando, repetia para si aspalavras que Lord Henry lhe dissera no primeiro dia em que seconheceram: Curar a alma através dos sentidos, e os sentidosatravés da alma. Sim, era esse o segredo. Experimentara-o comfrequência, e voltaria a experimentá-lo agora. Havia antros deópio, onde se podia comprar o esquecimento, antros de horroronde a memória de velhos pecados se podia apagar com odesvario de novos pecados. A Lua, suspensa tão baixo no céu, parecia uma caveiraamarela. De tempos a tempos, uma enorme nuvem disformeestendia um braço comprido, e ocultava-a. Os lampiões a gáseram cada vez mais raros, e as ruas mais estreitas e escuras.Houve uma vez em que o cocheiro se enganou no caminho e tevede retroceder meia milha. O cavalo fumegava sempre quechapinhava pelas poças de água. As janelas laterais do fiacreestavam cobertas por uma espessa névoa. "Curar a alma através dos sentidos, e os sentidos através daalma!" Como as palavras ainda lhe soavam nos ouvidos! Tinha acerteza de que a alma estava mortalmente doente. Seria verdadeque os sentidos a podiam curar? Fora derramado sangueinocente. Como se poderia resgatar? Ah! Não havia resgatepossível. Mas, muito embora o perdão fosse impossível, 210havia ainda a possibilidade do esquecimento, e ele estavadecidido a esquecer, a eliminar essa lembrança, a esmagá-lacomo se esmagava a víbora que nos mordeu. Pensando bem, quedireito tinha Basil de lhe ter falado daquele modo? Quem oincumbira de julgar os outros? Ele havia dito coisas medonhas,horrendas, intoleráveis. O fiacre prosseguia com dificuldade, parecendo-lhe maisvagaroso a cada passo. Abriu a portinhola e disse ao homem queconduzisse mais depressa. O apetite hediondo pelo ópio começoua acicatá-lo. Sentia um ardor na garganta, e torcianervosamente as mãos delicadas. Bateu furiosamente no cavalocom a bengala. O condutor riu-se e fustigou com o chicote. Elerespondeu com outra gargalhada, mas o homem calou-se. O caminho parecia interminável, e as ruas eram a teia negrade uma aranha gigantesca. A monotonia tornava-se-lheinsuportável, e, como o nevoeiro era mais cerrado, sentiamedo. Depois passaram pelas solitárias fábricas de tijolos. Aí onevoeiro era menos denso, e pôde ver os estranhos fornos emforma de garrafa com as alaranjadas línguas de fogo espalhadasem leque. Um cão ladrou à sua passagem, e ao longe, em plenaescuridão, ouviu-se o grito de alguma gaivota perdida. Ocavalo tropeçou num sulco, depois desviou-se e desatou agalopar. Pouco tempo depois, saíram da estrada de argila e voltaram asacolejar pelas ruas de piso irregular. A maior parte dasjanelas estava às escuras, mas ocasionalmente recortavam-se,através de um estore iluminado, as silhuetas de sombrasgrotescas. Ele observava-as com curiosidade. Moviam-se comogigantescas marionetas e gesticulavam como coisas com vida.Odiava-as. Invadia-lhe o coração uma raiva surda. Ao dobraremuma esquina, de uma porta aberta uma mulher gritou-lhesqualquer coisa, e dois homens correram,atrás do fiacre cercade cem jardas. O condutor afugentou-os com o chicote. 211 Diz-se que a paixão nos faz pensar em círculo. Era certo queos lábios mordidos de Dorian Gray formulavam e tornavam aformular, repetindo-as obsessivamente, aquelas palavrasinsidiosas sobre a alma e os sentidos, até nelas encontrar aplena expressão do seu estado de espírito e justificar, com aaprovação do intelecto, as paixões que, mesmo sem essajustificação, continuariam a dominá-lo. Pelas células docérebro insinuava-se um único pensamento, e o louco desejo deviver, o mais terrível de todos os apetites do homem, vibravaintensamente em cada nervo e em cada fibra. A fealdade, queoutrora abominara por dar realidade às coisas, agradava-lheagora pela mesma razão. A fealdade era a única realidade. Arixa grosseira, o antro sórdido, a crua violência da vidadesbragada, a própria vilania do ladrão e do marginal possuíamuma realidade mais vívida e intensa do que todas as graciosasformas da Arte, ou os vagos sonhos da Poesia. Era disso queprecisava para poder esquecer. Dentro de três dias estarialiberto. De súbito, o condutor estacou com um movimento brusco aocimo de uma ruela sombria. Por cima dos telhados baixos e dasrecortadas chaminés das casas, assomavam os mastros negros dosnavios. Espirais de névoa branca enroscavam-se nas vergas comovelas espectrais. - É algures por aqui, não é, senhor? - perguntou, a voz umpouco rouca, através da portinhola. Dorian sobressaltou-se, e examinou o local. - Pode deixar-me aqui - respondeu. Desceu à pressa e, depois de ter dado ao condutor a gorgetaque lhe prometera, encaminhou-se rapidamente para o molhe.Aqui e ali, bruxuleava um lampião à popa de um enorme naviomercante. A luz tremeluzia e estilhaçava-se nos charcos.Via-se um clarão vermelho, proveniente de um vapor que seabastecia de carvão para se fazer ao largo. O pavimentoviscoso parecia um impermeável molhado. Ele virou à esquerda, continuando na sua passada rápida, e, 212de vez em quando, olhava para trás para ver se estava a serseguido. Sete ou oito minutos depois, chegou a um pequenopardieiro, encravado entre duas fábricas de aspecto lúgubre.Numa das janelas do último piso estava um candeeiro. Deteve-seaí e bateu à porta com umas pancadas peculiares. Ao cabo de algum tempo, ouviu passos no corredor e retirarema corrente. A porta abriu-se sem ruído, e entrou, sem nadadizer à figura atarracada e grotesca que se espalmou na sombrapara ele passar. Ao fundo do corredor, havia uma esfarrapadacortina verde, que flutuou com a rajada de vento que entraraconsigo. Afastou-a, e passou a uma sala baixa e comprida, queparecia ter sido outrora um salão de baile de terceira ordem.Bicos de gás de luz viva e intensa, que os espelhos sujos dolado oposto tornavam mortiça e distorcida, estavam dispostosem fila à volta das paredes. Por detrás, tinham reflectoresgordurosos de lata canelada que projectavam discos de luzbruxuleante. O chão estava coberto de serradura amarelo-ocre,aqui e ali revolvida em lama, e com manchas escuras de bebidasderramadas. Perto de um pequeno fogão a carvão de lenha,acocoravam-se uns malaios a jogar com fichas de osso, evia-se-Lhes o branco dos dentes quando tagarelavam. A umcanto, a cabeça mergulhada nos braços, encontrava-se ummarinheiro debruçado sobre a mesa, e, junto ao balcão de coresberrantes que ocupava por completo um dos lados, estavam duasmulheres macilentas a zombar de um velho que, com umaexpressão de repugnância, sacudia as mangas do casaco. - Julga que está coberto de formigas - riu uma delas, quandoDorian ia a passar. O homem olhou para ela aterrorizado ecomeçou a choramingar. Ao fundo da sala havia um pequeno lanço de escadas queconduzia a um compartimento obscurecido. Assim que subiu ostrês frágeis degraus, Dorian sentiu o odor intenso do ópio.Respirou fundo, as narinas frementes de prazer. Quando entrou,um jovem de cabelo liso e louro, debruçado sobre um candeeiroa acender um longo cachimbo delgado, ergueu os olhos para elee acenou-lhe de um modo hesitante. 213 - Você aqui, Adrian? - balbuciou Dorian. - E onde havia de estar? - respondeu, com indiferença. -Toda a rapaziada cortou relações comigo. - Julgava que você tinha saído de Inglaterra. - O Darlington não vai fazer nada. O meu irmão resolveupagar a letra. O George também deixou de me falar.. Não meimporto - acrescentou, com um suspiro. - Desde que se tenhaeste produto, não precisamos de amigos. Creio que tenho amigosa mais. Dorian estremeceu, e passou os olhos pelas figuras grotescasdeitadas em posições tão excêntricas sobre os colchões rotos.Os membros contorcidos, as bocas escancaradas, os olhos fixose sem brilho fascinavam-no. Sabia bem em que estranhos céusestavam a penar e que infernos sombrios lhes ensinavam osegredo de algum prazer desconhecido. Eram mais afortunados doque ele. Ele era prisioneiro do pensamento. A memória,semelhante a horrível maleita, destruía-lhe a alma. De vez emquando, parecia-Lhe ver os olhos de Basil Hallward afitarem-no. Sentia, no entanto, que não podia ficar.Perturbava-o a presença de Adrian Singleton. Queria estar numlugar onde nenhum homem o identificasse. Queria fugir de simesmo. - Vou ao outro sítio - disse, após alguma hesitação. - No ancoradouro? - Sim. - Aquela gata assanhada de certeza que vai estar lá.Agora não a querem aqui. Dorian encolheu os ombros, num gesto de indiferença. - Estou farto das mulheres que amam. As mulheres que odeiamtêm muito mais interesse. Além disso, o produto é melhor. - É quase a mesma coisa. - Prefiro-o. Venha tomar uma bebida. Preciso de beberqualquer coisa. - Não quero nada - murmurou o jovem. 214 215 - Não importa. Adrian Singleton levantou-se com um movimento de cansaço, eseguiu atrás de Dorian até ao bar. Um mestiço, de turbante esfarrapado e sobretudo puído,recebeu-os com um sorriso repelente, empurrando para eles umagarrafa de conhaque e dois copos. Duas mulheres foram-seaproximando e começaram a conversar. Dorian voltou-lhes ascostas, e disse qualquer coisa em voz baixa a AdrianSingleton. Um sorriso perverso, como um ricto malaio, arrepanhou a carade uma das mulheres. - Que orgulhosos estamos esta noite - disse, com arescarninho. - Por amor de Deus, não fales comigo - gritou Dorian,batendo com o pé no chão. - O que é que queres? Dinheiro? Aquitens. E não voltes a dirigir-me a palavra. Duas chispas vermelhas iluminaram momentaneamente os olhostoldados da mulher, depois apagaram-se, deixando-os baços evidrados. Atirou a cabeça para trás, e arrebanhou as moedas dobalcão com dedos ávidos. A companheira olhava-a com inveja. - Não vale a pena - disse, com um suspiro, Adrian Singleton.- Não me interessa voltar. Que importa? Sinto-me muito felizaqui. - Vai escrever-me se precisar de alguma coisa, não vai? -disse Dorian, após um breve silêncio. - Talvez. - Então boa noite. - Boa noite - respondeu o jovem, subindo os degraus, elimpando a um lenço a boca ressequida. Dorian encaminhou-se para a porta, com uma expressão demágoa no rosto. Quando afastava a cortina, uma gargalhadahorrenda irrompeu dos lábios pintados da mulher que ficara como dinheiro. - Lá vai o pacto do diabo! - gritou em voz rouca eentrecortada de soluços. - Maldita! - respondeu ele. - Não me chames isso. Ela deu estalos com os dedos. - Gostas é que te chamem Príncipe Encantado, não é? -retorquiu-lhe aos berros. O marinheiro amodorrado levantou-se de um salto quando aouviu, e olhou furiosamente à sua volta. O ruído da porta deentrada a fechar-se chegou-Lhe aos ouvidos. Saiuprecipitadamente, como se fosse em perseguição de alguém. Dorian Gray seguia apressado ao longo do molhe, sob a chuvamiudinha. O encontro com Adrian Singleton causara-Lhe umaestranha emoção, e interrogava-se se seria ele o responsávelpela destruição daquela juventude, como Basil Hallwarddissera, insultando-o tão infamemente. Mordeu o lábio,apreensivo,, por momentos, o olhar entristeceu-se. Mas,afinal, que lhe importava isso? A vida era demasiado curtapara sobrecarregar os ombros com os erros dos outros. Cada umvivia a sua vida, e pagava o seu preço por vivê-la. Só erapena que se tivesse de pagar tantas vezes por um único erro.Na verdade, pagava-se vezes sem conta. Nos seus negócios com ohomem, o Destino nunca dava as contas por encerradas. Existem momentos, segundo os psicólogos, em que a paixãopelo pecado, ou por aquilo a que o mundo chama pecado, dominade tal modo um temperamento que cada fibra do corpo, assimcomo cada célula do cérebro, parece estar possuída de impulsostemíveis. Em momentos desses, os homens e as mulheres perdem olivre-arbítrio. Encaminham-se, como autómatos, para um fimterrível. É-Lhes retirada a possibilidade de escolha, e aconsciência é morta, ou, se conseguir sobreviver, viveunicamente para dar sedução à rebeldia, e encanto àdesobediência. Pois todos os pecados, como os teólogos não secansam de nos lembrar, são pecados da desobediência. Quandoesse espírito supremo, essa estrela da manhã do mal, caiu docéu, foi como rebelde que caiu. Indiferente, concentrado no mal, de semblante carregado e aalma faminta de rebeldia, Dorian Gray caminhava apressado, 216estugando o passo à medida que caminhava, mas quando sedesviou aceleradamente para uma arcada, que utilizavafrequentemente para encurtar caminho em direcção ao local demá fama para onde agora se encaminhava, sentiu-se bruscamenteagarrado por trás e, antes de ter tempo para se defender, foiarremessado contra a parede, com mão brutal a apertar-lhe agarganta. Debateu-se desesperadamente para se libertar e, comenorme esforço, desprendeu os dedos que o estrangulavam. Emmenos de um segundo, ouviu o estalido de um revólver e viureluzir um cano apontado directamente à sua cabeça, e o vultoescuro de um homem baixo e atarracado à sua frente. - O que é que quer? - perguntou, arquejante. - Quieto - disse o homem. - Qualquer movimento, e eudisparo. - Você está louco. Que mal Lhe fiz? - Destruíste a vida de Sibyl Vane - respondeu -, e SibylVane era minha irmã. Ela matou-se. Eu sei. Mas tu ésresponsável pela sua morte. Jurei que me vingaria matando-te.Há anos que te procuro. Não tinha indícios, nem pista alguma.As duas pessoas que poderiam identificar-te morreram. De tinada sabia, a não ser o nome por que ela costumava chamar-te.Ouvi-o casualmente esta noite. Encomenda a tua alma a Deus,pois vais morrer esta noite. Dorian Gray sentiu a náusea do medo. - Eu nunca a conheci - gaguejou. - Nunca ouvi falar dela.Você está doido. - Seria melhor que confessasses o teu pecado, pois, tãocerto como eu chamar-me James Vane, vais morrer. Era um momento horrível. Dorian não sabia que dizer oufazer. - De joelhos! - resmungou o homem. - Dou-te um minuto paraencomendares a tua alma, e mais nada. Embarco esta noite paraa Índia, mas primeiro tenho que cumprir a minha tarefa. Umminuto. E acabou-se. Dorian deixou cair os braços. Paralisado pelo terror, nãosabia que fazer. De súbito, assaltou-o uma esperança absurda. 217 - Espere! - gritou. - Há quanto tempo morreu a sua irmã?Diga-me, depressa! - Há dezoito anos - respondeu o homem. - Por que mopergunta? Que interessa saber há quantos anos? - Dezoito anos - riu Dorian Gray, com uma ponta de triunfona voz. - Dezoito anos! Leve-me para debaixo do candeeiro eolhe para a minhacara! James Vane teve uma leve hesitação, sem compreender o quesignificava aquilo. Depois, agarrou Dorian Gray e puxou-o parafora da arcada. . Apesar de difusa e vacilante, pelo vento que soprava, a luzchegou para lhe mostrar o erro medonho que lhe parecera tercometido, pois a cara do homem que ele procurara para matartinha todo o viço da adolescência, toda a pureza imaculada dajuventude. Parecia ser pouco mais velho do que um rapaz devinte primaveras, pouco mais velho, talvez nem tanto, do que asua irmã, quando ambos se haviam despedido tantos anos antes.Era evidente que este não era o homem que destruíra a vidadela. Largou-o e recuou, cambaleante. - Meu Deus! Meu Deus - exclamou -, estive prestes a matá-lo! Dorian Gray soltou um longo suspiro de alívio. - Esteve prestes a cometer um crime terrível, homem - disse,deitando-lhe um olhar severo. - Que isto Lhe sirva de avisopara não se vingar por suas próprias mãos. - Perdoe-me, senhor - balbuciou James Vane. - Foi umequívoco. Foi uma palavra ouvida por acaso naquele antromaldito que me induziu à pista errada. - É preferível que vá para casa e guarde essa pistola, senãopode meter-se em sarilhos - disse Dorian, dando meia volta edescendo a rua vagarosamente. James Vane continuou parado no passeio, horrorizado. Todo ocorpo lhe tremia. Pouco depois, uma sombra que se tinha vindoaproximando, cosida com a parede húmida, apareceu à luz eaproximou-se dele com passos furtivos. Ele sentiu a mãopousar-lhe no braço e voltou-se, sobressaltado. Era uma dasmulheres que estivera a beber no bar. 218 - Por que não o mataste? - perguntou-lhe, em voz sibilante eaproximando a face macilenta da dele. - Eu sabia que vinhas noseu encalço quando saíste a correr do Daly. Seu palerma!Devias ter acabado com ele. Tem muito dinheiro, e é tão ruimquanto se pode ser. - Não é o homem que eu procuro - respondeu -, e não quero odinheiro de ninguém. Quero a vida de um homem. O homem a quemquero tirar a vida deve ter agora perto de quarenta anos. Esteé pouco mais do que um rapaz. Graças a Deus, não manchei asminhas mãos com o seu sangue. A mulher soltou um riso amargo. - Pouco mais do que um rapaz! - escarneceu ela. - Ora,homem, há quase dezoito anos que o Príncipe Encantado fez demim o que sou agora. - Mentes! - gritou James Vane. Ela ergueu a mão ao céu. - Juro por Deus que falo verdade - exclamou. - Por Deus? - Que eu morra aqui se não é verdade. Ele é o pior de todosos que vêm aqui. Dizem que vendeu a alma ao diabo em troca deuma bonita cara. Faz quase dezoito anos que o encontrei. Nãomudou muito de então para cá. Mas eu mudei - acrescentou, comum olhar malévolo. - Juras? - Juro - disse, como um eco enrouquecido, a sua bocaimplacável. - Mas não me denuncies - pediu, lamuriando-se.-Tenho medo dele. Dá-me algum dinheiro para pagar o quartoesta noite. Ele largou-a com uma praga, e correu para a esquina da rua,mas Dorian Gray- desaparecera. Quando olhou para trás de si, amulher também havia desaparecido. Capítulo XVII Uma semana depois, Dorian Gray estava sentado na estufade Selby Royal a conversar com a formosa duquesa de Monmouth,que, acompanhada pelo marido, um sexagenário de ar fatigado,se encontrava entre os seus convidados. Era a hora do chá, e aluz suave do enorme candeeiro coberto de renda que seencontrava sobre a mesa iluminava as delicadas porcelanas e aprata cinzelada da baixela com que a duquesa servia. As mãosbrancas moviam-se delicadamente por entre as chávenas, e oslábios vermelhos e carnudos sorriam de qualquer coisa queDorian lhe segredara. Lord Henry, recostado numa cadeira devime coberta com pano de seda, observava-os. Sentada num divãcor de pêssego, Lady Narborough fingia estar atenta àdescrição do duque sobre o último escaravelho brasileiro queacrescentara à sua colecção. Três jovens de smoking a rigorserviam bolos a algumas senhoras. O grupo era constituído pordoze pessoas, e eram esperadas mais algumas que chegariam nodia seguinte. - De que estão os dois a falar? - perguntou Lord Henry,aproximando-se da mesa e pousando a chávena. - Espero que oDorian lhe tenha falado do meu plano de rebaptizar tudo,Gladys. É uma ideia extraordinária. - Mas eu não quero ser rebaptizada, Harry - retorquiu aduquesa, erguendo para ele os seus olhos maravilhosos. - Estouplenamente satisfeita com o meu nome, e tenho a certeza de queMr. Gray deve estar satisfeito com o dele. - Minha querida Gladys, por nada deste mundo iria alterarqualquer deles. Ambos são perfeitos. Eu estava a pensarprincipalmente nas flores. 220Ontem cortei uma orquídea para pôr na botoeira. Era umexemplar maravilhoso, às pintas, tão eficaz como os setepecados mortais. Num momento de irreflexão, perguntei a um dosjardineiros o nome dela. Disse-me que era um exemplar perfeitoda Robinsoniana, ou qualquer coisa horrível do género. É umatriste verdade, mas perdemos a capacidade de atribuir nomesbonitos às coisas. Os nomes são tudo: Nunca tenho divergênciascom as acções. A minha única divergência é com as palavras.Esse é o motivo por que detesto o realismo grosseiro naliteratura. O homem que chama pá a uma pá(1) devia serobrigado a usar uma. É a única coisa para que ele serve. - Nesse caso, o que lhe havíamos de chamar, Harry? -perguntou ela. - O nome dele é Príncipe Paradoxo - disse Dorian. - Reconheço-o num relance - exclamou a duquesa. - Nem quero ouvir tal coisa - protestou Lord Henry a rir,refastelando-se numa cadeira. - Não se consegue escapar a umrótulo! Recuso o título. - A realeza não pode abdicar - pronunciaram, como um aviso,os formosos lábios. - Quer então que defenda o meu trono? - Quero. - Eu comunico as verdades de amanhã. - Eu prefiro os erros de hoje - replicou ela. - Você desarma-me, Gladys - exclamou ele, apercebendo-se dasua obstinação caprichosa. - Do seu escudo, Harry, não da sua lança. - Nunca uso lança contra a beleza - retorquiu, fazendo umgesto com a mão. - Esse é o seu erro, Harry, creia-me. Dá demasiado valor àbeleza. - Como pode dizer uma coisa dessas? Admito que consideromelhor ser-se belo do que ser-se bom. *1. Tradução literal. Em tradução livre, corresponderia achama as coisas pelo seu nome / «pão, pão, queijo, queijo».(N. da T.) 221Mas, por outro lado, ninguém mais do que eu está disposto areconhecer que mais vale ser-se bom do que ser-se feio. - Sendo assim, a fealdade é um dos sete pecados mortais? -exclamou a duquesa. - O que aconteceu à sua alegoria daorquídea? - A fealdade é uma das sete virtudes mortais, Gladys. Comoboa conservadora que é, não devia subestimá-las. A cerveja, aBíblia e as sete virtudes mortais fizeram da Inglaterra o queela é. - Não gosta então do seu país? - perguntou-lhe. - É nele que vivo. - Para melhor o censurar. - Quer que eu assuma o veredicto da Europa sobre ele? -inquiriu. - Que dizem eles de nós? - Que Tartufo emigrou para Inglaterra e abriu uma loja. - A frase é de sua autoria, Harry? - Ofereço-lha. - Não poderia usá-la. É demasiado verdadeira. - Não tenha receio. Os nossos compatriotas nunca reconhecemuma descrição. - São práticos. - São mais astutos do que práticos. Quando fazem o balançono livro razão, saldam a estupidez com a fortuna e o vício coma hipocrisia. - Mesmo assim, temos feito grandes coisas. - As grandes coisas é que foram lançadas sobre nós, Gladys. - Temos carregado com esse fardo. - Somente até à Bolsa de Valores. Ela fez um aceno negativo com a cabeça. - Acredito na raça - exclamou. - Representa a sobrevivência do esforço. - Tem evoluído. - A decadência seduz-me mais. - E a Arte? - perguntou ela. - É uma doença. 222 - O Amor? - Uma ilusão. - A Religião? - O moderno substituto da Crença. - Você é um céptico. - Nunca! O cepticismo é o começo da Fé. - Você o que é? - Definir é limitar. - Dê-me uma pista. - Os fios partem-se. Ficaria perdida no labirinto. - Você deixa-me confusa. Falemos de alguém. - O nosso anfitrião é um tema fascinante. Há uns anosbaptizaram-no Príncipe Encantado. - Ah! Não me traga isso à lembrança - protestou Dorian Gray. - O nosso anfitrião está bastante desagradável esta tarde -respondeu a duquesa, ruborizada. - Creio que ele supõe queMonmouth casou comigo por razões puramente científicas, comose eu fosse o melhor exemplar de moderna borboleta queconseguiu para si. - Bem, espero que ele não Lhe espete alfinetes, duquesa -disse Dorian, rindo. - Ora, a minha criada já se encarrega de o fazer, Mr. Gray,quando está ofendida comigo. - E o que a faz ficar ofendida com a senhora duquesa? - As coisas mais triviais, Mr. Gray, afianço-lhe.Habitualmente, é porque chego às nove menos dez e digo-lhe quetenho de estar pronta às oito e meia. - Que criada tão insensata! Devia despedi-la. - Não me atrevo, Mr. Gray. É que ela inventa chapéus paramim. Lembra-se daquele que levei à festa no jardim de LadyHilstone? Não se lembra, mas é gentil da sua parte fingir quese lembra. Pois ela fê-lo do nada. Todos os bons chapéus sãofeitos do nada. - Como todas as boas reputações, Gladys - interrompeu LordHenry. - Todo o efeito que produzimos dá-nos um inimigo. 223Para termos popularidade temos de ser medíocres. - Isso não acontece com as mulheres - disse a duquesa,abanando a cabeça, - e as mulheres governam o mundo.Garanto-Lhe que não suportamos mediocridades. Nós as mulheres,como diz alguém, amamos com os ouvidos, do mesmo modo quevocês os homens amam com os olhos, se é que vocês amam mesmo. - Parece-me que nunca fazemos outra coisa - murmurou Dorian. - Ah, nesse caso, realmente nunca amam, Mr. Gray - respondeua duquesa, num arremedo de mágoa. - Minha querida Gladys! - exclamou Lord Henry. - Como podedizer isso? Um romance de amor vive da repetição, e arepetição converte um apetite em arte. Além disso, cada vezque se ama é a única vez que já se amou. A diferença noobjecto do amor não altera a integridade da paixão. Só lhe dámais intensidade. Na melhor das hipóteses, podemos ter na vidaapenas uma experiência magnífica, e o segredo da vida está emreproduzir essa experiência tantas vezes quanto possível. - Mesmo quando ela nus magoou, Harry? - perguntou a duquesa,após algum silêncio. - Especialmente quando nos magoou - respondeu Lord Henry. A duquesa voltou-se para Dorian Gray, olhando-o com umaexpressão singular. - Que diz a isto, Mr. Gray? - perguntou-lhe. Dorian hesitou um pouco. Depois atirou a cabeça para trás eriu-se. . - Eu concordo sempre com o Harry, duquesa. - Mesmo quando ele não tem razão? - O Harry tem sempre razão, duquesa. - E a sua filosofia fá-lo feliz? - Nunca busquei a felicidade. Quem quer a felicidade? Tenhobuscado o prazer. - E encontrou-o, Mr. Gray? - Muitas vezes. Vezes demais. 224 A duquesa suspirou. - Eu ando à procura de paz - disse ela -, e se não vou jávestir-me, não vou ter nenhuma esta noite. - Permita-me que lhe vá buscar umas orquídeas - exclamouDorian, que se ergueu rapidamente e se dirigiu para o fundo daestufa. - Você está a namorá-lo escandalosamente - comentou LordHenry para a prima. - Seria melhor que tivesse cuidado. Ele émuito sedutor. - Se o não fosse, não haveria combate. - Nesse caso, são gregos contra gregos? - Estou do lado dos troianos. Eles lutaram por uma mulher. - E foram vencidos. - Há coisas piores que o cativeiro - retorquiu ela. - Você galopa à rédea solta. - É o ritmo da passada que conserva a vida - replicou. - Hei-de anotar esta noite no meu diário. - O quê? - Que criança queimada ama o fogo. - Nem sequer estou chamuscada. As minhas asas estãointactas. - Você poderá servir-se delas para tudo, excepto para voar. - A coragem passou dos homens para as mulheres. Para nós éuma experiência nova. - Tem uma rival. - Quem? Ele riu-se. - Lady Narborough - segredou ele. - Ela adora-o. - Deixa-me apreensiva. A atracção pela Antiguidade é fatalem nós, as românticas. - Românticas! Vocês têm todos os métodos da ciência. - Os homens educaram-nos. - Mas não vos explicaram. - Descrevem-nos como um sexo - disse, em tom de desafio. 225 - Esfinges sem segredos. Ela fitou-o com um sorriso. - Que demorado está Mr. Gray! Vamos ajudá-lo. Ainda lhe nãodisse a cor do meu vestido. - Bem, Gladys, terá que fazer condizer o vestido com asflores dele. - Isso seria uma capitulação prematura. - A arte romântica começa pelo clímax. - Preciso de reservar uma oportunidade de retirada. - À maneira dos Partos(1)? - Eles procuravam refúgio no deserto. Eu não conseguiriafazê-lo. - As mulheres nem sempre têm oportunidade de escolha - foi aresposta dele. Mas, mal terminara a frase, ouviu-se, vindo do fundo daestufa, um gemido abafado, seguido do baque da queda de umcorpo. Levantaram-se todos em sobressalto. A duquesa ficouparalisada de terror. Lord Henry, o receio estampado no olhar,precipitou-se por entre as folhas balouçantes das palmeiras efoi encontrar Dorian Gray caído de bruços sobre os ladrilhos,e desmaiado como se estivesse morto. Transportaram-no de imediato para a sala azul e deitaram-nosobre um dos sofás. Pouco tempo depois, ele voltou a si, eolhou à sua volta com ar aturdido. - Que aconteceu? - perguntou. - Ah! Já me lembro. Aqui estouem segurança, Harry? Começou a tremer. - Meu caro Dorian - respondeu-lhe Lord Henry -, foi apenasum desmaio. Mais nada. Você deve estar extremamente fatigado.Será melhor não descer para jantar. Eu posso substituí-lo. *1. Excelentes cavaleiros e guerreiros oriundos das estepes,cujo império se situava entre os rios Eufrates e Indo (cercade 240 a. C. - cerca de 230 d. C.), utilizavam a estratégia dedisparar setas durante uma retirada, quer esta fosse real quersimulada. (N. da T.) 226 - Não, eu desço - disse ele, levantando-se com dificuldade.- Prefiro vir cá abaixo. Não posso ficar sozinho. Foi para o quarto vestir-se. Quando se sentou à mesa parajantar, havia nos seus modos uma alegria exagerada einconsequente, mas de vez em quando percorria-o um frémito deterror ao lembrar-se que, colada à janela da estufa, como umlenço branco, vira a cara de James Vane a fitá-lo. Capítulo XVIII No dia seguinte não saiu de casa. A verdade é que passoua maior parte do tempo no quarto, angustiado por um desmedidopavor da morte, e, no entanto, indiferente à vida. Começara aobcecá-lo a ideia de ser perseguido, atraído a uma armadilha ecaçado. Estremecia se a tapeçaria abanava ao de leve com ovento. As folhas mortas que o vento atirava contra as vidraçaspareciam-lhe os seus propósitos perdidos e desvairadosremorsos. Quando fechava os olhos, tornava a ver a cara domarinheiro a espreitá-lo através do vidro embaciado pelanévoa, e, mais uma vez, sentia o pavor a apertar-lhe ocoração. Mas, provavelmente, fora a sua imaginação que fizera sairdas trevas da noite a vingança, e lhe pusera diante dos olhosas formas hediondas do castigo. A vida real era o caos, mas aimaginação tinha algo de terrivelmente lógico. Era a imaginação que lançava o remorso no rasto do pecado.Era a imaginação que obrigava cada crime a gerar os seusmonstros. No mundo da banal realidade, os maus não erampunidos, nem os bons recompensados. O triunfo era concedidoaos fortes, o fracasso imposto aos fracos. E era assim mesmo.Além disso, qualquer intruso que andasse a rondar a casa teriasido visto pelos criados ou pelos couteiros. Se tivessem sidoencontradas pegadas nos canteiros de flores, os jardineirostê-lo-iam informado. Estava convicto de que fora puraimaginação. O irmão de Sibyl Vane não regressara para o matar.Ele partira no seu navio e afundara-se em mar de invernia.Dele, ao menos, estava livre. Ora, o homem não sabia quem eleera, nem poderia saber. A máscara da juventude salvara-o. E, contudo, mesmo se aquilo fora apenas uma alucinação, 228 229não deixava de ser terrível pensar que a consciência podiacriar fantasmas tão medonhos, e dar-Lhes forma física emovimento! Que vida seria a sua se, dia e noite, as sombras doseu crime o espiassem de recantos silenciosos, deleescarnecessem de lugares secretos, lhe segredassem ao ouvido ameio de uma festa, o despertassem com dedos álgidos quandodormia! À medida que a ideia se lhe insinuava na mente,empalidecia de terror, e parecia-Lhe que o ar subitamentearrefecera. Ah! O violento desvario daquela hora em que matarao amigo! A simples lembrança da cena era aterradora! Tornava aver tudo. Voltava-lhe à memória cada pormenor horrendoacrescentado de um novo horror. Da negra caverna do Tempo,terrível e envolta em faixas escarlates, surgia a imagem doseu pecado. Às seis horas, Lord Henry entrou no quarto eencontrou-o num choro convulsivo, como se o coração se fossepartir. Só no terceiro dia se atreveu a sair. Havia qualquer coisano ar límpido e perfumado de pinho daquela manhã de Invernoque parecia devolver-Lhe a jovialidade e o entusiasmo pelavida. Mas não foram apenas as condições físicas da atmosfera aprovocar a mudança. A própria índole rebelara-se contra aexcessiva angústia que tentara mutilar e destruir a perfeiçãoda sua serenidade. É uma característica dos temperamentossubtis e requintados. As suas paixões intensas devem magoar ouvergar-se. Matam o homem, ou morrem.. Os pesares e amoresfúteis sobrevivem. Os amores e pesares sublimes são destruídospela sua própria plenitude. Além do mais, ele convencera-se deque fora vítima de uma imaginação dominada pelo terror, e, aorevê-los agora, compadecia-se, e desdenhava mesmo, dos seusmedos. Após o pequeno-almoço, passeou durante uma hora no jardimcom a duquesa; depois conduziu uma charrete até ao outroextremo do parque para se juntar ao grupo dos caçadores. Ageada parecia sal a cobrir a relva. O céu era o fundo azul deuma taça de metal. Uma fina camada de gelo orlava a superfícielisa do lago onde cresciam juncos. Numa volta do pinhal, avistou Sir Geoffrey Clouston, o irmãoda duquesa, que sacudia da espingarda dois cartuchos vazios.Saltou da charrete e; depois de ter ordenado ao moço deestrebaria que regressasse com a égua, abriu caminho por entrefetos secos e eriçadas moitas em direcção ao seu convidado. - A caçada foi boa, Geoffrey? - perguntou-lhe. - Não foi lá muito boa, Dorian. Creio que a maioria dospássaros fugiu para os campos. Acho que será melhor depois dealmoço, quando formos para outro sítio. Dorian ia caminhando a seu lado. O ar estimulante eperfumado, as cintilações castanhas e vermelhas do bosque, osgritos enrouquecidos dos batedores ressoando de tempos atempos, seguidos dos disparos secos das espingardas,fascinavam-no e invadiam-no de uma sensação de deliciosaliberdade. Era dominado por uma felicidade sem cuidados e umaintensa e despreocupada alegria. De repente, de um encrespado tufo de penas secas, a umasvinte jardas mais adiante, as orelhas de ponta pretaespetadas, e com as longas patas traseiras a impelirem-na paraa frente, saltou uma lebre. Escapava-se para uma mata deamieiros. Sir Geoffrey encostou a espingarda ao ombro, masalgo no movimento grácil do animal fascinou inesperadamenteDorian Gray, que gritou de imediato. - Não a mate, Geoffrey! Deixe-a viver. - Que dísparate, Dorian! - disse, rindo, o companheiro. E, quando a lebre saltou para o matagal, disparou.Ouviram-se dois gritos: o grito de uma lebre ferida, o que éhorrível, e o grito de um homem agonizante; o que é pior. - Valha-me Deus! Atingi um batedor! - foi a exclamação deSir Geoffrey. - Que estupidez! Ir colocar-se mesmo em frentedas espingardas! Vocês aí, não disparem! - bradou ele aosoutros. - Há um homem ferido. O chefe dos couteiros acorreu de varapau na mão. - Onde, senhor? Onde está ele? - gritou o homem. Ao mesmotempo cessaram os disparos em toda a fileira. - Está aqui - respondeu, irritado, Sir Geoffrey,precipitando-se para a mata. 230 231 - Por que cargas de água não mantém os seus homens lá atrás?A caçada do dia já está estragada. Dorian observava-os a embrenharem-se na mata de amieirosafastando os ramos flexíveis e balouçantes. Reapareceram poucodepois, arrastando um corpo para a luz do sol. Ele voltou ascostas horrorizado. A desgraça parecia segui-lo para onde querque fosse. Ouviu Sir Geoffrey perguntar se o homem estavarealmente morto, e a resposta afirmativa do couteiro. Tinha asensação de que, subitamente, o bosque se povoara de rostos.Ouvia o tropel de miríades de pés e o grave sussurro de vozes.Um grande faisão de peito acobreado surgiu esvoaçando porentre os ramos das árvores. Após alguns momentos, que, no estado de perturbação em quese encontrava, lhe pareceram intermináveis horas desofrimento, sentiu a mão que pousara no seu ombro. Voltou-se,sobressaltado. - Dorian - disse Lord Henry -, será melhor que eu lhes digaque a caçada terminou por hoje. Não pareceria bem continuar. - Quem me dera que terminasse para sempre, Harry -respondeu, com amargura. - É uma coisa repugnante e cruel. Ohomem está...? Não conseguiu concluir a frase. - Creio que sim - retorquiu Lord Henry. - Apanhou a cargatoda no peito. Deve ter tido morte instantânea. Venha, vamospara casa. Caminharam juntos na direcção da alameda, percorrendo umascinquenta jardas em silêncio. Então Dorian olhou para LordHenry, soltando um longo suspiro. - Isto é um mau presságio, Harry - disse ele -, um presságiomuito mau. - O quê? - perguntou Lord Henry -, Ah, este acidente,suponho. Meu caro amigo, não se pode fazer nada. Foi por culpado homem. Por que se colocou ele em frente das espingardas?Aliás, nada temos a ver com isso. O Geoffrey encontra-se numasituação bastante delicada, é claro. Não é conveniente atingiros batedores. Leva as pessoas a pensar que somos atiradoresdesastrados. E o Geoffrey não o é; ele é um óptimo atirador.Mas não vale a pena falar sobre o assunto. Dorian abanou a cabeça. - É um mau presságio, Harry. Tenho a sensação de que umacoisa terrível vai acontecer a alguns de nós. Talvez a mim -acrescentou, passando a mão pelos olhos, com um gesto de dor. O mais velho riu-se. - A única coisa horrível deste mundo é o Ennui, Dorian. Esseé o único pecado para o qual não existe perdão. Mas não éprovável que ele nos afecte, a não ser que, durante o jantar,estes amigos continuem a falar sobre o caso. Tenho de lhesdizer que será um assunto interdito. Quanto aos presságios, écoisa que não existe. O Destino não se faz anunciar. Temdemasiado bom senso ou demasiada crueldade para o fazer. Demais a mais, o que é que lhe poderia acontecer, Dorian? Vocêtem tudo o que um homem pode desejar neste mundo. Não háninguém que não ficasse encantado por trocar de lugar consigo. - Não há ninguém com quem eu não desejasse trocar de lugar,Harry. Não se ria assim. É verdade. O infeliz camponês queacaba de morrer está em melhor situação do que eu. Não tenhopavor da Morte. O que me aterroriza é a aproximação da Morte.As suas asas monstruosas parecem adejar no ar plúmbeo à minhavolta. Céus! Não vê um homem atrás daquelas árvores, aespreitar-me, a esperar por mim? Lord Henry olhou na direcção apontada pela mão enluvada quetremia. - Vejo - respondeu a sorrir -, vejo o jardineiro à suaespera. Há-de querer saber que flores você quer esta noite namesa. Mas que absurdo nervosismo o seu, meu caro amigo! Tem deir consultar o meu médico quando regressarmos a Londres. Dorian suspirou de alívio ao ver o jardineiro aaproximar-se. 232 O homem levou a mão ao chapéu, olhou hesitante para LordHenry, e depois mostrou uma carta, que entregou ao amo. - Sua Senhoria pediu-me que esperasse pela resposta -balbuciou. Dorian meteu a carta no bolso. - Diga a Sua Senhoria que volto já - respondeu, com frieza. O homem deu meia volta e foi rapidamente na direcção dacasa. - Muito gostam as mulheres de correr riscos! - riu LordHenry. - De todas as suas qualidades é a que mais admiro. Umamulher namora com qualquer pessoa deste mundo desde que tenhaespectadores. - Como você gosta de dizer coisas perigosas, Harry! No casopresente está muito enganado. Gosto muito da duquesa, mas nãoa amo. - E a duquesa ama-o muito, mas gosta menos, por isso, estãofeitos um para o outro. - Está a difamar sem haver motivo algum, Harry. - O motivo de toda a difamação é uma certeza imoral -observou Lord Henry, enquanto acendia um cigarro. - Você sacrificaria quem quer que fosse por um epigrama. - Cada um vai ao altar de livre vontade - foi a resposta. - Eu bem desejaria poder amar - exclamou Dorian Gray, comuma grave entoação patética. - Mas tenho a impressão de queperdi a paixão e esqueci o desejo. Concentro-me demasiado emmim mesmo. A minha personalidade é para mim um fardo. Querofugir, partir, esquecer. Foi uma tolice eu ter vindo paraaqui. Creio que vou enviar um telegrama ao Harvey a dizer quemande preparar o iate. Num iate sente-se segurança. - Segurança relativamente a quê, Dorian? Você está com algumproblema. Por que não me diz o que se passa? Sabe bem que euestaria pronto a ajudá-lo. - Não Lhe posso dizer, Harry - respondeu, contristado. 233- Deve ser coisa da minha imaginação. Este infeliz acidentetranstornou-me. Tenho um pressentimento horrível de que mepode acontecer algo semelhante. - Que disparate! - Oxalá seja, mas não consigo evitá-lo. Ah, aqui temos aduquesa, que parece Artemisa(1) com um fato feito por medida.Como vê, regressámos, duquesa. - Já sei tudo sobre o caso, Mr. Gray - respondeu ela. - Opobre do Geoffrey está terrivelmente incomodado. E parece queo senhor lhe pediu que não matasse a lebre. É curioso! - Foi, de facto, muito curioso. Não sei o que me levou afazê-lo. Algum capricho, talvez. Parecia a mais linda de todasas criaturas. Mas lamento que lhe tenham falado do homem. É umassunto horrendo. - É um assunto maçador - interveio Lord Henry. - Não temabsolutamente nenhum valor psicológico. Ora se o Geoffrey otivesse feito propositadamente, que interessante não seria!Gostaria de conhecer alguém que tivesse cometido um crime deverdade. - Como você é horrível, Harry! - exclamou a duquesa. - Nãoconcorda, Mr. Gray? Harry! Mr. Gray está outra vezindisposto.Vai desmaiar. Dorian recompôs-se com esforço, e sorriu. - Não é nada, duquesa - balbuciou, - os meus nervos estãopavorosamente abalados. É só isso. Acho que caminhei muitoesta manhã. Não ouvi o que disse o Harry. Foi muitodesagradável? Há-de contar-me noutra ocasião. Creio que vourepousar. Peço que me desculpem. Haviam chegado ao grande lanço de escadas que ia da estufaao terraço. Quando a porta de vidro se fechou nas costas deDorian, Lord Henry voltou-se e, com o seu olhar sonolento,fitou a duquesa. - Está muito apaixonada por ele? - perguntou-lhe. Ela demorou algum tempo a responder, quedando-se acontemplar a paisagem. *1. (Mitologia grega) Deusa da Lua e da caça. (N. da T.) 234 - Quem me dera saber - disse, por fim. Ele meneou a cabeça. - O saber seria fatal. A incerteza é que dá encanto. A brumatorna as coisas maravilhosas. - Podemos perder-nos no caminho. - Todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio, minha queridaGladys. - E qual é? - O da desilusão. - Esse foi o meu début na vida - disse ela, com um suspiro. - Apareceu-lhe de coroa. - Estou cansada de folhas de morangueiro(1). - Ficam-lhe bem. - Só em público. - Sentiria a sua falta - disse Lord Henry. - Não me aparto de uma pétala sequer. - Monmouth pode ouvir. - A velhice é dura de ouvido. - Ele nunca teve ciúmes? - Quem me dera que tivesse. Ele olhou em volta como que à procura de alguma coisa. - O que procura? - perguntou ela. - O botão que lhe caiu da ponta do florete. - Ainda tenho a máscara posta - disse ela, rindo. - Faz-lhe os olhos mais bonitos - retorquiu ele. Ela riu-se de novo. Os dentes pareciam sementes brancas numfruto escarlate. Em cima, no seu quarto, Dorian Gray encontrava-se estendidonum sofá, com todas as fibras do corpo a vibrarem de terror.De repente, a vida tornara-se um fardo hediondo que tinha decarregar. A morte horrenda do infeliz batedor, abatido na matacomo um animal selvagem, parecera-lhe prefigurar também a suaprópria morte. *1. Ornamento heráldico das coroas ducais inglesas. (N. daT.) 235Quase desfalecera ao ouvir o que Lord Henry havia ditocasualmente num dos seus momentos de gracejos cínicos. Às cinco horas tocou a campainha para chamar o criado eordenou-lhe que lhe fizesse as malas para apanhar o expressoda noite para Londres, e que a berlinda estivesse à porta àsoito e meia. Estava decidido a não passar outra noite em SelbyRoyal. Era um lugar agourento, por onde a Morte se passeava aosol. A relva da floresta ficara manchada de sangue. Depois escreveu um bilhete dirigido a Lord Henry, acomunicar-lhe que ia a Londres consultar o médico e apedir-lhe que se ocupasse dos convidados durante a suaausência. Quando estava a metê-lo no envelope, bateram àporta. Era o seu criado pessoal a informá-lo de que o chefedos couteiros desejava falar-lhe. Ele fez um trejeito dedesagrado. - Diga-lhe que entre - resmungou, após alguma hesitação. Assim que o homem entrou, Dorian sacou de uma gaveta o livrode cheques e colocou-o aberto diante de si. - Calculo que veio aqui por causa do infeliz acidente destamanhã, Thornton - disse, pegando numa caneta. - Sim, senhor - respondeu o couteiro. - O pobre do homem era casado? Tinha pessoas a seu cargo? -perguntou Dorian, com ar enfastiado. - Se for esse o caso, nãoquero que passem necessidades. Mandarei uma quantia emdinheiro que você achar suficiente. - Nós não sabemos quem ele é, senhor. É por causa disso quetomei a liberdade de vir ter com Vossa Senhoria. - Não sabem quem é? - perguntou Dorian, com indiferença. -Que quer dizer com isso? Não era um dos seus homens? - Não, senhor. Nunca o tinha visto. Parece um marinheiro,senhor. A caneta caiu da mão de Dorian Gray, e ele sentiu que, derepente, o coração quase deixara de bater. - Um marinheiro? - exclamou. - Disse marinheiro? 236 - Sim, senhor. Pelo aspecto, parece que era, tatuagens nosdois braços, e tudo o mais. - Ele trazia alguma coisa consigo? - perguntou Dorian,inclinando-se para a frente e fixando-o com ansiedade.Qualquercoisa com o nome dele? - Algum dinheiro, senhor, não muito, e um revólver de seisbalas. Não trazia nome neniium. Um homem com ar honesto,senhor, mas um pouco rude. Do tipo marinheiro, achamos nós. Dorian ergueu-se de pronto. Alvoroçado por uma tremendaesperança, agarrava-se a ela desesperadamente. - Onde está o corpo? - exclamou. - Depressa! Preciso de over imediatamente. - Está num estábulo vazio do Casal, senhor. O povo não gostade ter um morto em casa. Dizem que dá azar. - O Casal! Vá logo ter comigo. Diga a um dos moços que metraga o meu cavalo. Deixe, não é preciso. Eu mesmo vou àestrebaria. Poupa-se tempo. Em menos de um quarto de hora, Dorian Gray galopava a toda abrida pela alameda. As árvores passavam por ele a fugir emespectral desfile e sombras desordenadas atravessavam-se nocaminho. Houve um momento em que a égua se desviou bruscamentedo pilar branco de um portão e quase o arremessou ao solo.Fustigou-Lhe o pescoço com o pingalim. Ela fendeu o arpoeirento como uma seta. Os cascos faziam voar as pedras. Finalmente chegou ao Casal. Dois homens passeavam pelopátio. Ele saltou da sela e atirou as rédeas a um deles. Noestábulo mais afastado viu uma luz. Teve o pressentimento deque o corpo estava ali. Dirigiu-se apressado para a porta epousou a mão no ferrolho. Deteve-se aí por instantes, sentindo que estava à beira deuma descoberta que o poderia salvar ou destruir-lhe a vida.Então empurrou a porta e entrou. Ao fundo, sobre uma pilha de serapilheiras, jazia o cadáverde um homem que vestia uma camisa grosseira e umas calçasazuis, Um lenço manchado tapava-lhe o rosto. 237Ao lado, no gargalo de uma garrafa, crepitava uma vela tosca. Dorian Gray estremeceu. Sentiu que não podia ser a sua mão aque havia de tirar o lenço, e chamou por um dos criados,dizendo-Lhe que se aproximasse. - Tira aquilo da cara. Quero vê-la - disse ele, agarrado àombreira da porta para se apoiar. Quando o criado fez o que lhe ordenara, ele avançou. Soltouum grito de alegria. O homem que fora alvejado na mata eraJames Vane. Permaneceu ali alguns minutos a olhar para o cadáver. Aovoltar para casa, os olhos iam rasos de lágrimas, pois sabiaque estava salvo. Capítulo XIX - É escusado dizer-me que passará a ser um homem bom -exclamou Lord Henry, mergulhando os dedos alvos numa taça decobre vermelho cheia de água de rosas. - Você é absolutamenteperfeito. Não mude, peço-lhe. Dorian Gray abanou a cabeça em jeito de recusa. - Não, Harry, fiz por demais coisas horríveis na minha vida.Não vou tornar a fazê-las. Comecei ontem com as minhas boasacções. - Onde esteve ontem? - No campo, Harry. Estive sozinho numa pequena estalagem. - Meu rapaz - disse Lord Henry sorrindo -, no campo, quemquer que seja pode ser boa pessoa. Lá não existem tentações.Por esse motivo é que as pessoas que vivem fora da cidade sãototalmente incivilizadas. A civilização não é de modo algumfácil de se conseguir. Há apenas duas maneiras possíveis de aalcançar. Uma é através da cultura, a outra através dacorrupção. As pessoas que vivem no campo não têm oportunidadepara nenhuma delas e, por isso, estagnam. - Cultura e corrupção - repetiu, como um eco, Dorian. -Conheci um pouco de ambas. Agora parece-me terrível que seencontrem sempre juntas. Pois eu tenho um novo ideal, Harry.Vou mudar. Creio que já mudei. - Ainda me não disse qual foi a sua boa acção. Ou disse-meque fizera mais do que uma? - perguntou-Lhe o companheiro,enquanto deitava no prato uma pequena pirâmide carmesim demorangos, e, por uma colher perfurada e em forma de concha,fazia cair uma neve de açúcar branco sobre eles. - Posso dizer-lhe, Harry. Não é uma história que pudessecontar a mais alguém. Poupei uma pessoa. Parece vaidade minha,mas compreende o que quèro dizer. Ela era muito bela, e de umaparecença maravilhosa com Sibyl Vane. Acho que foi a primeiracoisa que me atraiu. Lembra-se da Sibyl, não lembra? Pareceque foi há tanto tempo! Bem, a Hetty não era da nossa classesocial, é claro. Era simplesmente uma rapariga de aldeia. Maseu amava-a deveras. Tenho absoluta certeza de que a amava.Durante todo este maravilhoso mês de Maio em que estamos,costumava correr a visitá-la duas ou três vezes por semana.Ontem foi ter comigo a um pequeno pomar. As flores de macieiranão paravam de cair-lhe sobre o cabelo, e ela ria-se.Deveríamos ter partido juntos hoje de madrugada. De rePenteresolvi deixá-la tão em flor como a encontrara. - Eu diria que a novidade da emoção deve ter-lhe provocadoum frémito de verdadeiro prazer, Dorian - interrompeu LordHenry. - Mas posso completar o seu idílio. Você deu-lhe bonsconselhos e deixou-a de coração desfeito. Foi assim quecomeçou a sua regeneração. - Harry, você é horrível! Não quero que diga essas coisastremendas. O coração da Hetty(1) não está desfeito. É claroque chorou, e não só. Mas não se abateu sobre ela a ignomínia.Como Perdital, pode viver no seu jardim de hortelã emargaridas. - E chorar pelo desleal Florizel(2) - disse Lord Henry, arir, reclinando-se na cadeira. - Meu caro Dorian, você tematitudes curiosamente infantis. Acredita que esta raparigaficará alguma vez realmente satisfeita com alguém da mesmaclasse social? Suponho que há-de casar um dia com um rudecarroceiro ou com um lavrador bonacheirão. Ora o tacto de oter conhecido a si, e de o ter amado, vai ensiná-la adesprezar o marido, e então viverá infeliz. Sob um ponto devista moral, não posso dizer que tenho grande opinião sobre asua sublime renúncia. *1 e 2. Personagens da peça de Shakespeare: The WInter'sTale (Conto de Inverno). (N. da T.) 240Mesmo como começo, não vale muito. Além disso, quem sabe se aHetty, neste preciso momento, não flutua em qualquer açude àluz das estrelas, rodeada de belos nenúfares, como Ofélia(1)? - Não posso suportar mais! Você zomba de tudo, e a seguirsugere possibilidades de gravíssimas tragédias. Arrependo-meagora de lhe ter contado. Não me interessa o que você me diz.Sei que fiz bem ao agir como agi. Coitada da Hetty! Quandohoje de manhã passei a cavalo pela quinta, vi o seu rostopálido à janela, como uma haste de jasmim. Não falemos maisdisso, e não tente persuadir-me de que a primeira boa acçãoque fiz ao fim de tantos anos, o pouquinho de sacrifíciopessoal que fiz pela primeira vez na minha vida, não passa deuma espécie de pecado. Quero ser melhor. Vou ser melhor. Agorafale-me de si. Que novidades há em Londres? Faz tempo que nãovou ao clube. - As pessoas ainda comentam o desaparecimento do pobre doBasil. - Sempre supus que já seria a altura de se terem cansado doassunto - disse Dorian, servindo-se de vinho, e franzindo umpouco as sobrancelhas. - Meu caro, a conversa vai só em seis semanas, e o públicobritânico não tem capacidade para o esforço mental de ter maisdo que um tema de conversa de três em três meses. Contudo,ultimamente, têm tido muita sorte. Tiveram o meu divórcio e osuicídio de Alan Campbell. Agora têm o misteriosodesaparecimento de um artista. A Scotland Yard continua ainsistir que o homem do sobretudo cinzento que partiu paraParis no comboio da meia-noite do dia nove de Novembro era ocoitado do Basil, e a Polícia francesa declara que o Basilnunca chegou a Paris. Acho que dentro de quinze dias nos vãodizer que foi visto em São Francisco. É curioso, mas sempreque alguém desaparece dizem que foi visto em São Francisco. *1. Personagem da peça de Shakespeare: Hamlet. (N. da T.) 241Deve ser uma cidade encantadora e possuir todos os atractivosdo outro mundo. - O que pensa que terá acontecido ao Basil? - perguntouDorian, segurando o copo de Borgonha contra a luz, esurpreendido por conseguir falar do assunto com tantaserenidade. - Não faço a mínima ideia. Se o Basil decide esconder-se,nada tenho a ver com isso. Se morreu, nem quero pensar nele. Amorte é a única coisa que sempre me apavora. Detesto-a. - Por quê? - perguntou, um tanto enfastiado, o mais jovemdos dois homens. - Porque - respondeu Lord Henry, passando por baixo dasnarinas a rede dourada de uma caixa de sais aromáticos -,podemos sobreviver a tudo, menos a ela. A morte e avulgaridade são os dois únicos factos do século XIX que nãoconseguimos explicar. Bem, vamos tomar o café na sala demúsica, Dorian. Vai ter de tocar Chopin para mim. O homem comquem a minha mulher fugiu tocava Chopin primorosamente. PobreVictoria! Eu era muito amigo dela. A casa está bastantesolitária sem a sua presença. É certo que a vida de casado ésimplesmente um hábito, um mau hábito. Mas depois lamentamos aperda até dos nossos piores hábitos. São talvez os que maislamentamos. São uma parte essencial da nossa personalidade. Dorian não disse nada, mas levantou-se da mesa e, passando àoutra sala, sentou-se ao piano e deixou que os dedospercorressem as teclas brancas e pretas de marfim. Depois deterem trazido o café, não continuou e olhou para Lord Henry. - Harry - perguntou -, alguma vez lhe ocorreu que o Basiltenha sido assassinado? Lord Henry bocejou. - O Basil gozava de muita popularidade e usava sempre umrelógio Waterbury. Por que havia de ser assassinado? Não erasuficientemente inteligente para ter inimigos. É um facto queera um pintor de génio. Mas um homem pode ser um Velázquez e,no entanto, ser o mais obtuso possível. 242O Basil era na verdade bastante obtuso. Despertou-me interesseapenas uma vez, que foi quando ele me disse, há anos, quetinha uma adoração louca por si, e que você era o motivodominante da sua arte. - Eu era muito amigo do Basil - disse Dorian, com umaentoação de tristeza na voz. - Mas não dizem que ele foiassassinado? - Ah, sim, alguns jornais dizem. Não me parece nadaprovável. Sei que há lugares medonhos em Paris, mas o Basilnão era o género de pessoa que os frequentasse. Ele tinhafalta de curiusidade. Era o seu principal defeito. - Harry, o que diria você se eu Lhe contasse que assassinarao Basil? - perguntou o mais novo, fixando atentamente o outro. - Diria, meu caro amigo, que estava a fazer pose para umapersonagem que não condiz consigo. Todo o crime é grosseiro,assim como toda a grosseria é crime. Não está no seu feitiocometer um crime, Dorian. Desculpe se feri a sua vaidade aodizer isto, mas garanto-Lhe que é verdade. O crime pertenceexclusivamente às classes mais baixas. Não as censurominimamente. Diria que o crime seria para eles o que a arte épara nós, simplesmente um método de obter sensaçõesextraordinárias. - Um método de obter sensações? Acha então que um homem quecometeu um crime uma vez poderia voltar a cometer o mesmocrime? Não me diga. - Ora, qualquer coisa pode vir a ser um prazer, se afizermos repetidamente - exclamou, rindo, Lord Henry. - Esse éum dos mais importantes segredos da vida. Creio, todavia, queo assassínio é sempre um erro. Nunca se deve fazer aquilo deque se não possa falar à hora do jantar! Mas não falemos maisdo pobre Basil. Desejava poder acreditar que ele havia tido umfim realmente tão romântico como o que você acaba de sugerir,mas não consigo. Atrevo-me a afirmar que ele caiu de um ónibusao Sena, e que o revisor abafou o escândalo. Sim, imagino quefoi esse o fim que levou. Vejo-o agora jazendo de costas, 243no fundo daquelas águas de um verde sombrio, com as pesadasbarcaças a flutuarem por cima dele, e longas algas presas aoseu cabelo. Sabe, não creio que ele viesse a executar muitosmais trabalhos de qualidade. Nos últimos dez anos a suapintura decaíra muito. Dorian soltou um longo suspiro, e Lord Henry atravessou asala e começou a afagar a cabeça de um exóticopapagaio-de-java, uma ave grande de plumagem cinzenta, acrista e a cauda cor-de-rosa, que se equilibrava num poleirode bambu. Quando os dedos afilados lhe tocaram, a ave baixouas grossas pálpebras enrugadas sobre os olhos pretos ebrilhantes e começou a balançar. - Sim - continuou ele, voltando-se e tirando o lenço dobolso -, a sua pintura decaíra completamente. Parecia haverperdido qualquer coisa. Perdera um ideal. Quando vocês os doisdeixaram de ser grandes amigos, ele deixou de ser um grandeartista. O que vos levou a separarem-se? Imagino que você oachava enfadonho. Se foi por isso, ele nunca lhe perdoou. Écaracterístico nessas pessoas. A propósito, o que é feitodaquele retrato maravilhoso que ele Lhe fez? Suponho que nuncao vi desde que ele o acabou. Ah! Agora me recordo de você meter dito há uns anos que o enviara para Selby, e que seextraviara ou o roubaram no trajecto. Nunca o recuperou? Quepena! Era uma verdadeira obra-prima. Lembro-me de o querercomprar. Quem me dera agora tê-lo comprado. Pertencia aomelhor período do Basil. A partir de então, a obra dele eraessa estranha mescla de pintura medíocre e de boas intençõesque habilita um indivíduo a ser considerado representante daarte britânica. Você não mandou um anúncio para o jornal?Devia ter feito isso. - Não me recordo - respondeu Dorian. - Acho que mandei.Sinceramente, nunca gostei do retrato. Estou arrependido deter posado. A sua lembrança é-me odiosa. Mas por que falaagora nele? Faz-me lembrar aqueles curiosos versos de umapeça, suponho que do Hamlet... como são?.. 244 Like the painting of a sorrow, A face without a heart(1). Sim, o retrato era assim mesmo. Lord Henry riu-se. - Se um homem considera a vida como arte, passa a ter océrebro no coração - observou ele, afundando-se numa poltrona. Dorian Gray abanou a cabeça discordando, e tocou algunssuaves acordes no piano. - Like the painting of a sorrow - repetiu ele -, a faceWithout a heart. O homem mais velho recostou-se e olhou para ele,semicerrando os olhos. - A propósito, Dorian - disse ele, após uns minutos desilêncio -, de que serve a um homem conquistar o mundo todo eperder... como é a citação? a própria alma? A música soou dissonante, e Dorian Gray, os olhosesgazeados, fitou o amigo. - Por que me faz essa pergunta, Harry? - Meu caro - respondeu-lhe Lord Henry, erguendo assobrancelhas em jeito de surpresa -, porque pensei que mepudesse dar uma resposta. Mais nada. No passado domingo,atravessava eu o Parque, estava um pequeno ajuntamento demaltrapilhos especado a ouvir um vulgar pregador de rua, pertodo Marble Arch. Ao passar por ali, ouvi o homem em altosberros a fazer esta pergunta à assistência. Impressionou-me odramatismo da cena. Londres é muito fértil em efeitos curiososdeste género. Um domingo de chuva, um cristão inculto de capade borracha, um círculo de rostos pálidos e doentios sob umtelhado irregular de guarda-chuvas gotejantes, e uma fraseespantosa lançada por uma boca estridente e histérica... foide facto surpreendente, muito sugestivo. Pensei em dizer aoprofeta que a Arte tinha alma, mas o homem não. Pareceu-me,todavia, que não me teria compreendido. *1. Como a pintura de um desgosto, / Um rosto sem coração.(N. da T.) 245 - Não diga isso, Harry. A alma é uma realidade terrível.Pode ser comprada, e vendida, e negociada. Envenenada ouaperfeiçoada. Existe uma alma em cada um de nós. Eu sei. - Tem a certeza absoluta, Dorian? - Tenho. - Ah, nesse caso, deve ser uma ilusão. As coisas acerca dasquais temos certezas absolutas nunca são verdadeiras. Essa é afatalidade da Fé e a lição da aventura amorosa. Que ar tãograve! Não ponha esse ar tão sério. O que temos nós dois a vercom as superstições da nossa época? Não, nós deixámos deacreditar na alma. Toque qualquer coisa para mim. Um nocturno,Dorian, e, enquanto toca, conte-me, em voz baixa, como mantevea sua juventude. Você deve ter algum segredo. Sou apenas dezanos mais velho, e estou cheio de rugas, gasto e macilento.Você está deveras maravilhoso, Dorian. Nunca esteve tãoencantador como esta noite. Faz-me lembrar o dia em que o vipela primeira vez. Você era impertinente e tímido, eabsolùtamente extraordinário. É certo que mudou, mas não deaspecto. Gostaria que me dissesse o seu segredo. Para reaver aminha juventude, eu faria tudo no mundo, excepto ginástica,levantar-me cedo, ou ser uma pessoa respeitável. A juventude!Não há nada que se lhe compare. É absurdo falar da ignorânciada juventude. As pessoas cujas opiniões ouço hoje com algumrespeito são as pessoas muito mais novas do que eu. Parecem-meavançadas em relação a mim. A vida revelou-Lhes a sua últimamaravilha. Quanto aos velhos, estou sempre em contradição comeles. Faço-o por uma questão de princípio. Se lhes pedimos aopinião sobre uma coisa que aconteceu ontem, dão-nos, com todaa solenidade, as opiniões correntes em 1820, quando se usavamcolarinhos altos, se acreditava em tudo e não se sabiaabsolutamente nada. Que bonita essa coisa que está a tocar!Será que Chopin a compôs em Maiorca, com o pranto do mar emredor da villa e a espuma salgada a bater nos vidros dasjanelas? É extraordinariamente romântica. 246Foi uma bênção ter-nos ficado uma arte que não é imitativa.Não pare. Preciso de música esta noite. Você é o jovemApolo(1) e eu sou Márcias(2) a escutá-lo. Eu tenho as minhasmágoas , Dorian, que nem mesmo você conhece. A tragédia daveLhice não é ser-se velho, mas ser-se novo. Fico às vezessurpreendido com a minha sinceridade. Ah, que feliz é você,Dorian! Tem tido uma vida magnífica! Bebeu de tudo até àúltima gota. Esmagou as uvas contra o palato. Nada lhe foioculto. Para si tudo foi apenas como o som de música, não oafectou. Você continua a ser o mesmo. - Não sou o mesmo, Harry. - Sim, é o mesmo. Gostaria de saber o que será o resto dasua vida. Não a estrague com renúncias. Presentemente você éum tipo perfeito. Não se torne imperfeito. Neste momento éimpecável. Escusa de abanar a cabeça. Sabe bem que o é. Alémdisso, Dorian, não se iluda. A vida não é regida pela vontadeou pela intenção. A vida é uma questão de nervos, e fibras, ecélulas que se formam lentamente, e onde o pensamento seoculta e a paixão constrói os seus sonhos. Você podeimaginar-se seguro, e considerar-se forte. Mas a tonalidadeocasional de um quarto ou de um céu matutino, um certo perfumede que um dia gostou e que traz consigo subtis recordações, umverso de um poema esquecido que reencontrou, a cadência de umamúsica que deixou de tocar... são essas as coisas, Dorian, deque dependem as nossas vidas. Browning(3) escreve acerca dissoalgures, mas os nossos sentidos são capazes de as imaginar pornós. Há momentos em que, de repente, sinto o aroma do lilasblanc, e tenho de reviver o mês mais estranho da minha vida. *1 e 2. Referência ao talento musical do deus Apolo, estefoi desafiado pelo sátiro Márcias, flautista exímio, para umacompetição musical. (N. da T.) 3. Robert Browning (1812-89): poeta inglês, cuja obraexemplifica uma das tendências dominantes da poesia vitoriana(...): um fervoroso empenho na análise e crítica moral.(Legouis, Émile & Cazamian, Louis, A History of EnglishLiterature, Londres, J. M. Dent and Sons, 1957, p.1192.). (N.da T.) 247Gostaria de trocar o meu lugar pelo seu, Dorian. U mundo temclamado contra nós dois, mas a si tem-no adorado sempre. Ehá-de adorá-lo sempre. Você é o tipo de que a nossa época temandado à procura e que receia ter encontrado. Agrada-me tantoque você nunca haja feito nada, que nunca tenha esculpido umaestátua, ou pintado um quadro, ou produzido algo exterior asi! A vida tem sido a sua arte. Você transcreve-se em música.Os seus dias são os seus sonetos. Dorian deixou o piano e passou a mão pelo cabelo. - Sim, a vida tem sido magnífica - murmurou -, mas não vouter a mesma vida, Harry. E não deve dizer-me essas coisasextravagantes. Você não sabe tudo a meu respeito. Se soubesse,creio que até se afastaria de mim. Você ri-se. Não ria. - Por que deixou de tocar, Dorian? Volte para o piano etoque outra vez esse nocturno. Veja aquela Lua cor de melsuspensa no ar sombrio. Está à espera que você a enfeitice, ese você tocar ela virá aproximar-se da terra. Não quer? Entãovamos ao clube. Está uma noite encantadora, e devemosterminá-la de uma forma encantadora. Está uma pessoa em casado White que está morto por conhecê-lo. É o jovem Lord Pole, ofilho mais velho do Bournemouth. Já copiou as suas gravatas, epediu-me que lhe fosse apresentado. Ele é um encanto e faz-melembrar você. - Espero bem que não - disse Dorian, com uma expressãotriste no olhar. - Mas hoje estou cansado, Harry. Não vou aoclube. São quase onze horas, e quero deitar-me cedo. - Peço-Lhe que fique. Você nunca tocou tão bem como hoje.Havia algo de mágico nos seus dedos. Foram mais expressivos doque nunca. - É porque vou tornar-me bom - respondeu, sorrindo. - Jámudei um pouco. - Para mim não pode mudar, Dorian - disse Lord Henry. - Vocêe eu seremos sempre amigos. - No entanto, você envenenou-me uma vez com um livro. 248Não lhe devia perdoar. Harry, prometa-me que nunca iráemprestar esse livro a alguém. Ele é nocivo. - Meu rapaz, você está mesmo a começar a ser moralista. Nãotardará que ande com os convertidos, e os revivalistas, aalertar as pessoas contra todos os pecados de que se cansou.Você é demasiado encantador para fazer uma coisa dessas. Alémdisso, não vale a pena. Você e eu somos o que somos e seremoso que formos. Quanto a ser envenenado por um livro, é coisaque não existe. A arte não influencia a acção. Ela anula odesejo de agir. É soberbamente estéril. O mundo chama imoraisaos livros que lhe revelam a sua própria infâmia. Mais nada.Mas deixemos a literatura. Apareça amanhã. Vou dar um passeioa cavalo às onze horas. Podíamos ir juntos, e depois levo-o aalmoçar com Lady Branksome. É uma mulher encantadora e querconsultá-lo sobre umas tapeçarias que pensa comprar. Veja senão falta. Ou almoçamos com a nossa querida duquesa? Ela dizque nunca mais o viu. Será que você se cansou da Gladys? Eulogo calculei. A sua língua arguta é enervante. Bem, emqualquer caso, esteja aqui às onze. - Preciso mesmo de vir, Harry? - Com certeza. O Parque está agora uma beleza. Acho que nãotem havido lilases como agora desde o ano em que o conheci. - Está bem. Estarei aqui às onze - disse Dorian. - Boanoite, Harry. Ao chegar à porta, hesitou um pouco, como se tivesse maisalguma coisa para dizer. Depois soltou um suspiro e saiu. Capítulo XX Estava uma noite linda, e tão amena que levava o casacono braço e nem sequer pôs o lenço de seda em volta do pescoço.Quando se dirigia para casa, a fumar o seu cigarro, passarampor ele dois jovens em trajo de cerimónia. Ouviu um delescochichar para o outro: «Aquele é Dorian Gray». Lembrou-se dasatisfação que costumava sentir quando as pessoas o apontavam,ou se quedavam a olhá-lo, ou falavam dele. Agora ficava fartosó de ouvir o próprio nome. Parte do encanto da pequena aldeiaem que tantas vezes ficara ultimamente era o facto de ninguémo conhecer: À rapariga que seduzira até à paixão disserafrequentemente que era pobre, e ela acreditara nele.Dissera-Lhe uma vez que era um homem mau, mas ela rira-se delee respondera que as pessoas más eram sempre muito velhas efeias. O que ela rira! Parecia um tordo a cantar. E que bonitaera com seu vestido de algodão e os enormes chapéus! Ela tudoignorava, mas possuía tudo o que ele perdera. Quando chegou a casa encontrou o criado à sua espera.Disse-lhe que se fosse deitar, e atirou-se para cima do sofáda biblioteca, quedando-se a reflectir sobre algumas dascoisas que Lord Henry lhe dissera. Era mesmo verdade que nunca conseguíamos mudar? Sentiu umaânsia louca pela sua mocidade imaculada, a flor da suajuventude, como Lord Henry uma vez Lhe chamara. Sabia que semaculara, que corrompera o espírito e alimentara de horrores aimaginação, que havia sido uma influência maléfica paraoutros, e que sentira um júbilo terrível ao tê-lo sido, e que,das vidas que se haviam cruzado com a sua, fora à mais pura eprometedora que trouxera o opróbrio. Mas tudo isso erairreparável? Para ele não havia esperança? 250 251 Ah! Que monstruoso momento de soberba e paixão aquele em quesuplicara que fosse o retrato a carregar o fardo dos seusdias, e ele mantivesse o esplendor impoluto da eternajuventude! Todo o seu fracasso se devera a isso. Tinha sidomelhor para ele que cada pecado da sua vida trouxesse consigoo castigo firme e imediato. O castigo purificava. Não o«Perdoai os nossos pecados, Castigai-nos pelas nossasiniquidades" é que deveria ser a prece de um homem dirigida aum Deus de justiça. O espelho minuciosamente trabalhado, que Lord Henry Lheoferecera havia já tantos anos, encontrava-se em cima da mesa,e os alvos Cupidos da moldura riam-se como dantes. Pegou nele,como fizera naquela noite de horror em que notara pelaprimeira vez a transformação no retrato fatídico, e, com olhosdesvairados e enevoados pelas lágrimas, mirou a superfíciepolida. Um dia, alguém que o amara loucamente escrevera-lheuma carta apaixonada que terminava com estas palavras deidolatria: «O mundo mudou porque és feito de ouro e marfim. Ascurvas dos teus lábios rescrevem a história.» Relembrou asfrases e repetiu-as para si uma vez e outra. Então abominou asua própria beleza e, arremessando ao chão o espelho,esmagou-o sob o tacão em estilhaços de prata. Foi a sua belezaque o arruinara, a sua beleza e a juventude pela qualsuplicara. Sem essas duas coisas, a sua vida teria sidoimaculada. A sua beleza não fora senão um disfarce, a suajuventude um simulacro. O que era a juventude, na melhor dashipóteses? Um tempo de inexperiência e imaturidade, de fúteiscaprichos e pensamentos mórbidos. Por que vestira ele as suasroupagens? A juventude causara a sua corrupção. Era melhor não pensar no passado. Nada o poderia alterar.Era em si próprio e no seu futuro que havia que pensar. JamesVane ficara oculto numa campa anónima da igreja de Selby. AlanCampbell suicidara-se de noite no seu laboratório, mas nãorevelara o segredo que havia sido obrigado a saber. O alvoroçosuscitado pelo desaparecimento de Basil Hallward não tardariaa passar. Já começava a diminuir. Ele estava em totalsegurança. Na verdade, nem era a morte de Basil Hallward o quemais lhe pesava na consciência. O que o atormentava era amorte viva da própria alma. Basil pintara o retrato que lhedestruíra a vida. E isso não Lhe podia perdoar. O retrato forao causador de tudo. Basil dissera-Lhe coisas insuportáveis queele, contudo, levara com paciência. O assassínio fora simplesloucura de um momento. Quanto a Alan Campbell, suicidara-sepor sua livre vontade. Fora decisão sua. Ele nada tinha a vercom o caso. Uma vida nova! Era disso que precisava. Era aquilo de queestava à espera. Certamente já a havia começado. Ao menos,poupara a inocência de alguém. Jamais atentaria contra ainocência. Seria um homem bom. Ao pensar em Hetty Merton, começou a interrogar-se se oretrato do quarto trancado teria mudado. Com certeza que nãocontinuava tão horrível como fora. Se a sua vida se tornassepura, talvez conseguisse expulsar do retrato todo o vestígiode paixão ruim. Talvez que os estigmas da maldade se tivessemjá desvanecido. Iria ver. Pegou no candeeiro que estava sobre a mesa e subiu asescadas de mansinho. Ao destrancar a porta, passou-lhe pelorosto espantosamente jovem um sorriso de júbilo, quepermaneceu nos lábios por um instante. Sim, havia de ser bom,e a coisa hedionda que ele escondera deixaria de ser o terrorda sua vida. Tinha a sensação de que esse peso já lhe saíra decima do peito. Entrou silenciosamente, fechou a porta, como habitualmentefazia, e puxou a cortina púrpura. Soltou um grito de dor eindignação. Não viu transformação alguma, salvo uma expressãode astúcia nos olhos e, na boca, o ricto da hipocrisia. Aquilocontinuava abominável - mais abominável, se possível, do queantes - e a cor escarlate das gotas que orvalhavam a mão eraainda mais viva, mais parecendo sangue recém-derramado. Entãoele começou a tremer. Teria sido apenas vaidade o que o levaraa cometer a sua única boa acção? Ou o desejo de uma novasensação, como sugerira Lord Henry, com seu riso de troça? 252Ou aquela paixão por desempenhar um papel que, por vezes, nosconduz a actos mais perfeitos do que nós mesmos? Ou, talvez,todas estas coisas juntas? E por que seria que a manchavermelha era maior agora? Parecia ter alastrado, como horríveldoença, pelos dedos engelhados. Havia sangue sobre os péspintados, como se tivesse pingado, havia sangue até na mão quenão empunhara a faca. Confessar? Quereria dizer que ele tinhaque confessar? Entregar-se, e ser condenado à morte? Riu-se.Considerava a ideia monstruosa. Além disso, mesmo seconfessasse, quem iria acreditar nele? Não havia vestígios dohomem assassinado em parte alguma. Tudo o que lhe pertenciafora destruído. Ele mesmo queimara o que estivera guardado novão das escadas. Todos diriam muito simplesmente que eleestava louco. Interná-lo-iam se persistisse na sua história...No entanto, era seu dever confessar, sofrer o vexame público eexpiar publicamente os seus delitos. Existia um Deus queconvocava os homens para confessarem os seus pecados à terra eao céu. Tudo o que fizesse não o purificaria se nãoconfessasse o seu pecado. O seu pecado? Encolheu os ombros numgesto de indiferença. A morte de Basil Hallward parecia-Lheinsignificante. Pensava em Hetty Merton. Afinal, era injustoeste espelho em que se mirava, o espelho da sua alma. Vaidade?Curiosidade? Hipocrisia? Não houvera nada mais na sua renúnciasenão isso? Houvera algo mais. Pelo menos ele acreditava quesim. Mas quem poderia dizer?... Não. Nada mais houvera.Poupara-a por vaidade. Usara com hipocrisia a máscara dabondade. Por curiosidade experimentara a auto-renúncia.Reconhecia tudo isso agora. Mas este crime havia de persegui-lo toda a vida? Teria decarregar para sempre com o passado? Ele teria mesmo deconfessar? Nunca. Restava apenas uma prova contra ele. Opróprio retrato. Isso era uma prova. Destruí-lo-ia. Por que oconservara tanto tempo? Houve um tempo em que sentira prazervê-lo mudar e envelhecer. Ultimamente não sentia esse prazer.À noite impedia-o de dormir. 253 Quando se ausentava, invadia-o o pavor de que outros olhos ocontemplassem. Repassara de melancolia as suas paixões. À suasimples lembrança, se haviam frustrado muitos momentos dealegria. Representava para si uma consciência. Sim, era a suaconsciência. Tinha de o destruir. Procurou com o olhar, e viu a faca que apunhalara BasilHallward. Limpara-a muitas vezes, até não ficar mancha alguma.Estava polida e brilhava. Como matara o pintor, assim havia dematar a sua obra, e tudo o que ela reprsentava. Mataria opassado, e com essa morte ele sentir-se-ia livre. Mataria essamonstruosa vida da alma e, sem os seus hediondos avisos, eleficaria em paz. Agarrou na faca e apunhalou o retrato. Ouviu-se um grito e um tombo. O grito de agonia foi tãohorrível que os criados, assustados, acordaram e saíramsilenciosamente dos seus quartos. Dois cavalheiros, quepassavam em baixo na Praça, pararam e olharam para a grandemansão. Continuaram a andar até que encontraram um polícia, evoltaram atrás com ele. O homem tocou várias vezes àcampainha, mas ninguém apareceu. Com excepção de uma luz numadas janelas do último andar, a casa estava completamente àsescuras. Pouco depois, afastou-se e ficou parado num portalpróximo a observar. - De quem é aquela casa, senhor guarda? - perguntou o maisvelho dos dois indivíduos. - De Mr. Dorian Gray, senhor - respondeu o polícia. Ao afastarem-se, olharam um para o outro e riram com um risoescarninho. Um deles era o tio de Sir Henry Ashton. Dentro de casa, na parte reservada ao pessoal doméstico, oscriados, semivestidos, falavam uns com os outros, sussurrando.A velha Mrs. Leaf chorava e torcia as mãos. Francis estavapálido como a morte. Cerca de um quarto de hora depois, chamou o cocheiro e umdos lacaios, e subiram as escadas. Bateram à porta, mas nãoobtiveram resposta. Bradaram. Estava tudo em silêncio. Porfim, depois de, em vão, tentarem arrombar a porta, 254subiram ao terraço e desceram para a varanda. As janelascederam facilmente, que os ferrolhos eram velhos. Quando entraram, viram pendurado na parede um magníficoretrato do seu amo, tal como era quando o viram a última vez,em todo o fulgor da sua deslumbrante juventude e beleza. Nochão jazia um homem morto, em trajo de cerimónia, com uma facacravada no coração. Estava mirrado, enrugado e tinha uma cararepugnante. Examinaram-lhe os anéis, e só então oreconheceram. Scannerização e Arranjo Amadora, Agosto de 2000